China pressiona Taiwan com fogo real e cerco naval

3 ago 2022, 07:10

Assim que Nancy Pelosi aterrou em Taipé, começou a quarta crise do Estreito de Taiwan. A China mostra a sua força militar por mar e ar e ensaia um bloqueio à ilha. Pelosi prometeu apoio a Taiwan e insinuou que o "alarido" de Pequim pode ter a ver com o facto de ser mulher

A China tinha prometido que não ficaria de braços cruzados se Nancy Pelosi concretizasse a polémica deslocação a Taiwan, e que daria uma resposta “forte e firme” perante essa “provocação”, vista como uma interferência nos assuntos internos chineses, e um desafio à sua soberania e integridade territorial. Pelosi cumpriu o desejo de aterrar em Taipé, e no mesmo instante Pequim cumpriu com as ameaças de responder de forma “sem precedentes”.

Demonstrações de poder militar, sanções económicas, ataques cibernéticos - houve um pouco de tudo nas horas a seguir à chegada de Pelosi. A Administração Biden já garantiu que não se deixará intimidar, nem arrastar para um conflito, e assegura que nada na viagem de Pelosi muda o status quo na região ou viola a política de "uma só China". A China permite-se discordar, e o Global Times, jornal em língua inglesa do Partido Comunista Chinês, escreveu hoje essa discordância: "Desta vez, o mundo inteiro viu claramente quem está a mudar o status quo no Estreito de Taiwan, quem provocou primeiro, e quem está a minar a paz e a estabilidade no Estreito de Taiwan."

O mesmo editorial denuncia a "mentalidade hegemónica e lógica de gangster" dos EUA, e garante: “As contramedidas da China não serão pontuais, mas uma combinação de ações a longo prazo, resolutas e em constante avanço. (...)  As contramedidas da China têm como objetivo fundamental promover o processo de reunificação nacional." Ou seja, a reanexação de Taiwan.

A ilha passou a noite a ver os clarões e a ouvir os estrondos de disparos das forças chinesas para o Estreito de Taiwan, para além de ter registado a entrada não autorizada de 21 aviões chineses no Espaço de Defesa Aérea taiwanês. O ministro da Defesa de Taiwan disse, já esta quarta-feira, que as manobras militares da China violam as regras da ONU e invadem as águas territoriais da ilha, e considerou que “esta é uma movimentação irracional para desafiar a ordem internacional”. Também o governo do Japão condenou os exercícios militares chineses, acusando navios de Pequim de estarem a violar a zona económica exclusiva nipónica.

Seguindo alinhamentos políticos e geoestratégicos previsíveis, a China também recebeu o apoio de diversos países que censuraram os Estados Unidos por esta "provocação". Foi o caso da Rússia e da Coreia do Norte, vizinhos e dois aliados tradicionais de Pequim, mas também de países como Cuba e a Venezuela.

Na noite de terça-feira, o Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês emitiu um comunicado em que acusava os EUA de “violação severa do princípio de uma só China” e de “violar seriamente a soberania e a integridade territorial da China”, o que terá “um impacto severo na base política das relações China-EUA”.

Taiwan cercada por todos os lados

Quase em simultâneo, o Ministério da Defesa chinês anunciou a realização de um conjunto de manobras militares entre 4 e 7 agosto como aquela região nunca viu, com exercícios com fogos reais em seis zonas a toda a volta de Taiwan, nomeadamente área muito perto de Taipé no norte da ilha. O plano de Pequim significa, na prática, que Taiwan ficará cercada por navios de guerra chineses, no que poderá ser um ensaio de um bloqueio à ilha ou de mais “exercícios” deste tipo ao longo dos próximos tempos, perturbando o comércio marítimo de e para Taiwan.

A perturbação das rotas marítimas e da aviação comercial foi um dos efeitos dos exercícios militares que a China desenvolveu ao longo de meses ao largo de Taiwan em 1995/96, na chamada "Terceira Crise do Estreito de Taiwan". À época, a China desenvolveu campanhas sucessivas de assédio militar à ilha, com lançamento mísseis para o mar - Pequim quis com isso protestar contra o facto dos EUA  terem dado visto ao então presidente de Taiwan para discursar numa universidade, e perturbar as primeiras eleições presidenciais diretas no território. Os chineses não conseguiram nenhum dos seus objetivos, mas apostaram ainda mais no alargamento e modernização das suas forças armadas - a capacidade e os meios do Exército de Libertação Popular de hoje não tem comparação com o dos anos 90. As atuais manobras militares também não.

Estes exercícios deveriam começar apenas na quinta-feira, depois de Pelosi deixar a ilha, mas assim que se começou a desenhar uma reação muito crítica nas redes sociais pela falta de resposta pronta da China, ficou a saber-se que as manobras de intimidação sobre Taiwan haviam começado de imediato. O primeiro sinal disso foi a entrada de 21 aviões de combate chineses no Espaço de Defesa Aérea de Taiwan.

Tanto observadores chineses como analistas internacionais concordam que as manobras militares agora anunciadas não têm precedentes nas várias décadas de tensão nesta região - seja do ponto de vista da sua escala e intensidade, seja pela proximidade em relação a Taiwan e à sua capital. 

Lü Xiang, um investigador da Academia Chinesa de Ciências Sociais, disse ao Global Times que as movimentações da China não serão apenas uma ação momentânea, mas terão em conta "todo o mecanismo de segurança de Taiwan". "Com base nas informações divulgadas sobre os exercícios de 4 a 7 de Agosto, os seis locais cercaram a ilha de Taiwan de todas as direções, e poderá ser uma série de exercícios militares sem precedentes, destinados a realizar a reunificação pela força e também a lutar contra as forças externas que poderiam interromper o processo de reunificação", disse Lü.

Responsáveis norte-americanos, contudo, disseram ao jornal online Politico que as ameaças da China não são mais do que uma tática de intimidação. Em todo o caso, na terça-feira o Pentágono colocou quatro navios de guerra, incluindo um porta-aviões, em águas a leste de Taiwan, o que a Marinha dos EUA explicou como destacamentos de rotina. O porta-aviões, o USS Ronald Reagan, partiu de Singapura no fim de semana e estará ainda longe de Taiwan.

Arsenal de medidas, incluindo ciberataques e sanções económicas

As retaliações anunciadas pela China não se limitam à demonstração do poderio militar do gigante asiático perante a pequena ilha de 23 milhões de habitantes. Com tempo de sobra para preparar esta resposta, e com a fasquia alta depois vários dias sucessivos de retórica inflamada, Pequim procedeu também ao protesto político e diplomático junto do embaixador norte-americano, que foi chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas, mais importante, um conjunto de medidas económicas que poderão ter um forte impacto em Taiwan. 

Desde logo, o anúncio de que deixará imediatamente de exportar areia natural para Taiwan - o que poderá prejudicar a importantíssima indústria taiwanesa de semi-condutores. Para além disso, o governo chinês anunciou na quarta-feira de manhã a proibição de importação de citrinos e dois tipos de peixe de Taiwan. Estas medidas seguem-se à proibição de importação de milhares de tipos de alimentos, que já havia sido anunciada antes da chegada de Pelosi na terça-feira à noite. Entre os alimentos que deixarão de ser importados pela China, constam frutas e legumes, biscoitos, marisco, pescado e alimentos para bebés. São mais de 2 mil artigos diferentes, de acordo com uma análise do jornal Nikkei Asia. Qual a importância desta medida? Para além de visar a próspera indústria agro-alimentar taiwanesa, atinge em particular alguns círculos eleitorais importantes para o Partido Democrático Progressista (DPP, nas iniciais inglesas), o partido da Presidente Tsai Ing-wen.

O arsenal de retaliação chinesa também incluiu vários ciberataques a instituições e empresas de Taiwan. Ontem à noite, quando o avião de Pelosi estava quase a aterrar, o site do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Taiwan ficou inacessível devido a um ataque concertado, tal como havia acontecido pouco antes com a página oficial da Presidência.

"Eles não disseram nada quando os homens vieram"

Depois de pernoitar em Taipé, onde foi recebida por centenas de populares que saudavam a sua chegada, esta manhã Pelosi encontrou-se com membros do governo local, foi ao Parlamento de Taiwan, onde se encontrou com o vice-presidente (a presidente testou positivo à covid-19) e com outros deputados taiwaneses.

Mas o ponto alto da manhã foi a cimeira com a Presidente Tsai Ing-wen. A líder da Câmara dos Representantes elogiou Taiwan como “uma das sociedades mais livres do mundo”, recebeu a maior condecoração civil que Taiwan concede a estrangeiros, e garantiu a solidariedade americana à ilha, prometendo que os taiwaneses nunca serão abandonados pelos aliados. E ouviu a garantia de Tsai Ing-wen: “mesmo enfrentando uma ameaça militar deliberadamente exagerada, Taiwan não vai recuar. Vamos defender firmemente a soberania da nossa nação.”

Com as duas responsáveis políticas no centro das atenções, Pelosi ainda ensaiou uma explicação sexista para o facto de a sua viagem estar a causar tanta celeuma em Pequim. A líder da Câmara dos Representantes lembrou que ao longo de anos diversos congressistas e senadores dos EUA têm visitado Taipé, sem que a retórica ou as ações de retaliação de Pequim se aproximassem do que está a acontecer agora. "Acho que eles fizeram um grande alarido porque eu sou a líder [da Câmara dos Representantes]. Não sei se isso foi uma razão ou uma desculpa... Porque eles não disseram nada quando os homens vieram". Não é factual que a China não tenha protestado com outras visitas de políticos americanos homens, mas nunca o "alarido" foi tanto como nestes dias.

Segundo os meios de comunicação taiwaneses, antes de deixar a ilha durante a tarde (hora local) Pelosi tem agendados encontros com o presidente da Taiwan Semiconductor Manufacturing Co. (TSMC), o maior fabricante mundial de semi-condutores e uma das mais importantes companhias taiwanesas. Também tem conversas previstas com o antigo líder estudantil Wuerkaixi, que participou nos protestos da Praça Tiananmen, em 1989, bem como com outros dois ativistas pela democracia e direitos humanos: o livreiro e editor de Hong Kong Lan Wing-kee, que chegou a ser raptado pelas forças de segurança chinesas, acusado de vender livros ilegais na China continental, e ativista taiwanês pró-democracia Lee Ming-che, igualmente detido pelas autoridades chinesas, quando entrava na China através de Macau, sob acusação de atentar contra a segurança nacional.

"Apertem os cintos, isto vai ser intenso"

O facto de os militares chineses terem anunciado as coordenadas das seis áreas das manobras militares tem sido sublinhado pela comunicação social estatal de Pequim como um sinal de boa vontade e uma “última oportunidade” para os “independentistas” de Taiwan. Aquilo que muitos observadores veem como ações militares de grande envergadura é apresentado por alguns comentadores alinhados com o Partido Comunista Chinês como apenas uma amostra do que poderá vir a acontecer.

Taylor Fravel, diretor do Programa de Estudos de Segurança do MIT, foi um dos observadores que considerou os exercícios como sendo aparentemente "sem precedentes", observando ao jornal online Politico que pode ser "o maior número de exercícios a serem realizados muito perto da própria ilha de Taiwan, e o primeiro a ter lugar em todos os lados que rodeiam Taiwan".

Christopher Twomey, especialista em Ásia e professor na U.S. Naval Postgraduate School, com um livro publicado sobre dissuasão militar entre os Estados Unidos e a China, escreveu no Twitter que “temos de reconhecer que estamos numa grande crise militarizada, e começar a chamá-la pelo seu nome: a Quarta Crise do Estreito de Taiwan” (as três crises anteriores foram duas nos anos 50 e a terceira em 1995/96). 

Em defesa da sua tese, o investigador nota a dimensão dos exercícios militares da China, que estão previstos para o final desta semana mas “podem continuar de forma intermitente durante meses, [e] irão provavelmente ultrapassar os de 1995/96”. E esses exercícios podem implicar que o espaço aéreo de Taiwan seja sobrevoado por mísseis chineses. Para além disso, os dois porta-aviões da China estão em movimento, talvez a caminho deste teatro de operações. E o número de aviões que entrou esta noite no Espaço de Defesa Aérea de Taiwan, embora não seja inédito, mostrou músculo.

Mais: a declaração do MNE chinês é bastante dura, as sanções económicas já anunciadas foram “bem trabalhadas”, parece haver tentativas de ataque à moeda de Taiwan e a China também mobilizou o seu exército de hackers para ataques cibernéticos. 

“Tudo isto foi feito poucas horas após a aterragem do avião de Pelosi.  Eu diria que isso é bastante impressionante. Muita atividade coordenada através de uma série de instrumentos de Estado, alguns mais ponderados do que outros”. 

Porém, nota Twomey, “são precisos dois para fazer uma crise”. Do lado dos EUA, o especialista norte-americano verifica o poderio naval de Washington na região: “atualmente, os EUA têm 57 dos seus 111 navios operacionais ligados à 7ª Frota”, que opera no Pacífico. O investigador antecipa que os EUA quererão travar “qualquer aparência de sucesso coercivo chinês contra Taiwan, sobretudo para tranquilizar os nossos aliados na região”. Virá aí uma guerra aberta? 

“Não, não creio que isto seja um prelúdio para a invasão chinesa [de Taiwan], nem para [uma ação] preventiva dos EUA”, mas podemos estar à beira de “semanas e meses” de manobras de ambos os lados. Ou seja, “a escalada inadvertida é uma preocupação”, e Twomey confessa-se preocupado. “Apertem os cintos.  Isto vai ser intenso.”

"Impulsionar o processo de reunificação"

Se este especialista naval norte-americano aposta que “isto vai ser intenso”, mesmo sem esperar uma ação militar chinesa contra Taiwan, já os observadores ouvidos pelo Global Times apostam que, no fim do dia, é a reanexação de Taiwan que está em causa. “O que a China precisa de fazer é utilizar este incidente para maximizar as suas vantagens e continuar a impulsionar o processo de reunificação”, lia-se no texto que fazia a manchete do site esta manhã. 

Os mesmos “analistas”, quase sempre citados sem serem nomeados, fazem a correlação entre as manobras destes dias e uma futura intervenção direta na ilha: “os exercícios conjuntos marítimos e aéreos no norte, sudoeste e sudeste [de Taiwan] irão provavelmente aperfeiçoar as capacidades dos aviões de guerra e navios de guerra para apreender a superioridade aérea e o controlo do mar; os disparos de longo alcance no Estreito de Taiwan, com fogo real, irão provavelmente apresentar múltiplos lança-foguetes de longo alcance que podem atingir alvos na ilha de Taiwan diretamente a partir do continente; os lançamentos convencionais de mísseis para o leste da ilha significam que, se os mísseis fossem lançados a partir do continente, sobrevoariam a ilha de Taiwan”.

O texto vai mais longe e apresenta “muitas opções em cima da mesa para que a China acelere o processo de reunificação”: para além dos exercícios militares, “as opções poderiam incluir atingir alvos militares de Taiwan, tal como o ELP fez na anterior crise do Estreito de Taiwan (1995/96), impulsionando nova legislação para a reunificação nacional, enviando aviões e embarcações militares para entrar no "espaço aéreo" e "áreas aquáticas" da ilha controladas pelas autoridades de Taiwan e pondo fim ao cessar-fogo tácito com os militares de Taiwan.”

À semelhança dos textos do Global Times, as redes sociais chinesas tornaram-se uma vitrine de exaltação patriótica e de nacionalismo exacerbado. Para isso contribui o facto de a censura ter feito desaparecer, ao longo da noite passada, os comentários que começaram a surgir contra a hipótese de uma guerra por causa deste episódio. A oposição à guerra nem chegou a ser uma tendência no Weibo, a principal rede social da China, porque esses comentários desapareceram de imediato, para dar lugar apenas aos utilizadores que exortam ao confronto com os “traidores” de Taiwan e com a América. 

E, de repente, quase como que por magia, desapareceram dos fóruns de discussão os problemas da China com a covid e a política de covid zero, as dificuldades económicas que o país atravessa, ou os riscos ligados com a bolha imobiliária que ameaça afundar as finanças de milhões de famílias.

A ameaça externa pode dar a Xi Jinping o desígnio nacional que a política interna não tem conseguido.

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