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Professor de História, 58 anos, Agrupamento de Escolas D. Carlos I - Sintra

Dos computadores "em avançada fase geriátrica" a uma sala de aula que mais parece "uma sauna": os retalhos da vida de um professor

26 out 2023, 23:22
Escola

A aula vai começar e, enquanto os alunos vão entrando, inicia-se o ritual que se repete várias vezes ao dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano. Dado que os computadores das salas de aula, em avançada fase geriátrica, com mais de uma década, com software e hardware desatualizados, não oferecem garantias de bom funcionamento e deixaram de ser opção confiável, o professor retira da sua mochila o computador pessoal, o rato, a pequena coluna de som, o adaptador para ligar o cabo VGA do videoprojetor e o hotspot que garantirá uma internet razoável sempre que a rede WiFi da escola falhar, pois todos sabem que isso acontece amiúde e quando está disponível move-se apenas em duas velocidades - devagar e devagarinho. Quanto ao sumário, já nem se tenta registar na aula, pois o programa informático para o efeito (designado por E360, embora lhe assentasse melhor EZero), da responsabilidade direta do Ministério da Educação e pago com o dinheiro dos contribuintes, é uma vergonha inominável: lento e nada intuitivo, incapaz de devolver estatísticas e relatórios significativos, ou sequer numerar os sumários automaticamente, não permite a justificação de faltas pelos encarregados de educação (daí resultando um acréscimo de trabalho burocrático) e mantém alertas de excesso de faltas, na página de entrada, relativos a alunos que estão agora, três anos depois, a concluir o Secundário noutras escolas. Brilhante! Fechado este parêntesis e reunida a parafernália tecnológica que parece ser suficiente para uma aula mais envolvente, dinâmica, motivadora e enriquecedora, passamos à próxima fase de desenvolvimento do processo educativo: no meio do calor sufocante que faz com que os alunos já tenham tirado umas folhas dos cadernos para improvisarem uns leques, pois isto não é bem uma aula, é uma visita de estudo a uma sauna, liga-se o videoprojector, que grita (numas salas com mais ruído que noutras) há muito tempo por substituição e logo surge no ecrã o aviso que já ninguém nota: “substituir lâmpada”! Logo de seguida, surge também o pedido do professor a que os alunos já se habituaram: “apaguem as luzes e desçam os estores, por favor” (aqueles que se conseguem descer, pois muitos estão avariados, esperando por intervenção da autarquia há longos meses). Mesmo assim.… com a sala escurecida no máximo das possibilidades, o que se consegue vislumbrar no ecrã é pouco mais que uma imagem ténue, desfocada e difusa, pois a lâmpada do videoprojector já ultrapassou há muito o seu tempo útil de vida e faltam lumens, precisamos de lumens, e não há lumens!

Também precisamos de recuperar o tempo de serviço congelado, precisamos de ter menos turmas por professor, menos alunos por turma, menos falta de professores (com a devida qualificação científica e pedagógica) menos indisciplina e mais respeito, menos falta de técnicos especializados, psicólogos, terapeutas, mediadores sociais, professores de apoio e educação inclusiva, menos instabilidade e mais justiça nos concursos de colocação de professores, menos hipocrisia política e mais verdade, com efetivas ajudas de custo à deslocação e alojamento, menos professores qualificados a abandonar o sistema e uma carreira mais atrativa que cative os melhores, menos medo e mais direitos e poder deliberativo dentro da escola, menos absolutismo e mais inteligência emocional na gestão escolar, menos competição e menos injustiças no processo avaliativo, menos burocracia, menos papéis, menos redundâncias, tabelas e grelhas, mais tempo para pensar, ler, estudar e organizar, menos pressão para um sucesso estatístico e mais confiança no trabalho dos professores, menos foguetório panegírico nos Planos de Atividades e mais auditórios dignos desse nome, que abram portas a mais Cultura e Cidadania.

Enfim, precisamos de tudo isto e muito mais, mas o professor Ricardo, naquele dia e àquela hora, precisava mesmo era de lumens, e lumens era o que não havia, e quase nada se via, mesmo com as luzes apagadas e cartolinas pretas, coladas de improviso, nas janelas novas com estores velhos e danificados. Ainda assim, e apesar de todas estas limitações, a aula avança, o trabalho decorre, há textos para ler e analisar, animações, vídeos, tabelas, mapas, gráficos e outros documentos para ilustrar, interpretar, demonstrar e explorar, e lá vão trabalhando... professor e alunos, em colaboração constante, “navegando à bolina” da tecnologia disponível, mesmo que às vezes, quando se pretende registar e preencher no quadro, com a participação dos alunos, um esquema, um mapa de conceitos, um friso cronológico, ou fazer qualquer tipo de anotação, seja necessário desligar o projetor e subir o ecrã, pois o quadro (que tem 40 anos e também já pede reforma) fica por detrás do ecrã onde se projeta a imagem do videoprojetor. Logo depois, voltaremos a ligar o projetor, descer o ecrã e continuar a aula, com as condições que (não) temos! Podíamos trabalhar só com o manual e com fotocópias, acetatos, retroprojetores, ou com mapas pendurados no quadro, cassetes VHS e aulas meramente expositivas? Poder, podíamos, mas... não era a mesma coisa! Agora, há mapas interativos, e animações 3D, e visitas virtuais a monumentos e outros destinos de interesse histórico e patrimonial, e Google Arts & Culture, e tantas outras bibliotecas digitais e plataformas de recursos educacionais, gamificação e avaliação formativa, enfim, ferramentas que enriquecem o processo educativo e que devem estar disponíveis para todos, em todas as aulas, em todas as salas, em todas as escolas! Naquela sala de aula, naquele dia, a aula chegou ao fim e, apesar do calor sufocante e de todas as limitações, trabalho foi feito, aprendizagem foi conseguida, com a dedicação e empenho de professor e alunos! Como acontece em tantas salas de aula semelhantes, e com tantos milhares de alunos e professores por este país fora! Com vergonha alheia de um ministro e um governo, que (mal)trata assim a Escola Pública e todos aqueles que lhe dão vida e sentido! E que merecem mais, muito mais, em particular, Respeito, Justiça, Valorização e... Investimento!

Aquela aula terminou, mas o dia continuou, outras aulas se seguiram e à noite houve trabalho de direção de turma para fazer, documentos para preencher, dados para coligir, registos diversos para inscrever em papeladas sem fim, aulas para pensar e organizar, correspondência eletrónica para colocar em dia, um sem número de tarefas, que consomem e aspiram tempo da vida pessoal e familiar, muitas vezes adiada e irrecuperável. É assim a vida de um professor, com a sorte de ter a família sempre por perto e a estabilidade profissional que muitos milhares de colegas ainda não alcançaram! E é por tudo isto, e por todos nós, que vale a pena continuar a lutar, em defesa da Escola Pública, de uma Educação de Qualidade, e de um País com futuro! Aos pais, e respetivas Associações, que leram este texto, deixo a pergunta direta e sentida: o que falta ainda, para chegarem?

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