Algumas questões que não interessam a ninguém

9 nov 2015, 10:02
Moreirense-Paços Ferreira (Lusa)

Alguns números da Liga, na semana em que esta passou o milhão de espectadores

A esquizofrénica semana europeia dos clubes portugueses, repartidas entre a melhor prestação global de sempre na Liga dos Campeões e uma jornada de Liga Europa sem um golo para amostra traduz bem o desequilíbrio estrutural do futebol português nas últimas décadas, face ao empobrecimento da sua classe média.

Se considerarmos o desempenho dos clubes lusos nas provas da UEFA, ao longo dos últimos cinco anos, vemos que Benfica (33%) e FC Porto (29%) são responsáveis por quase dois terços dos pontos conquistados. A seguir vem o Sporting, com uma fatia bem menor (14%). E, bem atrás, mais nove clubes, liderados pelo Sp. Braga, e que, somados, não chegam a um quarto do total.

Nenhum outro país do primeiro pelotão europeu tem os seus recursos tão concentrados em apenas dois tabuleiros – nem sequer a Espanha, onde Barcelona e Real Madrid têm posição claramente dominante, mas onde At. Madrid, Sevilha e Valência conseguem por sistema pontuações relevantes nas provas europeias.

Em termos domésticos, a reaproximação do Sporting aos dois rivais históricos nas últimas três épocas – ainda sem correspondência nos resultados internacionais - é um sinal positivo e importante contra o afunilamento. Mas não chega para inverter uma tendência que se torna ainda mais evidente se olharmos para a distribuição das assistências: no fim de semana em que a Liga passou a barreira do milhão de espectadores (média de 11.568 antes da 10ª jornada) tivemos a confirmação de que 70% do total deste número está na Luz, no Dragão e em Alvalade, com os restantes 30% distribuídos por 15 clubes.

Só os três grandes têm taxas de ocupação nos seus estádios de acordo com os padrões das grandes Ligas – acima dos 70% de lugares vendidos. Por contraste, 11 clubes da Liga têm menos de 50% dos lugares ocupados e metade tem média de espectadores abaixo dos 5 mil por jogo. A consequente desproporção de receitas de bilheteira e quotização acentua ainda mais uma disparidade que é prolongada nas receitas dos direitos televisivos. Que, depois, os clubes mais pequenos aproveitem os dois ou três jogos grandes da época para cobrarem bilhetes de preço exorbitante aos adeptos dos três grandes que os visitam é apenas um dos muitos efeitos perversos desta situação.

E, no entanto, o estado de coisas vai chegando para manter Rússia e França à distância no ranking da UEFA, segurando um quinto lugar global, a que se junta um notável quarto lugar na tabela de seleções da FIFA, pelo segundo mês consecutivo. Vai dando para alimentar egos e, nivelando a nossa realidade pelos Ronaldos, Mourinhos e Jorge Mendes da abundância, recorrer ao velho argumento de que nenhuma outra indústria nacional tem desempenho semelhante no panorama internacional de elite. O que até pode ser verdade, mas não reflete uma implantação equilibrada e saudável do futebol na sociedade portuguesa, nem dá sinais de preocupação com as formas como se reparte um bolo cada vez mais pequeno e ressequido.

Tal como em grande parte dos setores de atividade em Portugal, o foco continua a estar todo nas formas de criação de riqueza, de preferência a curto prazo, sem ser acompanhado com preocupação semelhante pelas suas formas de distribuição e as suas bases de sustentação. Isto vai gerando uma Liga – ia escrever uma sociedade, vejam lá o disparate! – com um fosso cada vez mais acentuado entre os que têm meios, recursos e poder e os que se limitam a tentar sobreviver através de posicionamentos estratégicos na órbita dos grandes.

Como se sai disso? Com tempo, paciência, um lento cultivar do regresso às bases, no reativar do desporto escolar, na formação e na ligação afetiva dos adeptos ao clube local, e com a valorização do trabalho invisível feito pelas associações e pelo futebol amador. E também com uma visão global que, nas questões estruturais, perceba a necessidade de criar mínimos sustentáveis de competitividade com uma redistribuição mais equilibrada de receitas – com mecanismos como os aplicados nas Ligas da Alemanha ou de Inglaterra.

Uma visão que, no fundo, ponha a saúde da galinha acima da contagem imediata dos ovos. Não está para breve e não acredito que possa acontecer com os atuais dirigentes. E, acrescento, enquanto 90 por cento da população que liga ao futebol avaliar a saúde do futebol português em função do momento desportivo do seu clube, também não virá com os atuais adeptos. Aliás, eu tinha avisado no título que estas questões não interessam a ninguém.

Opinião

Mais Opinião

Mais Lidas

Patrocinados