Portugueses rendem-se às marcas próprias dos supermercados. Mas quem as produz?

ECO - Parceiro CNN Portugal , Joana Morais Fonseca
2 dez 2023, 10:18
Supermercado (António Pedro Santos/Lusa)

Dos sete retalhistas contactados pelo ECO apenas a Mercadona divulgou alguns nomes dos seus fornecedores de marca própria. "O secretismo é comercial", afirma o diretor-geral da APED.

Com a escalada da inflação, as marcas próprias têm vindo a ganhar peso nas compras das famílias, representando mais de 40% da quota de mercado. Portugal é já o quarto país europeu que mais consome estes produtos, que chegam a representar até 80% da oferta dos principais supermercados a operarem no mercado nacional.

Contudo, o “secretismo” em volta dos fornecedores destes artigos é grande: dos sete retalhistas contactados pelo ECO, apenas a Mercadona divulga os nomes dos fornecedores. Ao ECO, o Ministério da Economia recorda que a lei de defesa do consumidor dita que a distribuição deve “informar o consumidor de forma clara, objetiva e adequada” sobre “as características principais dos bens”, bem como “a identidade do fornecedor e o preço total do bem”.

Numa altura em que o orçamento das famílias portuguesas está pressionado pelo aumento das taxas de juro para quem tem crédito à habitação, bem como pela subida do custo de vida, apesar de a inflação vir a dar sinais de abrandamento – que terá desacelerado para 1,6% em novembro, um mínimo em mais de dois anos – tem-se vindo a registar um crescimento das marcas próprias da distribuição.

Desde o início do ano até 8 de outubro, as vendas do mercado de grande consumo em volume cresceram 12,8%, face ao período homólogo, para 10.298 milhões de euros, segundo os dados do Scantrend da Nielsen IQ. Neste período, as marcas da distribuição já representavam 44,4% do total de vendas. Ainda no que toca as marcas próprias, o setor da alimentação ocupa as preferências, com 51,3% da quota de mercado, enquanto a quota de mercado na higiene do lar e pessoal cai para 39,2% e para 22,7% nas bebidas.

Esta tendência é, aliás, sinalizada pelos sete retalhistas ouvidos pelo ECO. Só na área alimentar, no ano passado, a marca própria do Continente atingiu os 925 milhões de euros, o que representa um aumento de 20% face aos 775 milhões de euros registados em todo o ano de 2021. E nos últimos três anos, estas vendas cresceram “quase 50%”, acrescenta a retalhista. Por sua vez, no final do terceiro trimestre deste ano, a marca própria do Pingo Doce “representava cerca de 28% das vendas totais” da empresa, o que contrasta com os 26,5% no final de 2022.

"No fim do dia quem beneficia desta concorrência entre retalhistas é o consumidor porque tem uma maior variedade de produtos, uma maior liberdade de escolha e, sobretudo, preços mais competitivos para fazer as suas compras”, diz Gonçalo Lobo Xavier, diretor-geral da APED.

Em linha com a Auchan, onde a marca própria “representa menos de 30%” das vendas, e com o Intermarché que está “muito perto de atingir os 26%” da faturação total, o que contrasta com os 20% alcançados entre 2020 e 2021. O peso da marca de distribuição é ainda mais expressivo no Lidl e no Minipreço, representando cerca de 80% e 53,69% das vendas, respetivamente, das empresas. O ECO questionou ainda a Mercadona, mas a retalhista de origem espanhola não divulgou essa informação.

Com milhares de referências expostas nas prateleiras dos supermercados, estes produtos tornam-se especialmente atrativos em momentos de crise, por serem mais baratos. Mas, afinal, quem os produz? Dos sete principais supermercados a operarem em Portugal contactados pelo ECO, apenas a Mercadona divulga os nomes dos fornecedores de marca própria. E a maioria rejeita também adiantar o número de fornecedores (ver tabela abaixo).

 

O “secretismo” não é exclusivo do mercado português, dado que também em Espanha este é também um dos segredos mais bem guardados das cadeias de distribuição, como recentemente escreveu o El País. Ao ECO, fonte oficial da Mercadona justifica a decisão de incluir a identificação dos fornecedores dos produtos nos rótulos das embalagens, com a sua “política de transparência”. Conta com “1.000 fornecedores portugueses”, entre os quais a Imperial, a Quinta de Jugais, a Casa Relvas ou a Lactifeita. Além disso, disponibiliza o “telefone de apoio ao cliente da empresa em todos os rótulos para facilitar o seu contacto com a empresa, caso seja necessário”.

Em declarações ao ECO, o diretor-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED) rejeita qualquer “processo obscuro” ou uma eventual falta de transparência, apontando que se trata apenas de uma questão “de posicionamento” e de “comercial“.

Gonçalo Lobo Xavier lembra, por um lado, que, muitas vezes estes fornecedores produzem produtos também para a chamada marca de fabricante, pelo que querem que “a sua marca própria seja mais valorizada do que a marca própria que estão a fornecer”. Já do lado dos retalhistas, não querem que “os seus concorrentes saibam” onde estão a produzir os seus artigos de marca própria.

“No fim do dia, quem beneficia desta concorrência entre retalhistas é o consumidor porque tem uma maior variedade de produtos, uma maior liberdade de escolha e, sobretudo, preços mais competitivos para fazer as suas compras”, sustenta o diretor-geral da APED.

Para o responsável, o crescimento do consumo de marca própria “não é sinónimo de rentabilidade” para as empresas, dado que os preços dos produtos são baixos porque “a margem é mais baixa e os custos associados são, muitas vezes, suportados pelo próprio fabricante”. “O secretismo é comercial”, reitera. O ECO questionou a ASAE sobre este tema, mas até à data de publicação do artigo não foi possível obter uma resposta.

O que diz a lei da defesa do consumidor?

E o que diz a lei da defesa do consumidor? Questionado pelo ECO, fonte oficial do Ministério da Economia, que tem sob tutela a defesa do consumidor, lembra que esta lei dita que “o fornecedor de bens deve, tanto na fase de negociações como na fase de celebração de um contrato, informar o consumidor de forma clara, objetiva e adequada, sobre, designadamente, as características principais do bens, tendo em conta o suporte utilizado para o efeito e considerando o bem em causa; informando, igualmente, a identidade do fornecedor e o preço total do bem”.

Por outro lado, a tutela liderada por António Costa Silva lembra que as marcas próprias “não possuem, na generalidade dos casos, um enquadramento jurídico próprio“, pelo que devem seguir as regras específicas “de cada setor económico e/ou produto”, nomeadamente no que respeita à rotulagem dos artigos. Além disso, e ao abrigo do decreto-Lei n.º 238/86, o Ministério recorda “que todas as informações sobre a natureza e características de bens, oferecidos ao público no mercado nacional, têm de ser redigidas em língua portuguesa”.

O Governo admite que “a temática das marcas próprias” poderá enquadrar-se “em determinadas condições” no decreto-lei n.º 57/2008, que visa sobre as práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores. Mas “caberá às entidades fiscalizadoras ou reguladoras” averiguar eventuais incumprimentos, acrescenta.

O Ministério da Economia defende ainda que uma eventual alteração legislativa de “caráter generalizado requer uma análise cuidada das áreas envolvidas, das atividades económicas, do consumidor e da concorrência“, mas diz que neste momento não estão a decorrer “trabalhos desta natureza”.

Retalhistas apostam nas submarcas

O conceito de marca própria chegou a Portugal em 1984, com a Auchan. Mas desde então foi ganhando terreno, abrangendo quase todas as categorias de produto: desde o retalho alimentar, passando pelas bebidas e até aos produtos de limpeza do lar ou de beleza. Neste contexto, as cadeias de supermercados foram criando várias submarcas da respetiva marca própria.

No caso do Continente, a marca própria serve “múltiplos segmentos”, tendo em vista “englobar qualquer consumidor”, pelo que, além da marca “Continente”, que foi criada há mais de 30 anos, tem várias submarcas: Continente Seleção, Continente Equilíbrio, Continente Bio, Continente Eco, entre outras. “Além das submarcas, cujo crescimento contínuo (particularmente acentuado nos casos de Continente Equilíbrio e Continente Bio) tem validado a nossa aposta na marca própria, podemos adiantar que categorias como iogurtes, mercearia ou congelados têm um impacto muito significativo“, sinaliza fonte oficial da MC, em resposta ao ECO.

Já o diretor comercial de marca própria Pingo Doce, também criada há mais de 30 anos, adianta que tem havido “uma grande adesão” nas “áreas alimentares no geral“. Mas realça ainda “os bons resultados” das várias submarcas criadas recentemente, como é o caso da “Go Active, destinada a clientes que procuram ter uma alimentação que complementa a prática de exercício”, a “Pingo Doce Iguarias, que inclui produtos com ingredientes diferenciadores” mais consumidos em épocas festivas; ou a “Be Beauty“, que inclui produtos de beleza. “Adicionalmente, estamos presentes em áreas como livraria, bazar, com marcas como Home7, detergentes com a marca Ultra”, nota João Calqueiro.

Também o Lidl recorda que a sua marca própria está “na génese” do negócio, criado em 1995, pelo que as submarcas entretanto criadas “são transversais a todas as categorias de produto”, existindo uma “personificação” das mesmas. “São exemplos disso: Fumadinho (charcutaria); Milbona (lácteos); Solevita (sumos), Alesto (frutos secos), Fin Carré (chocolates), Cien (beleza), Formil (detergentes para roupa), W5 (limpeza), Bon Gelati ou Gelatelli (gelados), Vemondo (artigos vegan), Três Velas (Bacalhau congelado), Lupilu (Bebé), entre outras”, enumera Alexandra Borges. A diretora geral de compras do Lidl Portugal sublinha ainda que também a retalhista alemã tem “ofertas diferenciadoras” nas épocas festivas ou em semanas temáticas.

Por sua vez, o Intermarché disponibiliza produtos de marca própria desde a sua fundação, “há mais de 30 anos”. Mas em 2019 decidiu mudar a estratégia e agregar a maioria destes sob a chancela da marca Porsi. Paralelamente, têm ainda “a gama da higiene e cosmética sob a chancela da marca Labell, os vinhos com a marca Seleção de Enófilos e as bebidas espirituosas com a marca Alma Pura“, relata fonte oficial do grupo “Os Mosqueteiros”.

"No topo do ranking de vendas realçamos categorias como as frutas e legumes, congelados, a charcutaria, a pastelaria industrial, as refeições prontas ou o papel como sendo categorias onde as marcas próprias já representam um peso acima de 85%", diz fonte oficial do Intermarché.

Na lista de categorias de produto de marca própria com maior adesão estão “as frutas e legumes, congelados, a charcutaria, a pastelaria industrial, as refeições prontas ou o papel”, onde estas “já representam um peso acima de 85%” nas vendas, nota a mesma companhia, destacando ainda “os bons crescimentos” nas vendas de “produtos de origem vegetal, as gamas biológicas, os artigos com elevado”, entre outros.

Também a Auchan tem várias submarcas de marca própria que “reúnem um conjunto alargado de produto”, tendo em vista “responder às distintas necessidades das famílias portuguesas” e que são transversais a várias áreas, como já mencionado. Em causa estão a Auchan “pássaro“, no retalho alimentar, a Auchan Baby, com produtos para o bem-estar do bebé, assim como a Auchan Cosmia e a Auchan Cosmia Bio, marcas de produtos de beleza naturais ou marcas InExtenso, têxtil para homem, senhora, bebé, criança, calçado e interiores”, a Qilive, de produtos multimédia e eletrodomésticos, entre outras.

Certo é que “área alimentar, drogaria e o têxtil são as mais procuradas” pelos clientes, mas a marca de insígnia francesa acredita que há “maior margem para crescer” nos produtos “que dão resposta a necessidades alimentares específicas, produtos biológicos e produtos com receitas ou ingredientes mais específicos”, sublinha fonte oficial ao ECO.

Também no grupo Dia, o conjunto das marcas próprias “atuam como várias marcas individuais, mas com um denominador comum de marca Dia“, sendo que há mais de dois anos, aquando do processo de renovação de marca própria, a retalhista espanhola apostou numa imagem mais moderna, colorida, com claims e marcas criativas que captam a atenção do consumidor como “É tão Fish” para a gama de peixe congelado, as águas “Pur&Fica” ou a gama de aperitivos “Snack Maniac!”.

Ao ECO, fonte oficial do Minipreço, em processo de venda ao grupo Auchan, adianta ainda que os artigos de marca própria “nas categorias de congelados, papel e alimentação salgada são os que registam crescimentos mais acentuados e índices de consumo mais elevado”, enquanto os artigos higiene e beleza “continuam a ser produtos onde a opção pelas marcas de fabricante ainda condiciona a sua maior aceitação e, consequentemente, um consumo mais generalizado”, apesar de registar um crescimento face ao ano passado.

Já a Mercadona, que é líder de mercado em Espanha, conta com quatro marcas próprias principais: a Hacendado, (alimentação), Bosque Verde (produtos limpeza e cuidados do lar), Deliplus (higiene e cuidado pessoal) e Compy (alimentação e cuidados dos animais de estimação). No entanto, questionada pelo ECO, fonte oficial não revela quais as marcas ou categoria de produto com maior adesão por parte dos clientes.

Com o objetivo de “combater a grande distribuição”, também a cooperativa de grossistas e retalhistas UniMark prepara-se para investir em 2024 no crescimento da oferta dos produtos de marca própria UP para os chamados supermercados de proximidade e no canal da hotelaria e da restauração (Horeca). Vai ser alargado dos atuais 610 para 700, nas categorias de mercearia, confeitaria, bebidas, congelados, detergentes ou higiene pessoal.

Carla Esteves, diretora executiva da UniMark, que integra 23 associados grossistas com cerca de 50 cash & carries e perto de 1.700 lojas de insígnia associadas, calcula ao ECO que o volume de negócios dos associados nas marcas próprias foi de 17 milhões de euros em 2022 e “deverá fechar em 22 milhões em 2023, um aumento de quase 30%”. Valores que refletem “as decisões de compra racionalmente baseadas no preço e a preferência [dos consumidores] pelas designadas marcas próprias da distribuição”.

Dos estudos de mercado até ao centros de inovação

Para escolherem os produtos que vão passar a ser vendidos sob a marca própria de cada retalhista, os supermercados recorrerem a diversos estudos de mercado, sendo que os produtos são sujeitos a “rigorosos testes de qualidade” para garantir que os artigos cumprem todos os requisitos de higiene e segurança alimentar. Para o efeito, as principais cadeias de distribuição realizam testes sensoriais e recorrerem a auditores externos independentes.

Além disso, e por forma a dar uma “maior centralidade ao consumidor” no processo de desenvolvimento do produto, de novos conceitos e também tendo em vista melhorar os produtos já existentes, os retalhistas estão a apostar em centros de inovação ou laboratórios, onde chamam os clientes ou funcionários a provarem os produtos.

É o caso do Continente, que em maio lançou o “Co-Lab: Laboratório de Inovação com o Cliente”, num investimento que ronda os 2,5 milhões de euros, tal como o ECO tinha avançado, e que conta atualmente com “mais de 7.000 provadores.

“A partir das investigações realizadas neste espaço, vai ser possível definir estratégias e objetivos da categoria e do produto; planear e otimizar processos core (gestão de gama, preço e promoção, comunicação); compreender e analisar necessidades e expectativas de consumidor, aprendendo diretamente com o consumidor; desenvolver produto e especificações de acordo com as expectativas e o feedback constante do consumidor, testando-o; monitorizar e evoluir a formulação do produto, ingredientes e embalagem; e compreender e analisar tendências de mercado e concorrência baseado em múltiplas fontes de informação e analítica”, resume fonte oficial da MC.

Também a Mercadona realiza “um processo baseado em cinco fases” para definir e melhorar a qualidade dos produtos, onde se incluem “22 centros de coinovação distribuídos entre Espanha e Portugal”, onde trabalham “mais de 200 especialistas, que realizaram em 2022 um total de 12.500 sessões de trabalho“. Nestes centros, os especialistas iniciam um período de testes através de sessões de coinovação” com os clientes, seja nos centros de coinovação ou na casa destes, “onde o produto é testado para verificar se cumpre as expetativas”. Neste âmbito, a retalhista já criou “370 melhorias, 217 novidades e 25 inovações de produto”, realça fonte oficial da retalhista espanhola.

Por sua vez, o Lidl criou em 2018, o “Lidl Sense”, um laboratório de “provas sensoriais onde os colaboradores são convidados a fazer provas cegas de perceção da qualidade dos artigos de marca própria em comparação com as restantes ofertas do mercado”, aponta Alexandra Borges, diretora-geral de compras da retalhista alemã em Portugal, acrescentando que o objetivo é que os funcionários sejam “o espelho do cliente e parte da história da marca que representam”. Também a Auchan realça que “faz provas com clientes”.

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