Lily Gladstone cresceu a ouvir línguas inventadas. Graças a Scorsese pôde falar a sua língua nativa no cinema e virou estrela por isso

23 jan, 18:00
Lily Gladstone no filme "Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese (DR)

Os Óscares estão no caminho de uma maior diversidade, mas ainda há muito por andar: cerca de um terço de todos os nomeados este ano são mulheres – o número mais elevado em três anos – e 19% vêm de grupos sub-representados. Mesmo que não vença, Lily Gladstone, atriz de "Os Assassinos da Lua das Flores", já fez história

Lily Gladstone é a primeira pessoa nativo americana nomeada para o Óscar de Melhor Atriz pela sua interpretação em "Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese. No filme, no qual fala inglês e uma língua indígena, Gladstone contracena com Leonardo DiCaprio e interpreta Mollie Burkhart, uma mulher Osage verídica que era casada com um cúmplice importante dos assassínios sistemáticos de pessoas Osage ocorridos na década de 1920, nos Estados Unidos.

Gladstone, de 37 anos, foi criada na Reserva Blackfeet, no Montana, e é descendente das tribos Piegan Blackfeet e Nez Perce, por parte do seu pai. A sua mãe é branca, descendente de ingleses. Lily começou a fazer teatro ainda em criança. Na Universidade de Montana estudou Artes e Estudos Indígenas e continuou a fazer teatro. Estreou-se no cinema em "Jimmy P: Realidade e Sonho", de Arnaud Desplechin, em 2013, antes de trabalhar com Kelly Reichardt em "Certain Women" (2016) e "A Primeira Vaca da América" (2019), mas foi com "Assassinos da Lua das Flores" que se tornou mundialmente conhecida.

Nomeada para inúmeros prémios, conquistou já o Globo de Ouro de Melhor Atriz. “Este é um momento histórico e não me pertence apenas a mim”, disse Gladstone em inglês, depois de iniciar o seu discurso de agradecimento na língua Blackfeet. Uma investigação recente da Iniciativa de Inclusão Annenberg concluiu que, entre os 1.600 filmes com maior receita de bilheteira dos últimos 16 anos, apenas um apresentava um protagonista nativo americano. E entre as 62.224 personagens falantes dessa amostragem, apenas 133 eram nativos (mas 34 desses papéis foram interpretados por atores não-nativos).

Ao reconhecer a sua satisfação por ser capaz de falar um pouco de Blackfeet (graças aos esforços da sua mãe para que ela tivesse um professor de língua Blackfeet na escola), Gladstone observou que Hollywood costumava inventar línguas nativas em vez de retratá-las com precisão e autenticidade: “Estou muito grata por poder falar um pouco da minha língua, porque, nesta indústria, os atores nativos costumavam dizer as suas falas em inglês e depois os editores de som passavam-nas ao contrário para imitar as línguas nativas.” A atriz dedicou o seu Globo de Ouro "a cada criança indígena que tem um sonho, que se vê representada e às nossas histórias contadas por nós próprias, com as nossas próprias palavras, com tremendos aliados e uma enorme confiança uns nos outros."

Gladstone usa os pronomes ela e eles. "Na maioria das línguas nativas, ou indígenas, incluindo Blackfeet, não há pronomes de género. Não existe ele/ela, existe apenas eles. Usar este pronome é, para mim, uma forma de descolonizar o género", explicou.

Filmes falados noutras línguas, mais diversidade, mais mulheres

Independentemente dos vencedores que serão anunciados a 10 de março - e é bem provável que Lily Gladstone leve um Óscar para casa porque a sua interpretação é notável - esta edição dos Óscares já está a ser uma das mais diversas de sempre. Recorde-se que este foi o primeiro ano em que as regras de representação e inclusão da Academia, que determinam a elegibilidade para o melhor filme, entraram em vigor.

Refletindo os 93 países representados nas votações, esta é a primeira vez que mais do que um filme não falado principalmente em inglês está nomeado para Melhor Filme: "Anatomia de uma Queda" (é falado maioritariamente em francês), "Vidas Passadas" (em coreano) e "A Zona de Interesse" (em alemão). Isto além de "Assassinos da Lua das Flores", claro, que é parcialmente falado em língua indígena.

Colman Domingo é o primeiro afro-latino nomeado para Melhor Ator pela sua interpretação no drama sobre direitos civis "Rustin". Nesta categoria, encontramos ainda Jeffrey Wright, ator negro nomeado por "American Fiction", filme de Cord Jefferson. Esta é apenas a segunda vez na história dos Óscares que mais do que um ator negro, que não seja Will Smith ou Denzel Washington, está nomeado para o prémio principal de interpretação. Aconteceu apenas em 2004 com Don Cheadle (“Hotel Rwanda”) e o então vencedor Jamie Foxx (“Ray”). Além disso, o ator Sterling K. Brown, também de "American Fiction", foi nomeado como Melhor Ator Secundário. 

Na categoria de Melhor Atriz Secundária - que é historicamente a categoria de interpretação com mais diversidade - encontramos duas mulheres negras: Danielle Brooks por "A Cor Púrpura" (é a única nomeação do filme) e Da’Vine Joy Randolph por "Os Excluídos", o filme de Alexander Payne. A elas junta-se a atriz latina America Ferrera, uma das poucas surpresas nesta lista de nomeados, indicada para Melhor Atriz Secundária em "Barbie".

Da'Vine Joy Randolph no filme "Os Excluídos", de Alexander Payne (DR)

Colman Domingo e Jodie Foster, que está nomeada para Melhor Atriz Secundária por "Nyad", também fazem história nesta edição dos Óscares: é a primeira vez que dois atores abertamente LGBTQ são nomeados por interpretarem personagens LGBTQ.

Ainda que haja três filmes realizados por mulheres nomeados para Melhor Filme, as mulheres continuam a faltar nas categorias de Realização; só há uma, Justine Triet (é muito notória aqui a ausência de Greta Gerwig, realizadora de "Barbie"). Mas há três mulheres na categoria de Argumento Original: Justine Triet por "Anatomia de uma Queda", Samy Burch por "May December" e Celine Song por "Vidas Passadas" - aliás, a realizadora e argumentista sul-coreana Celine Song é a primeira mulher asiática nomeada nesta categoria. Já no Argumento Adaptado há apenas uma única mulher nomeada: Greta Gerwig, que escreveu "Barbie" em parceria com Noah Baumbach.

Na Banda Sonora Original, Laura Karpman recebeu a sua primeira nomeação para os Óscares por compor a música de “American Fiction” e é apenas uma das cinco mulheres nomeadas nesta categoria nos últimos 25 anos.

Apesar de tudo, de acordo com a Academia de Hollywood, cerca de um terço de todos os nomeados este ano são mulheres – o número mais elevado em três anos – e 19% vêm de grupos sub-representados (acima dos 15% de 2023).

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