opinião
Psicólogo e Presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses

E se Vladimir Putin beneficiasse de intervenção psicológica?

5 mar 2022, 12:00

"Psicologia em tempo de guerra" é uma rubrica feita em colaboração com a Ordem dos Psicólogos

Começo por fazer um statement inicial onde reconheço não saber se o presidente russo tem ou já teve, alguma vez, acompanhamento por parte de um psicólogo. Mas, na verdade, podendo estar a cometer um erro, arrisco dizer que isso será improvável. Não porque esteja a fazer qualquer exercício de adivinhação ou, muito menos, porque identifique seja o que for na sua personalidade. Ainda que sendo uma figura pública mundial, que tantas vezes e ao longo de tantos anos ouvimos fazer declarações a propósito dos mais diversos temas, é impossível, do ponto de vista da ciência psicológica, traçar um perfil sério a partir disso mesmo.

Também não se trata de induzir que o presidente russo possa estar a sofrer de problemas de saúde mental, como muito se tem discutido nestes últimos dias na imprensa. Não sabemos, e não podemos também adivinhar. Trata-se de pura especulação.

O motivo que justifica a interrogação presente no título, a que arrisco responder, é outro:  Perguntará o leitor, e bem, qual é?

O desenvolvimento atual da Psicologia beneficiou com o evoluir dos Direitos Humanos. Sim, a Ciência Psicológica assume a sua grande importância atual com a crescente valorização do indivíduo, do Ser-humano, ou seja, de cada um de nós. Foi com a valorização da Dignidade Humana, do valor absoluto de cada vida humana, que a Psicologia, como estudo do comportamento humano, ganhou mais relevância. É o reconhecimento e a valorização da diferença entre as pessoas que dá importância a uma ciência que estuda e tenta compreender o funcionamento individual de cada um. Nesta perspetiva, a da Psicologia e a dos Direitos Humanos, um indivíduo não pode valer menos do que outro, nem mesmo menos que um grupo de indivíduos.

Então, a Intervenção Psicológica, ainda que primariamente neutra, baseia-se nos direitos humanos, pelo que não poderia coexistir com decisões de alguém que colocasse a vida de uns à frente da vida de outros, o que se torna incompatível com a decisão de iniciar uma guerra. A intervenção psicológica procura evitar que as pessoas tomem decisões pelas quais estas se possam estar a enganar a si próprias. Pretende ajudar a identificar os chamados “vieses cognitivos”. Não poderia, pois, contribuir para alimentar uma ideia, frequente nas guerras, em que o inimigo que se pretende combater representa o “mal”, e que quando este for vencido o mundo se tornará um paraíso. Por outro lado, a psicologia ajuda-nos a compreender que combater alguém não representa um caminho de glória que possa possibilitar a obtenção de um lugar de destaque positivo na história e, que no fim das contas, uma guerra não fará sentir ninguém melhor, seja vencedor ou vencido. Finalmente, mais facilmente, a partir da intervenção psicológica, se poderá ajudar a compreender que aqueles que não concordam com a ideia de alguém não são traidores ou pessoas que se identificam com o lado do “mal”. Apenas têm perspetivas diversas do mesmo problema.

Estas ideias, que expressam esquemas cognitivos difíceis de combater, acabam por ter um enorme impacto na perceção das pessoas. Se todos somos diferentes, então não somos bons e maus, pelo que os tons de cinzento a esse nível têm que prevalecer. Os interesses de todos, quando não demasiado enviesados, são legítimos e devem ser considerados, motivando soluções o mais inclusivas possível. Com a guerra, tudo é preto e branco, apenas existem os que são a favor e os que são contra. Existe apenas uma prioridade, tudo o resto e todos os outros se tornam secundários, o que torna difícil a regulação do comportamento.

A guerra já começou e o que todos queremos é que ela acabe. Porque quanto mais tempo durar, maior será a tendência em ver o mundo a preto e branco. Precisamos mais do que nunca da colaboração de todos, da participação de todos, por forma a que nos vão lembrando que a riqueza da humanidade está na diversidade de cores. Precisamos de relembrar, e que nos lembrem, que os maus e os bons são uma imagem infantil e imatura da nossa realidade, uma explicação simples e deformadora de um mundo complexo e tantas vezes assustador, mas que é feito de pessoas diferentes, como nós.

Mais uma vez acredito que são as relações entre as pessoas que nos podem ajudar nesta nova crise mundial que estamos a passar. A psicologia e a ética já nos ensinaram que a realização humana está no contacto com os outros, que é através deles que nos conhecemos e aprendemos a gostar de nós. Compete a cada um cumprir com esse papel, tentando encontrar um sentido para a vida e para estas dificuldades que mais uma vez o mundo está a atravessar. Como sociedade e como indivíduos, mais do que nunca há que que resistir à polarização, ao preto e ao branco, ao bom e ao mau. Deste modo, cada um de nós estará mais preparado para lidar com as dificuldades que todos enfrentamos.

Opinião

Mais Opinião

Patrocinados