A odisseia de Cristina no SNS. Regressou da Suíça com o sonho de abrir uma empresa, mas impediram-na de fazer um TAC e foi empurrada para a invalidez

25 nov 2023, 08:00
Ambiente hospitalar em tempos de pandemia

Tinha 29 anos e o “futuro pela frente” quando, juntamente com o marido, tomaram a decisão de regressar a Portugal depois de uma temporada a trabalhar numa corretora de seguros na Suíça. Quando uma dor ciática se alastrou pelo corpo, passou por mais de uma dezena de urgências de hospitais e centros de saúde até ser operada. Hoje, com 38 anos, não consegue trabalhar e está em risco de perder a casa e colocou a ARS Norte em tribunal

Cristina e o marido voltaram da Suíça em 2014 com um sonho. Depois de anos a trabalhar numa corretora de seguros, tinham poupado o suficiente para o empréstimo de uma casa e para se lançarem na aventura de criar a própria empresa. Ela tinha 29 anos e o “futuro pela frente” quando começou, numa noite em setembro a sentir dores de coluna “excruciantes” ao ponto de não se conseguir levantar sozinha. No espaço de cinco meses, foi admitida em uma dezena de hospitais e centros de saúde na região Norte que, segundo afirma à CNN Portugal, “discordavam entre si sobre os exames que tinha de fazer”. Nove anos depois, e um processo em tribunal por danos biológicos pelo meio, perdeu a capacidade de trabalhar. “Não temos solução”, diz ao mesmo tempo que se prepara para ser despejada da casa onde mora em Ponte de Lima.

Foi no Centro de Saúde de Paços de Ferreira que primeiro foi atendida de urgência, no dia 18 de setembro de 2016. “A consulta demorou uns cinco minutos, a doutora receitou-me medicação anti-inflamatória e saí, com alguma esperança de que as dores fossem passar rapidamente”, conta, explicando que durante os dias seguintes começou a sentir um formigueiro nas pernas.

Nessa primeira semana, não conseguia sair da cama do primeiro andar que estava a alugar em Lousada e, por isso, dedicou o tempo todo a estudar para o exame final de um curso de mediação de seguros em que se matriculou logo ao chegar a Portugal. Mas as dores não paravam e “eram cada vez mais invasivas”. O formigueiro que tinha “evoluía e evoluía” até perder a sensação total na perna direita.

Cristina foi diagnosticada com Síndrome da cauda equina/ D.R

Acabou por se dirigir novamente ao Centro de Saúde onde foi vista por um outro médico que, depois de a diagnosticar com uma hérnia discal, aconselhou-a pedir uma TAC à sua médica de família. “Nisto, já tinha passado um mês e quando fui à médica de família, já só conseguia andar de muletas. Disse-lhe que me tinha sido recomendada uma TAC e ela recusou essa ideia, garantindo-me que um raio-x seria perfeitamente suficiente para a situação em que estava”.

Cristina, conta, “fez mais uns dias de medicação”, enquanto acabava de estudar para o exame. “Com as dores que tinha não sei como é que passei, mas a verdade é que me deu muito orgulho, porque a partir desse dia, ainda acreditava que podia, com o meu marido abrir a nossa empresa, cumprir o nosso sonho”. Mas os dias seguintes foram enfrentados com “desilusão”. 

“Mesmo com a medicação, as dores começavam a agudizar-se, não havia melhoria nenhuma”. A 15 de novembro voltou às urgências, desta vez do Hospital de São João, “nessa fase já não conseguia sequer andar nem de muletas, tive de entrar de maca, porque não me conseguia deslocar de forma absolutamente nenhuma”. 

Na Urgência do São João, disseram-lhe, afirma, que precisava de fazer uma TAC, mas que, para tal, era preciso que a sua médica de família receitasse esse exame. “Eu disse, doutora, mas eu já fui à médica de família, e ela insiste que eu preciso de um raio-x, mas eu nem sequer consigo deslocar-me a uma clínica e estar numa sala de espera para fazer um raio-x, nem as entidades têm como me receber deitada”. 

A médica que a atendeu no São João decidiu, perante as respostas de Cristina, escrever, no relatório clínico, a aconselhar a médica de família a passar a TAC para averiguar o que Cristina tinha. Mas nem esse documento serviu. 

Cristina já não conseguia sair de casa sem assistência médica e foi o marido que “foi bater à porta” do centro de saúde a pedir que lhe fosse atestada a necessidade do exame. Mas a médica voltou a rejeitar essa necessidade. Foi aí que começou uma odisseia para realizar o raio-x exigido pela médica de família.

Já Cristina estava numa cadeira de rodas, quando ambos se dirigiram em primeiro lugar ao hospital da Santa Casa em Felgueiras, mas rapidamente descobriram que “não possuíam maca” para a atender. Depois, passaram para o hospital Padre Américo, em Penafiel - “foi exatamente a mesma coisa, estive lá várias horas e nem sequer cheguei a ser vista por médico nenhum, porque eu não tolerava qualquer tipo de posição a não ser deitada”. 

Só no Hospital de Santo António é que, à terceira, conseguiram realizar o raio-x, mas este exame acabou por não detetar nada e Cristina viria a ser aconselhada novamente a continuar a tomar a mesma medicação. “Foi o que fiz, até já nem sequer ter qualquer sensação nenhuma no corpo, era só dor, mais nada”.

Cristina só viria a realizar a TAC em janeiro de 2017, cinco meses depois do início dos sintomas. “Tive de recorrer ao privado, pagar mais de duzentos euros por uma consulta, porque, nessa fase, senti que já estava num buraco sem fundo, e que não havia forma de sair dali”. Depois de fazer o exame, a equipa clínica do Hospital da Trofa chegou à conclusão de que Cristina tinha de ser operada “com o máximo das urgências”. “Eles viram que eu tinha a medula e as raízes nervosas pressionadas por uma hérnia de grandes dimensões, ou seja, uma hérnia que esteve cinco meses a crescer ali”.

Durante esses cinco meses, Cristina e o marido tinham parado de trabalhar. Ela por não se conseguir levantar da cama e ele para cuidar dela. Os sonhos foram postos de lado e as poupanças “foram todas investidas neste momento em que ficámos em suspenso e numa situação complicada sem podermos reconquistar o nosso projeto”.

Ao mesmo tempo, já depois de mostrar à médica de família as conclusões do Hospital da Trofa, o Centro de Saúde garantia-lhe uma consulta de neurologia para dali a 111 dias.

Certo é que Cristina acabaria por voltar aos serviços hospitalares antes disso, no dia 11 de janeiro de 2017, depois de “desfalecer num misto de dor e de ansiedade no sofá da sala da avó”. A memória desse dia é lhe invadida constantemente por outra, o compasso de espera em que o médico se ausentou “uns cinco, dez minutos para conferenciar com outros clínicos”, antes de lhe dizer que já não iria sair do hospital Santo António. 

“Nesse momento, entrei em choque. O médico disse-me que não sabia se iria voltar a andar e que era uma emergência cirúrgica”. No dia seguinte, logo pela manhã, já estava no bloco operatório. “Felizmente fiquei a andar, mas perdi toda a sensação na perna direita, desde cima até baixo, não consigo mexer o pé, tenho espasmos na perna que por vezes me fazem atirar para o chão e cair”. 

Por causa destas “sequelas irreversíveis”, Cristina avançou com um processo no Tribunal de Penafiel, em 2017, por danos materiais, imateriais e biológicos contra a Administração Regional De Saúde Do Norte (ARS-N). Sublinha que o Centro de Saúde de Paços de Ferreira, ao não pedir a realização da TAC, impediu-lhe o diagnóstico precoce, não permitindo um tratamento que prevenisse os danos neurológicos que Cristina veio a sofrer.

Esses danos, conta, incapacitaram-na para voltar a trabalhar e recentemente reformou-se por invalidez. “Foi aí que me caiu a ficha e eu disse, realmente já não vou conseguir sair desta”. Cristina diz que hoje não aguenta estar sentada ou de pé durante longos períodos, “preciso de ajuda para tomar banho, preciso de ajuda para simplesmente levantar, fiquei completamente condicionada”. 

À CNN Portugal, ARS-N confirma o processo, "o qual segue a sua normal tramitação tendo sido objeto de contestação" e, garante a mesma fonte, "até à conclusão do mesmo, não se irão pronunciar sobre o mesmo processo".

Passaram nove anos desde que os dois decidiram regressar a Portugal com o sonho de criar uma empresa e uma família. Hoje, “são apenas recordações do passado”, e o casal está em vias de perder a casa onde mora em Ponte de Lima. “Eu de momento não consigo arrendar nenhuma casa com a reforma que eu tenho e por ser reformada por invalidez não consigo a obtenção de crédito para comprar a minha própria habitação".

Na página de Instagram que criou para partilhar as suas experiências de adoção de animais, durante todo o período em que viveu entre emergências de saúde, está publicado um vídeo que mostra Cristina na lareira com um dos cães que adotou. “Todos devíamos ter um lar quentinho, mas em breve esta nossa realidade chega ao fim. Que angústia”.

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