"Enquanto a seca se expande pelo sul do país há quem continue a regar campos de golfe, isso é imoral e irracional"

21 jun 2023, 07:00
Onda de calor em Portugal, seca na Figueira dos Vinho no rio Ribeira de Alge. (Patrícia de Melo Moreira/ Getty Images)

Portugal ainda não agiu de forma vigorosa para combater a seca e os especialistas avisam que ontem já era tarde - pedem para não se esperar pelo dia em que "já não haverá água nas torneiras". E dão exemplos: França impôs medidas como a proibição de lavar carros, de regar os jardins e de encher as piscinas. Mas há outra questão: aumentar o preço da água é mesmo uma medida necessária ou trata-se de demagogia? Ah, começou o verão

Está acontecer em 2023 o mesmo de 2022: mais ou menos por esta altura do ano passado, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) dava conta de que Portugal continental estava a viver uma situação de seca que era uma das piores dos últimos 100 anos; este ano, os dados mostram um cenário igualmente preocupante. Só no mês de abril de 2023, a seca praticamente duplicou - chegou a 89% do território, com 34% do continente em seca severa e extrema - e em maio a seca chegou mesmo a todo o continente, com 35,2% em seca severa e extrema. Os especialistas alertam que o problema tem de ser atacado estrategicamente e não têm dúvidas de que é preciso agir já, sobretudo nas zonas de maior risco.

Alexandra Azevedo, presidente da associação ambientalista Quercus, defende que Portugal deve seguir o mesmo caminho de outros países, restringindo ao máximo "todos os consumos que possam ser mais supérfluos, como a água das piscinas, dos relvados e dos campos de golfe". "No imediato, todo o tipo de consumos que não sejam aqueles consumos básicos, essenciais, têm de ser restringidos ao máximo", sublinha em declarações à CNN Portugal. Dá o exemplo dos espaços verdes urbanos,"que ainda estão muito assentes nos relvados": "Em plena seca extrema, ainda continuamos a ver muitos relvados perfeitamente regados, o que é um bocado chocante". Alexandra Azevedo admite que, "provavelmente, esse caminho só vai mesmo acontecer quando já não houver águas nas torneiras, o que não faz de todo muito sentido".

França é um dos países que já avançaram com medidas vigorosas para o sul do território: é proibido lavar os carros, regar os jardins e encher as piscinas. Também não é permitida a venda de piscinas de jardim, para "evitar que as pessoas sejam tentadas a enchê-las". As regras foram anunciadas pelo ministro francês da Transição Ecológica, Christophe Béchu, depois de a seca ter atingido o nível de "crise" em quatro distritos e em mais de 40 os níveis terem chegado a "alerta" ou "vigilância". "As alterações climáticas estão aqui e agora. Precisamos de sair da nossa cultura de abundância", justificou o governante. 

O investigador em alterações climáticas João Camargo não tem dúvidas de que "há consumos que são totalmente injustificados": "as piscinas em grande escala são absurdas" e ter campos de golfe "em regiões semidesérticas é uma afronta contra toda a gente que vive à volta desses campos de golfe, é imoral e irracional, obviamente". "As pessoas que querem jogar golfe devem ir jogar golfe na Irlanda ou na Escócia, que são os locais de origem do desporto - porque fazia sentido naquele clima", diz. "Nenhum campo de golfe devia ser regado neste verão porque é também uma exposição e uma manifestação de como a desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres se expressa mesmo nos momentos mais graves. Continuam a regar campos de golfe enquanto o deserto se expande pelo sul do país, enquanto mais de 40% do território está em seca extrema ou severa. Não há uma gota de água que devesse ir para esses campos."

A associação ambientalista Zero não defende, para já, a proibição total, mas não tem dúvidas de que deviam ser já implementadas medidas fortemente restritivas quanto à rega dos campos de golfe nas zonas de maior risco - o litoral alentejano e o barlavento algarvio. "Se calhar não proibia já mas limitava. Se calhar limitava fortemente a rega de campos de golfe, ou seja, esticava ainda mais a corda no que respeita ao uso da água nos campos de golfe", defende Francisco Ferreira.
 
Já em relação às piscinas, o ambientalista propõe "um programa à escala municipal para as piscinas grandes, que garantisse que não há perdas de água nas piscinas -  porque às vezes isso acontece até por causa de uma válvula". Por outro lado, defende uma campanha de alertas dirigida ao turistas para que estes tenham "ações de poupança mais vigorosas do que o normal". "Precisamos de uma mistura de alguma intervenção técnica com algumas medidas, não de proibição, mas de forte alerta e isso não está a acontecer. Se calhar não preciso de proibir já porque não estou com a corda na garganta, mas também não quero que a corda lá chegue. Se continuarmos assim, vamos chegar à proibição. A questão é evitar lá chegar", reitera Francisco Ferreira.
 
Quando questionado sobre a eventual imposição de medidas restritivas relacionadas com o consumo de água, nomeadamente a utilização da água para encher piscinas ou para regar campos de golfe, o ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, descarta para já um cenário proibitivo. "Não vale a pena estarmos a introduzir uma cultura de proibição quando ela, neste momento, ainda não é necessária", vincou o governante aos jornalistas.
Seca nas barragens em Portugal (Photo by Omar Marques/Anadolu Agency via Getty Images)

Água mais cara: medida necessária ou demagogia?

Há uma série de medidas que também têm sido objeto de discussão sempre que se fala sobre seca: fala-se muito em campanhas de sensibilização fortes e, não raras vezes, sobre um eventual aumento do preço da água como forma de dissuadir os consumidores de terem gastos desnecessários. Francisco Ferreira, da Zero, defende que essas são vias válidas para lembrar as pessoas do quão necessária é a poupança da água. 

"Preciso de ter uma campanha de sensibilização bem pensada e sistemática, coisa que não tenho. Estou a ouvir falar de seca nas notícias mas não tenho nenhuma campanha que já devia estar em vigor com sugestões, com alertas grandes. É também preciso mexer no preço da água, a água está muito barata em muitos municípios. Claro que temos de salvaguardar as famílias mais vulneráveis, mas tenho de ter um preço da água que lembre as pessoas de quão necessária é a sua poupança", defende Francisco Ferreira.

João Camargo tem outra opinião: o investigador diz que aumentar o custo da água é pura "demagogia" porque o consumo ao nível doméstico tem um impacto "irrisório" comparativamente com a utilização que é feita na agricultura e na indústria. "Acho que é propaganda e demagogia. A quantidade de água que é de facto consumida a nível doméstico é irrisória quando é comparada com a água que é gasta em agricultura e em indústria. Uma redução de 50% do gasto doméstico é irrelevante com uma redução de 5% do gasto agrícola. Quando estamos a falar de aumentar os preços da água, não estamos a falar de aumentar os preços da água para os agricultores ou para a indústria, é para as pessoas em casa, sendo que a maior parte delas não tem uma piscina, não tem consumos exorbitantes, é simplesmente demagogia e tentar exportar um problema estrutural pela maneira como a água é organizada para culpabilizar as pessoas." 

A presidente da Quercus, Alexandra Azevedo, lembra, quanto a esta medida, que "há aqui uma questão social" e que "haverá sempre descontentamento em relação a essas matérias". Mas considera que, "no imediato, todo o tipo de consumos que não sejam consumos básicos essenciais têm de ser de facto restringidos ao máximo". Por isso, defende a definição de um consumo considerado aceitável e suficiente para cada domicílio e fortes penalizações para as situações em que isso seja ultrapassado. "Aqui temos de ter em conta os consumos per capita - se estamos a olhar só por domicílio, corremos o risco de ter aqui uma grande injustiça, domicílios onde estejam pessoas a viver sozinhas ou com famílias reduzidas comparativamente a outras numerosas." 

Portugal 2040: risco elevado de stress hídrico

Apesar das fortes chuvadas que ocorreram em novembro e dezembro, e que ajudaram a repor os níveis em várias barragens, a seca voltou nesta primavera. Abril ficou marcado por três ondas de calor e os dados do IPMA mostram que foi o terceiro abril mais seco e o quarto mais quente desde 1931, tendo chovido apenas 23% do valor normal. Na região litoral Norte e Centro ocorreram "valores de precipitação mais significativos", mas nas "regiões do Nordeste Transmontano, Vale do Tejo, Baixo Alentejo e Algarve" os valores de percentagem de água no solo foram inferiores a 10%, "com alguns locais ao nível do ponto de emurchecimento permanente". "Isto vai acontecer cada vez mais e nós temos pouco tempo para de facto termos um planeamento que permita que Portugal não deslize fatidicamente para o deserto", frisa João Camargo.

A seca apresenta cenários muito distintos de Norte a Sul do país, mas os especialistas não têm dúvidas: há municípios nas regiões do Alentejo e do Algarve que já deviam estar a impor fortes medidas no terreno. "Há situações muito diferentes dentro do país. O Norte e o Centro têm albufeiras a 80%, mas o Barlavento algarvio, neste momento, já devia ter fortes medidas da parte dos municípios em termos de obras imediatas para reduzir perdas da rede, já deviam ter campanhas de sensibilização e já deviam estar a analisar onde existe margem de poupança - nalguma indústria ou em culturas agrícolas onde pudesse ser reduzido esse consumo", sublinha Francisco Ferreira.

O Governo reconhece que existe uma situação assimétrica e que há precisamente duas zonas do país que mais preocupam: o litoral alentejano e a zona do Barlavento. O presidente do IPMA, Miguel Miranda, alertou no final de uma reunião em que estiveram presentes os ministros do Ambiente, da Administração Interna e da Agricultura que "a probabilidade de precipitação até ao verão é baixa" e que isso vai criar "tensão em muitas áreas - no ambiente, no abastecimento, nas barragens, nos fogos". O planeamento, sobretudo nos concelhos de maior risco, pode ser essencial para evitar um verão de maiores dificuldades. Miguel Miranda avisou também que o país tem de se preparar com medidas estruturais para um "novo normal" provocado pelas ações climáticas.

Em Espanha está em marcha um plano de choque para combater a pior seca em décadas: 2,2 mil milhões de euros para apoios a agricultores e investimentos em infraestruturas que permitam uma gestão mais eficiente da água. A vice-presidente e ministra da Transição Ecológica, Teresa Ribera, anunciou que as infraestruturas não vão estar prontas neste verão, "como é óbvio", mas são consideradas essenciais porque o país, por causa das alterações climáticas, vai viver fenómenos extremos e episódios meteorológicos como secas ou inundações "cada vez mais frequentes e mais intensos". Em causa estão infraestruturas para dessalinização de água do mar, para reaproveitamento de água e "de conexão" e para transporte de água, a fim de diminuir a extração de recursos hídricos subterrâneos para fins como a agricultura.

Portugal, dizem os especialistas, deve também atacar o problema estrategicamente. Os estudos demonstram que, tal como Espanha, o país está cada vez mais ameaçado pela escassez de água e que desde 2000 tem registado valores de precipitação inferiores à média histórica. Numa projeção para 2040, o World Resources Institute classifica Portugal com risco elevado de stress hídrico. Por isso, os ambientalistas defendem um plano a longo prazo que seja mais do que um conjunto de medidas meramente reativas. 

"Devíamos ter um plano para uso eficiente da água que tivesse um período grande, por exemplo, de 2023 a 2030, com dinheiro, objetivos e monitorização definidos, ou seja, não estarmos a ser reativos mas estarmos a ser preventivos", salienta Francisco Ferreira. Este plano deve identificar "não apenas no Mira (rio)" mas "também noutros locais" que "culturas agrícolas é que podem ter de ser mudadas ou que têm de entrar em pousio - por exemplo, limitar os tubos regadios, reparar canais de rega para evitar as perdas". "Tudo isto são muitos milhões e são medidas que demoram tempo - fazer reparações num canal de rega pode ser às vezes num local de muitas dezenas de quilómetros", explica o porta-voz da Zero.

Seca em Portugal (Nuno Veiga/Lusa)

A "pradaria de plástico" alentejana e todas aquelas bagas "não fazem qualquer sentido"

Cerca de 75% da água em Portugal é utilizada na atividade agrícola e pecuária. Por isso, os especialistas sublinham que responder ao "novo normal" das alterações climáticas implica um novo olhar sobre estes setores e, consequentemente, várias mudanças, desde logo ao nível do tipo de culturas e de vegetação do país. "Isto significaria em boa medida mudar os tipos de colheitas que fazemos, a maior parte das colheitas que fazemos deixar de fazê-las -, portanto abandonar muito a agricultura de exportação, as famosas 'cash drops', e ativamente promover uma vegetação adequada à conservação da água e do solo, muito mais diversificada do que o que temos hoje. Significaria também a deseucaliptização em boa parte do território e a disseminação muito mais ampla de culturas agrícolas perenes", afirma João Camargo. 

O investigador frisa que, "em vez disso, o que temos tido é basicamente o incentivo a colheitas que não fazem qualquer sentido em termos de disponibilidade de água" e dá o exemplo do que acontece atualmente na paisagem alentejana, que, afirma, "está já descaracterizada em relação àquilo que era". "Todas aquelas culturas que estão disseminadas naquela espécie de pradaria de plástico no litoral alentejano, todas aquelas bagas, todos aqueles frutos vermelhos que, em pequena quantidade, não seriam um problema mas que se tornaram superextensivas e não fazem qualquer sentido. Temos também uma série de culturas que não necessitariam de água, pelo menos não da forma intensiva como têm, que se estão a tornar totalmente maciças, nomeadamente o olival intensivo e o amendoal. São culturas que até podiam existir mas que com a intensidade que têm e regadas não fazem qualquer sentido", vinca João Camargo. 

Sobre a importância do regadio, o especialista diz que "pode e deve haver algum nível de regadio" mas "dedicado a agricultura que faz sentido". "Se neste momento temos de compensar a falta de água com expansão de regadio e, ao mesmo tempo, temos um aumento de temperatura que vai fazer com que percamos ainda mais água, estamos a deitar aquela água fora e muito dinheiro também". Para o investigador, o país deve implementar "um nível de planificação" abrangente e lembra que, tecnicamente, "todos os países sabem o que é que deve estar em cada território, só que esse conhecimento científico é profundamente desprezado e ignorado perante os rendimentos irracionais a curto prazo".

Na mesma linha, Alexandra Azevedo, da Quercus, afirma que, apesar de existirem fenómenos relacionados com as alterações climáticas que "ainda não compreendemos na totalidade", "é perfeitamente conhecido que a chuva só existe com o ciclo da água regulado e que isso acontece através das florestas". "Portanto, sem florestas não vai haver água e há uma frase muito simples - que é 'a água planta-se' - que tem que ver precisamente com isto", nota. "Se queremos ter água, temos de ter vegetação e vegetação nativa. Agora que estamos na década do restauro ecológico, isto faz pleno sentido. Mas o que é que acontece na prática? Temos legislação e práticas, muitas vezes abusivas, ao nível das limpezas para a prevenção dos fogos rurais que estão nesta lógica de mais desflorestação porque há uma desmatação indiscriminada e abate de árvores que deveriam ser protegidas. E não estamos só a falar apenas das que já têm proteção, como as azinheiras e os sobreiros, mas das árvores que são reconhecidamente importantes . como é o caso dos carvalhos, castanheiros, freixos", explica. 

"Continuamos a repetir o ciclo de colapso. Já houve outras civilizações que passaram por este processo de avanço das atividades humanas da expansão urbana, que foram desflorestando o bosque natural, criando as tais secas, pondo em causa a produção de alimentos, causando fome e obrigando as populações a fugir ou a morrer. Neste caso, as proporções são de menor dimensão e a boa noticia é que há conhecimento e soluções para isto, nomeadamente um novo modelo de agricultura", conclui Alexandra Azevedo. 

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