A história de um craque esquecido e de um menino argentino muito especial, com uma digressão por Portugal lá pelo meio
Os olhos de uma criança não iludem. Honestos, sinceros, gravadores de experiências e memórias. Testemunhas privilegiados de aprendizagem e saber.O que pode valer uma simples ida ao futebol nos verdes anos da infância?
Todos os que amam o jogo têm recorrentes ataques de nostalgia. O pai de mão dada, a bancada cheia, aquele golo que provavelmente não foi tão bom como julgámos, o cachorro quente que sabia a iguaria perfeita, a bandeira a tocar-nos o cabelo e a face.
Jorge Mario Bergoglio não é diferente. Na ostentação do Vaticano continua a ver futebol e a sofrer pelo seu San Lorenzo. A investidura sacra esconde um hincha
Foi, precisamente, no mítico estádio do Ciclón
No famoso título argentino de 1946, Pontoni foi especialmente decisivo. Jorge Bergoglio falou, de resto, recentemente sobre o antigo avançado argentino.
«Recordo quando era criança e ia ao estádio, particularmente durante o ano de 1946. Ia com os meus pais e fiquei impressionado com Pontoni. Nunca me esquecerei de um golo dele»
O pequeno Jorge tinha, então, nove anos. O golo de que fala foi marcado por René Pontoni ao Racing Avellaneda, a 20 de outubro de 1946. O San Lorenzo venceu por 5-0 e garantiu nessa tarde o título argentino.
O Papa Francisco chorou como nunca antes chorara num campo de futebol.
As crónicas da época descrevem o momento de Pontoni como se de uma fábula se tratasse.
«De La Mata centrou para a área, em busca do Maestro Pontoni. Este recebeu a bola de costas e marcado por dois defesas, Yebra e Palma. Virou-se e controlou de peito. Deixou a bola flutuar no ar durante um tempo que pareceu eterno, sorte de malabarista, e sempre sem a deixar cair fugiu para a direita rematou cruzado. Bateu Ricardo, guarda-redes do Racing, mas o público só segundos mais tarde foi capaz de celebrar. No instante imediatamente a seguir ao golo, limitou-se ao assombro»
La Chancha
Os olhos de criança não esquecem, mesmo que sejam rodeados diariamente pela riqueza anormal incrustrada em janelas, paredes, vitrais ou altares do Vaticano.
Nem a seleção de Portugal escapou a Pontoni
René Alejandro Pontoni perdeu os pais cedo, demasiado cedo. Ganhou os primeiros anos de vida a vender ovos e foi resgatado da mais profunda pobreza pelo futebol. Nasceu a 18 de maio de 1920 no bairro de La Facultad
Ao Club Gimnasia y Esgrima de Santa Fé chegou com 12 anos. Por lá limou a sua exuberante riqueza técnica. Daí rumou ao Newell’s Old Boys, onde esteve de 1940 a 1945. Foi no San Lorenzo de Almagro, porém, que se deu a conhecer ao pequeno Jorge e ao mundo.
Entre 1945 e 1948 fez 98 jogos e 66 golos. Chegou à seleção da Argentina e estabeleceu uma marca que nem Maradona nem Messi lograram alcançar: um golo por jogo de média. 19 internacionalizações, 19 golos em representação da alvi-celeste.
Conquistou por três vezes a Copa América.
Depois do tal ano de 1946, Pontoni integrou a comitiva do San Lorenzo numa digressão pela Península Ibérica. Efetuaram nove jogos em Espanha e um em solo português. Foi em Lisboa, a 2 de fevereiro de 1947, que o Ciclón
René Pontoni marcou cinco golos, Peyroteo, Jesus Correia e Rogério Pipi (2) atenuaram as dores lusitanas.
A história perfeita de Pontoni acabou em 1948. Uma entrada bárbara de um adversário (Rodolfo de Zorzi), num jogo contra o Boca Juniors, na Bombonera
Voltou para jogar na Colômbia, no Brasil e encerrou a carreira com quatro jogos penosos no San Lorenzo. Abandonou o futebol em 1954.
20 anos depois foi eleito pelo jornal El Gráfico
«Tenho saudades do futebol. Acho que fui capaz de o jogar mais ou menos bem»
Faleceu com 62 anos, em 1983, vítima de um enfarte. Ficou para a história como o homem que fez chorar o menino Jorge Bergoglio, o Papa Francisco.