"Há algum médico a bordo?". Isto é o que acontece quando há uma emergência num avião

CNN , Francesca Street
2 jul 2023, 09:00
O médico Sij Hemal deu à luz um bebé num avião em 2017. Cleveland Clinic

Para o médico Sij Hemal, foi um voo que nunca esquecerá.

Estávamos em dezembro de 2017. Hemal, na altura com 27 anos e médico interno do segundo ano, estava a regressar aos EUA vindo da Índia, onde tinha estado a celebrar o casamento do seu melhor amigo.

Primeiro, Hemal viajou de Nova Deli para Paris. Depois, apanhou um voo da Air France de Paris para Nova Iorque. Quando chegou ao JFK, estava pronto para voar para Cleveland.

A primeira parte da viagem decorreu sem incidentes. No aeroporto Charles de Gaulle, Hemal instalou-se no seu lugar no voo da Air France, folheando as opções de filmes a bordo.

O avião descolou e Hemal ligou os auscultadores. Estava a pensar em pedir uma taça de champanhe quando ouviu a voz da hospedeira no altifalante.

"Há algum médico a bordo?"

Hemal tirou os auscultadores e olhou em volta. Havia um certo murmúrio na cabina. Afinal, era a segunda vez que o anúncio era feito - da primeira vez, tinha sido em francês e Hemal não o tinha ouvido.

Por coincidência, Hemal estava sentado ao lado de outra profissional de saúde, Susan Shepherd, uma pediatra que regressava de uma missão pelos Médicos Sem Fronteiras.

Os dois médicos, que nunca se tinham encontrado antes daquele dia, concordaram que Hemal iria investigar e Shepherd ajudaria se necessário.

Hemal deu-se a conhecer à tripulação. Depois, foi conduzido através da cabina por uma assistente de bordo para se encontrar com a passageira em perigo.

Era uma mulher com cerca de 40 anos, que se queixava de dores nas costas e abdominais. Não foi imediatamente claro qual era o problema. O primeiro pensamento de Hemal foi pedra nos rins ou apendicite. Decidiu perguntar a Shepherd, a sua colega pediatra, qual era a sua opinião.

Depois, a passageira disse duas palavras que mudaram tudo: "Estou grávida".

Foi nessa altura que Hemal se apercebeu: a passageira podia entrar em trabalho de parto. Num avião. Num avião que estava a sobrevoar o Oceano Atlântico, sem nenhum aeroporto próximo à vista.

"Podem imaginar que não há nada à vossa volta para aterrar o avião", conta Hemal à CNN. "Estás a mais de 10.000 metros de altitude. Estás rodeado de azul à tua volta."

Hemal e Shepherd cuidaram da passageira durante as duas horas seguintes, mantendo-a estável. Depois, de repente, ela começou a ter contrações. E depois as águas rebentaram.

A passageira estava prestes a dar à luz no avião. E Hemal, um interno de urologia que não fazia um parto desde que completara os sete partos exigidos na faculdade de medicina, estava prestes a liderar os esforços.

"Pensámos para nós próprios: 'Muito bem, vamos a isto'", recorda Hemal. "Porque se não o fizeres, vai acontecer alguma coisa ao doente. Tens de dar o teu melhor."

Passadas algumas horas, Hemal, com a ajuda de Shepherd e da tripulação de cabina da Air France, conseguiu que a mãe desse à luz um bebé saudável.

Quando o avião aterrou no JFK, a mãe e a criança foram desembarcadas em segurança e transferidas para o Jamaica Hospital Medical Center, nas proximidades. Hemal mal teve tempo para pensar enquanto corria para o seu voo de ligação para Cleveland.

Quando Hemal conseguiu embarcar no seu último voo, apercebeu-se que estava um pouco em choque. Mas também estava agradecido. Tudo tinha corrido bem. A experiência só serviu para reafirmar o seu empenho na profissão.

"Quando se está numa situação destas, a minha consciência diz-me sempre que tenho de ajudar aquela pessoa", diz Hemal. "Foi por isso que quis ser médico."

Há algum médico a bordo?

Sij Hemal e a médica Susan Shepherd com a passageira e o bebé após o parto no avião. Cleveland Clinic

Nos filmes e na televisão, o "há um médico a bordo" é um pouco cliché.

Mas sim, acontece de facto. E para os profissionais de medicina - ou para qualquer pessoa com o prefixo "Dr." no cartão de embarque - é um refrão muito familiar. Se tiver um doutoramento mas não tiver qualificações médicas, pode dar por si a ter de recusar um pedido de assistência.

É claro que as assistentes de bordo têm formação em primeiros socorros e são capazes de lidar com uma série de emergências médicas a bordo - e, de facto, algumas preferem nem sequer pedir ajuda aos passageiros. Mas, por vezes, é necessário obter assistência especializada.

E para os médicos, como é ouvir esse anúncio e, de repente, deixar de comer, dormir, beber ou ver um filme para ajudar um passageiro em perigo?

Hemal diz que fazer essa mudança mental não é assim tão difícil - é uma prática bastante normal. Como médico, as pessoas estão constantemente a pedir-lhe conselhos médicos quando ele está de folga, faz parte.

"Mesmo quando estou em festas, ou quando saio com amigos - ou quando estou num Uber, por vezes o motorista pergunta-me: 'Tenho isto neste estado, o que acha?'".

Mas embora Hemal diga que o seu instinto natural é sempre o de ajudar, sugere que nem todos os profissionais de saúde concordam com ele. Especialmente quando se trata de ajudar num avião.

"Francamente, muitas pessoas não o querem fazer, porque têm medo, ficam nervosas", afirma.

Um avião é um ambiente específico - e limitado. E a medicina é também muito abrangente e complexa - há uma grande probabilidade de dar por si a ajudar em algo para o qual não tem conhecimentos específicos.

Hemal - que já ajudou em situações médicas a bordo algumas vezes - diz que assinou sempre o que se chama um "acordo de bom samaritano". Essencialmente, esta documentação protege o médico de litígios e deixa claro que não há qualquer exigência de indemnização.

Nos EUA, a Lei de Assistência Médica na Aviação também protege os indivíduos da responsabilidade legal por ajudarem numa emergência médica a bordo.

Embora Hemal esteja ciente de que existe sempre o risco de a situação não terminar da forma que todos esperam, diz que tentará sempre ajudar se puder.

As suas palavras são partilhadas por Lauren Feld, gastroenterologista norte-americana que se dedica a doenças do fígado.

Feld já ajudou em várias emergências médicas a bordo e, embora nunca tenha feito um parto num avião, uma vez ordenou uma aterragem de emergência - o que, como Feld diz, "não a torna popular entre o resto das pessoas no avião, porque leva a um grande atraso no voo, mas tem de se agir no melhor interesse da pessoa".

"Penso que o facto de ter formação médica e a capacidade de ajudar, para mim, é um privilégio", diz Feld à CNN. "E, por isso, sempre que tenho a possibilidade de ajudar, penso que é algo que é importante fazer."

Tal como Hemal, Feld diz que passar de passageira anónima a médica de bordo não é muito difícil. Até já foi acordada por um anúncio a bordo a pedir assistência médica e entrou imediatamente em modo de trabalho.

"Sinto-me à vontade para ajudar, mesmo que esteja cansada", assume. "Nós - eu diria que infelizmente - estamos bastante habituados a trabalhar quando estamos cansados."

Feld não bebe em aviões - diz que normalmente está demasiado ocupada a tratar dos filhos pequenos ou a pôr o sono em dia - mas sugere que se um profissional de saúde for chamado a prestar assistência depois de ter bebido alguns copos de vinho, ou se se sentir mal equipado de alguma forma, o importante é que "reconheça as limitações" e tome decisões em conformidade.

Avaliação a bordo

Feld e Hemal dizem que um dos aspetos mais complicados de lidar com uma emergência médica a bordo é chegar às cegas. Ao contrário do que acontece num hospital, não se tem o historial médico do doente à mão. Não se sabe que medicamentos o doente está a tomar. Apenas dispõem das pistas contextuais e das informações que ele lhes dá.

Em primeiro lugar, os médicos começam por avaliar e, com sorte, excluir as doenças mais graves - um ataque cardíaco ou um AVC, por exemplo.

Nos aviões, diz Hemal, as situações mais comuns incluem tensão arterial baixa, síncope vasovagal - também conhecida como uma causa comum de desmaio - ou ataques de ansiedade.

É claro que as doenças nocivas e as menos preocupantes podem partilhar sintomas semelhantes. Num voo recente de Nova Iorque para a Califórnia, Hemal foi chamado para ajudar um homem idoso que estava a sofrer de palpitações cardíacas.

Afinal, a causa não era um ataque cardíaco - o que passou imediatamente pela cabeça de Hemal devido à idade do passageiro - mas sim o facto de aquele homem ter comido demasiados brownies de marijuana.

"Ele tinha ingerido bastantes e teve uma reação negativa no avião", conta Hemal.

Outra dificuldade para os médicos que respondem a situações médicas a bordo é a potencial falta de equipamento. Os aviões têm um kit médico, mas este não consegue dar resposta a todas as eventualidades.

Quando Hemal estava a fazer o parto no avião, estava consciente de que não tinha um kit de sutura, pelo que não seria possível aplicar pontos. Felizmente, não precisou de o fazer, mas tinha sempre isso presente na sua mente.

O ambiente do avião também gera as suas próprias condições - invulgares - que os médicos têm de ter em conta. A diferença de pressão "pode exacerbar certos problemas médicos e dificultar alguns dos tratamentos", diz Feld.

Feld acrescenta que o ruído do motor também dificulta a audição com um estetoscópio.

Outra diferença é que, enquanto os médicos normalmente acompanham um passageiro ao longo do tempo, num avião é uma interação breve, fugaz mas intensa entre o médico e o doente. Feld diz que pode ser bastante estranho não saber o resultado da situação.

Uma coisa que é semelhante tanto em terra como no ar é a necessidade de trabalho de equipa. Feld e Hemal lideraram ambos os esforços médicos a bordo, mas sublinham a importância de trabalhar em equipa com quem quer que possa ajudar.

A primeira vez que Held ajudou numa emergência a bordo, era recém-formada em medicina. Dois outros profissionais médicos estavam a bordo do voo e ofereceram-se para ajudar.

"Um deles era um médico assistente, numa unidade cardiotorácica. E a outra era investigadora em oncologia, ou seja, alguém que não tinha feito medicina clínica e se dedicava exclusivamente à investigação", recorda Feld.

Embora Feld fosse a mais jovem e a menos experiente, era a única médica com formação. Os outros dois passageiros curvaram-se perante os seus conhecimentos e ajudaram-na a fazer ouvir a sua voz numa situação em que, por vezes, se sentia ignorada por ser uma mulher jovem.

"Nós os três trabalhámos em conjunto", diz Feld.

Durante as emergências médicas, a tripulação também se mantém em contacto com as equipas médicas em terra, que ajudam a tomar decisões e autorizam a administração de determinados medicamentos.

Hemal diz que quando fez o parto do bebé no voo da Air France, foi um "esforço de equipa". Ele assumiu o papel de líder, a colega médica Shepherd ajudou e as assistentes de bordo fizeram tudo o que podiam.

O facto de ter assumido a liderança em vez de Shepherd, recorda, deveu-se em parte ao facto de ser cirurgião, mas foi também "uma decisão espontânea porque tudo aconteceu e progrediu tão rapidamente que não parámos para pensar nisso". "Como ela era pediatra, teria ajudado melhor a cuidar do bebé depois do parto."

Hemal recorda que a tripulação da Air France tomou decisões executivas cruciais - logo no início, foi tomada a decisão de mudar a passageira grávida para a cabina de primeira classe, que estava praticamente vazia, por uma questão de privacidade e para que ela se pudesse deitar.

A tripulação manteve-se em contacto permanente com os pilotos, que, segundo Hemal, evitaram a turbulência sempre que possível para ajudar a tornar o parto o mais suave possível.

Olhando para trás, Hemal considera muito comovente o facto de um grupo de desconhecidos de todo o mundo, num voo transcontinental, ter trabalhado em conjunto para garantir um resultado positivo. Alguns tinham formação médica, outros não. Alguns falavam a mesma língua, outros não. O que os unia era o seu desejo de ajudar.

"Toda a gente deixou de lado quem era, de onde vinha, e juntou-se por uma causa comum", recorda Hemal. "Achei muito bonito, olhando para trás e, retrospetivamente, só de pensar nisso."

Conselhos aos passageiros

Embora os médicos geralmente não queiram que os passageiros que não têm formação médica se aproximem e ajudem em situações médicas nos aviões, Feld é uma grande defensora de que o público em geral tenha aulas de suporte básico de vida e sugere que saber primeiros socorros "é um bom conjunto de competências para um avião, para andar na rua".

Se estiver num avião e um passageiro ao seu lado ou perto de si estiver a passar por dificuldades médicas, Feld diz que pedir ajuda e alertar a hospedeira de bordo é o melhor plano.

Se tiver formação em primeiros socorros, medir o pulso da pessoa e, se necessário, iniciar as compressões torácicas é, acrescenta Feld, "um ótimo primeiro passo enquanto pede ajuda".

Feld sugere que os passageiros com problemas de saúde devem falar com o seu médico antes de viajar de avião - trabalha com pessoas com doença hepática crónica e está sempre empenhada em ajudá-las a viver as suas vidas e a viajar em segurança.

Cinco anos depois

Os médicos que ajudam nas emergências a bordo são por vezes recompensados com uma garrafa de champanhe, um vale ou milhas.

Isto nem sempre acontece - não existe uma política definida, e Feld diz que "não é certamente nada que esperasse". Em termos éticos, diz que consideraria sempre a hipótese de rejeitar uma prenda que parecesse demasiado extravagante.

Quando Hemal voltou ao trabalho depois de ter dado à luz o bebé no avião, não partilhou inicialmente a história com os colegas. Foi uma garrafa de champanhe que deu o mote: algumas semanas após o parto no avião, a bebida chegou à caixa de correio do hospital, juntamente com um vale e uma nota de agradecimento da Air France.

"E bum, tornou-se viral no hospital e o nosso responsável pelos meios de comunicação social acabou por saber", recorda Hemal. Foi enviado um comunicado de imprensa. Em poucos dias, Hemal apareceu na CNN e na revista People. A história circulou por todo o lado.

A atenção foi um pouco avassaladora. Enquanto muitas pessoas elogiavam Hemal, inevitavelmente outras eram mais críticas - alguns dos seus colegas médicos expressavam inveja ou sugeriam que ele não devia ter intervindo para ajudar. E durante meses, onde quer que fosse, Hemal era apresentado como "o tipo que fez o parto no avião".

Cinco anos depois, Hemal diz que a situação foi uma curva de aprendizagem em mais do que um sentido. "Não se pode controlar as reações das outras pessoas", afirma.

E embora Hemal continue a ser reconhecido de vez em quando - muitas vezes em conferências médicas - em geral, a atenção diminuiu e ele costuma minimizar a história: "Sinto que a medicina em geral é uma profissão tão humilde", diz.

Ainda assim, faria tudo de novo num piscar de olhos, se necessário.

"Se não os ajudarmos, mais ninguém o fará. Por isso, deem o vosso melhor - é mais ou menos para isso que eu vivo."

Relacionados

Viagens

Mais Viagens

Na SELFIE

Patrocinados