Ainda não é um lugar, mas um projeto que existe graças a gente nova, tão nova que ainda não era gente no tempo em que o Estrela da Amadora se batia entre os grandes. Ainda não tem a Taça de Portugal, que foi penhorada. Mas eles recuperaram muito do espólio perdido. Viagem ao passado, presente e futuro no José Gomes
No Estádio José Gomes pintam-se paredes e muros, há uma azáfama permanente de obras que vai continuar por muito tempo. Na parede exterior onde foram impressas em letras gigantes as palavras Museu Tricolor, uma porta dá para um espaço sob as bancadas que acumula cadeiras, caixotes, pastas. Aqui não há troféus. Há muitos numa outra arrecadação, amontoados. E há alguns expostos no refeitório, em gabinetes. Entre eles não está a Taça de Portugal. Penhorada no processo da insolvência do Estrela original, ela ainda não voltou a casa. E o Museu Tricolor ainda não é um lugar, ainda não é mesmo um museu. Mas é uma ideia, em nome da qual um grupo de adeptos pôs mãos à obra e salvou muito património do clube. Um projeto de gente nova, tão nova que ainda não era gente no tempo em que o Estrela da Amadora se batia entre os grandes. Alguns deles nem eram nascidos quando o Estrela venceu a Taça, em 1990.
Começaram quando o futuro ainda era uma incógnita, a tentar reunir o espólio que andava perdido, a procurar o que sobrou no meio da devastação. Resgataram troféus, galhardetes, documentos, tudo o que encontraram. E através dessa memória estão a fazer investigação histórica sobre o clube e a cidade.
Têm em comum a ligação ao Estrela. A ideia andava há muito na cabeça de Marco Fernandes, 34 anos, que é do Estrela desde que se lembra. Fundador da claque Magia Tricolor, é agora vice-presidente do clube para o património. Mas na altura era «só», este só entre aspas, alguém que gostava do Estrela e se dedicava também a guardar memórias do clube. «Há 3, 4 anos, criei um pequeno museu com as minhas coisas de coleção. Depois passámos à ideia que eu já tinha há muito tempo de criar um museu.»
Marco não consegue explicar bem de onde vem a paixão pelo Estrela. «Não sei. Há pessoas que gostam de sair à noite. Eu não, gosto de ir para o estádio, ler atas antigas. Sou do Estrela há muitos anos. E tive a sorte de conhecer algumas pessoas que se dedicavam também ao Estrela e foram-me passando alguns conhecimentos.»
Uma dessas pessoas foi Cuca, figura de referência do Estrela, onde fez de tudo, e que se dedicou a «preservar o Estrela da Amadora e a sua memória». «Quando eu era pequenino sentava-me no café com ele e ficava horas a ouvi-lo falar. Antes de falecer, ele ofereceu-me aquilo que era um bocado o resumo da história do Estrela, escrito à mão», conta Marco.
Dentro da Magia Tricolor foi criado o núcleo CuCa, a que está associado o projeto do Museu Tricolor. A ideia é juntar as ideias de cultura e cachecol, explica Marco. «Foi mais ou menos assim que começou: criar um museu feito por nós, adeptos e sócios, para os sócios, adeptos e simpatizantes.»
O grupo do Museu Tricolor, como existe agora, nasceu durante a pandemia, conta por sua vez Daniel Santos, um de três elementos com formação em história que integram o projeto: «Estávamos entre confinamento e desconfinamento. Nós já éramos sócios do clube. Somos da Amadora, gostávamos do clube, e três de nós já nos conhecíamos também da licenciatura de história. Começámos a conversar e aliámos interesses e curiosidades, para tentar perceber o que era feito do património do Estrela da Amadora. Por uma questão de preocupação com a história, para perceber onde podíamos ajudar. Foi algo espontâneo.»
Uma noite na antiga sede, entre fezes e seringas
Começaram por tentar reunir património disperso. À mercê da intempérie e também do saque, muito do espólio desapareceu e o que ficou foi-se degradando. «Muitas peças estavam estragadas, muitas já tinham sido roubadas. Fomos procurando, conquistando e preservando o que estava ainda para preservar», diz Marco Fernandes.
O José Gomes esteve ao abandono durante anos, enquanto se arrastava o processo de insolvência do Estrela. A sede antiga do clube também.
Eles estiveram lá e Marco descreve o que encontraram. «Há dois anos fomos à antiga sede, que estava completamente abandonada aos sem abrigo e aos toxicodependentes. Falei com o responsável pela venda do imóvel, que ainda está à venda, avisei-o que íamos lá no intuito de tentar preservar as coisas e não de assaltar aquilo. Fomos lá recuperar aquilo que para essas pessoas não tinha valor para vender. Conseguimos recuperar algumas coisas, por exemplo peças do boxe dos anos 60, 70, 80, por aí fora. Da esgrima, também. Para chegar a uma folha no chão tínhamos de passar por fezes de animais, fezes humanas, seringas. O teto estava a cair.»
Ainda assim, ter-se-á perdido muito do património do Estrela. «Eu apontaria talvez para 60 por cento», diz Marco. «O Estrela era um clube muito eclético. A quantidade de coisas que ali falta, das modalidades todas…», desabafa: «O Estrela infelizmente não teve muita gente que se preocupasse com o património do clube.»
«Há coisas que temos consciência que desapareceram, até porque temos fotografias, sobretudo a nível de troféus. Aquilo que encontrámos, apesar de ser considerável, está longe de ser todo o património que certamente o Estrela tinha», reforça Daniel Santos.
Muito do que encontraram também no estádio estava degradado. «Retirámos algumas coisas de uma sala para outra, porque parte do que encontrámos estava numa sala onde chovia e estavam completamente oxidadas», diz Daniel Santos.
É um trabalho em curso. «Começámos por tentar organizar pelo menos aquilo que ainda existia. Ainda não está fechada a organização, porque é um trabalho gigantesco e nós fazemos isto nos tempos livres», diz Daniel, que tem também formação em museologia, enquanto Andreia Louro, que também integra o grupo, tem formação adicional em património.
Das fichas de sócios à história maior: memórias da ditadura
O trabalho tem outra vertente: a pesquisa histórica. «A ideia do projeto também foi essa. Tentar perceber como é que podíamos não só resgatar as histórias do Estrela da Amadora, mas como é que elas se podiam conectar com histórias maiores, ligadas à história do Estado, à história da própria Amadora. Ou seja, conseguirmos uma base sólida de conhecimento sustentado que possa ser útil para o futuro», diz Daniel. «Resgatar as memórias de um passado operário, tanto ligadas à cidade e ao clube, é fundamental para não nos esquecermos de onde viemos.»
A partir de registos antigos de sócios, por exemplo, eles já fizeram «uma pequena investigação», uma de várias que publicaram em meio académico e apresentaram em conferências e congressos de história.
Procuram pistas para refletir, por exemplo, «sobre os tempos da ditadura do Estado Novo, algo fundamental se queremos também servir as comunidades da Amadora, sobretudo em idade escolar», continua Daniel, que conta como nas décadas de 40 e 60 era comum encontrar no Estrela figuras conotadas com a oposição ao regime, como Celestino Boiça Ferreira, eleito presidente do Estrela em 1955 e foi preso em 1958 pela PIDE devido à sua atividade política. O que levou «a rusgas à sede do Estrela, procurando ‘livros proibidos’ na pequena biblioteca do clube.»
Também esse é um trabalho em curso. «Encontrámos muita papelada, muita documentação, que temos de ver com olhos de ver. Há imensa papelada sobre os mais diferentes assuntos», conta Daniel.
O grupo estabeleceu também contacto com vários projetos de museus desportivos. Em Portugal, em particular com o museu do Benfica. «Estivemos recentemente no congresso internacional promovido pelo museu do Benfica», conta Daniel: «Depois tivemos também outros contactos com museus internacionais na Holanda, na Alemanha.» Visitaram os museus do PSV Eindhoven, do Eintracht Frankfurt, do St. Pauli.
Têm sido eles a suportar os custos. «Ao início quisemos até um pouco vincar a nossa independência nesse aspeto. Decidimos levar isto avante com os recursos que tivermos», diz Daniel: «Para o que fizemos não precisávamos ainda de grandes recursos. Algumas visitas que fizemos foi dinheiro que saiu do nosso bolso. Uma ou outra vez isso também foi conciliado com viagens que fizemos de âmbito profissional ou de lazer. Felizmente, ainda não precisámos de muito budget.»
Será necessário sim, acrescenta, para um trabalho mais profundo de restauro. «Nós não temos as competências profissionais para conseguirmos restaurar em pleno todo o património. Temos alguns conhecimentos sobre como podemos fazer a limpeza superficial sobre as peças, mas não podemos fazer muito mais do que isso.»
Com as taças de um lado para o outro dentro do estádio
O trabalho continua, enquanto o Estrela começa a ver finalmente luz ao fundo do túnel. Tudo aconteceu muito depressa nos últimos anos: a fusão do Clube Desportivo Estrela (CDE), sucessor do original, que deu origem ao atual Club Football Estrela e à SAD, a evolução desportiva da equipa até à II Liga, a recuperação em leilão do Estádio José Gomes. As obras no estádio, onde o Estrela voltou finalmente a jogar há um mês e que continuarão nos próximos tempos, para uma remodelação profunda José Gomes.
E no meio disso, eles a cuidarem do espólio. Muitas vezes a terem de mudar as taças de um lado para o outro: para camarotes, para arrecadações, de sala em sala. «Tínhamos uma oficina, tivemos de abdicar da oficina porque a Liga precisava do espaço para fazer a sala do antidoping», conta Marco. «Tivemos de carregar tudo para outro espaço. Depois a Liga exigia mais um balneário, então tivemos de mudar tudo outra vez. Tem sido um bocadinho difícil, por termos de andar a carregar as coisas e não podermos fazer aquilo que queríamos fazer, que era pegar numa Taça, limpá-la toda, restaurá-la toda, divulgar às pessoas.»
«Com as voltas que o Estrela deu nos últimos anos as coisas foram-se complicando em algumas coisas e facilitando noutras para o Museu Tricolor», resume Marco.
«Orgulho em ter jovens a olhar para o Estrela como eles olham»
Com as voltas que o Estrela deu, agora já é possível pensar em planos para o futuro. A criação de um museu físico é também um projeto dos responsáveis pelo Estrela, clube e SAD. Quem o diz é o presidente do Estrela. José Manuel Francisco, que lidera o clube desde o final de 2021 e esteve também ligado a criação do CDE e depois à fusão que deu origem ao atual Estrela, hoje já com quatro mil sócios, começa por falar em «orgulho» no que tem feito o projeto Museu Tricolor.
«Para nós é uma alegria imensa ter jovens que olham para o Estrela como eles estão a olhar. A paixão que têm, a forma como se entregaram a esta causa de uma forma muito proativa e bonita. São fins de semana inteiros, noites inteiras até às 3 ou 4 da manhã a limpar salar, a limpar taças, a ir buscar arquivos, a arrumar papéis, a ler documentos. Ainda temos muito trabalho para fazer. Mas partir da forma como partiu dá-nos muito orgulho», diz.
Como irá evoluir este projeto, ainda está por decidir. «Depois de reunir o espólio, e isso eles estão a fazer, estão a organizá-lo, estão a catalogá-lo, o passo seguinte é arranjar um espaço condigno para aquilo que entendemos para o museu. Se será no estádio, se será noutro sítio, terá de ser um espaço condigno», acrescenta o presidente do clube.
E a Taça de Portugal, que é feito dela?
Antes disso é preciso que fique concluído o processo legal da insolvência. Dele depende também a definição da guarda do património. Explica José Manuel Francisco: «Quem fez a compra foi a SAD, no leilão do estádio, que inclui o espólio. Está estabelecido em protocolo que o espólio será sempre gerido por parte do clube. Porque é daí que vem. Agora, em termos de poder patrimonial, será sempre da SAD. Obviamente, quando isto estiver encerrado haverá um acordo entre clube e SAD de uma cedência, de uma parceria, partilha, o que seja, do espólio do clube, que será sempre gerido pelo clube.»
O regresso ao José Gomes da Taça de Portugal que o Estrela conquistou em 1990 também está dependente da conclusão do processo legal. O maior troféu da história do clube não se perdeu entre a devastação. Foi penhorado no âmbito de processos envolvendo antigos jogadores, entre eles Moses Sakyi. Está na posse do advogado Cassiano Neves que, segundo contava o Diário de Notícias em 2021, a teria guardada na garagem da sogra.
«Está dada a um credor como título de garantia», diz José Manuel Francisco: «Assim que a insolvência terminar, a Taça voltará à posse do titular original, que é o clube. Portanto, assim que se fizer a escritura e estiver tudo formalmente feito sobre o que foi a compra, a Taça voltará ao estádio e ao sítio de onde nunca devia ter saído.»
O Museu «será sempre um projeto deles»
Quanto ao museu, o presidente do clube diz que, no que depender de si, «será sempre um projeto deles», de quem constitui o Museu Tricolor: «Foram eles que iniciaram este projeto, o projeto será sempre deles, terá todo o apoio que o clube possa dar. Temos estado o máximo possível do lado deles, se bem que 98 por cento do trabalho é deles, que fique claro. A única coisa que nós dissemos foi: livre acesso, estejam à vontade, vejam o que precisam.»
Marco Fernandes espera que o que vier a ser feito conte de facto com eles. «Acho justo que quem está preocupado com todo o tipo de taças, e têm sido muitos anos a trabalhar no meio de uma sucata autêntica, deve ficar responsável.» A sua ideia original, explica, passaria por entregar a guarda à Magia Tricolor. «Da minha parte tento sempre junto das pessoas, quer o administrador quer o presidente da Comissão de Credores, que as coisas fiquem na posse da associação Magia Tricolor e por sua vez do Museu Tricolor. Acho que faz sentido assim. O projeto do Museu Tricolor é suportado pela associação Magia Tricolor, que é a claque do Estrela, é a associação mais antiga e envolve nos seus estatutos o antigo Estrela, o novo e o futuro Estrela.»
Mas, no fim de contas, diz Marco Fernandes, o importante é que um futuro museu seja um projeto para quem gosta do Estrela. «Temos de estar todos em sintonia para que o projeto tenha pernas para andar. Mas eu quero que fique bem explícito que é um projeto de sócios para sócios.» Daniel Santos também espera que haja «simbiose de interesses» numa decisão futura.
Até lá, o Museu Tricolor vai continuar a trabalhar e a promover algumas iniciativas junto dos adeptos, como tem feito ao longo destes anos em ocasiões especiais como o dia da criança, em debates ou em visitas pontuais ao estádio.
Marco Fernandes gostava de avançar em breve um pouco mais com o projeto, mesmo sem uma casa definitiva para o museu. «Gostava muito de conseguir receber pessoas já no final da época desportiva, apontando para junho, julho. O estádio vai continuar em obras, mas queria pelo menos fazer algum espaço enquanto o projeto não avança e não se constrói, para receber as pessoas e cativá-las para virem a frequentar o futuro museu.»
Um espaço vazio à espera da Taça de Portugal
Por enquanto, ele vai promovendo visitas pontuais ao estádio. Nessas visitas mostra o local onde está a Taça da II Liga de 1992/93, o segundo mais importante troféu do Estrela. Essa foi preservada. Estava em bom estado, mas com algumas das inscrições danificadas. O Estrela contactou a Federação e conseguiu devolver-lhe o aspeto original.
Ao lado há uma fotografia da Taça de Portugal e por baixo um espaço vazio, à espera de receber o troféu original. «Quando fazemos as visitas ao estádio, aproveito para as pessoas verem que falta ali um troféu e depois explicar um bocadinho porque é que o troféu ainda não chegou.»
Não é só sobre a Taça de Portugal que fala. «Não se pode só lembrar duas peças quando há toda uma história por trás. É isso que o projeto Museu Tricolor tenta explicar às pessoas e passar às pessoas, quando fazemos as visitas ao estádio e mostramos a realidade: mostrar que não estamos preocupados com a Taça de Portugal, nem com a Taça da II Liga. Estamos preocupados com tudo.»