Por exemplo, nesta paixão pela verdadeira essência do jogo.
Vamos ser honestos: aquela sobranceria fraternal com que se olha para o futebol feminino, carregada com tiques de bondade e doçura, já mete um bocadinho de nojo. Pardon my french, mas não encontro outra forma de colocar as coisas.
O futebol feminino não precisa da nossa benevolência.
Não precisa de ternura ou tolerância. Não é propriamente um ursinho de peluche, uma caixa de esmolas ou um caminho para a purificação dos pecados.
Se olharmos com atenção, despidos dessa tal sobranceria fraternal, percebemos que o futebol feminino tem defeitos e um longo caminho para percorrer, mas tem também evidentes méritos. Que justificam o crescente interesse do público.
Philipp Lahm escrevia há umas semanas que o futebol feminino é mais humanizado. Os jogadores tornaram-se incrivelmente ricos e afastaram-se das pessoas, vivem num mundo paralelo, distante dos dramas do dia a dia.
As jogadoras, por outro lado, mantêm-se perto das pessoas. Partilham as suas preocupações, conhecem e participam nas discussões que interessam a todos.
É uma forma de ver as coisas, sem dúvida. Mas há outras.
Antes de mais, e sobretudo, o futebol feminino mostra uma paixão pelo jogo que já não se vê no masculino. Um amor puro. Elas gostam verdadeiramente de futebol.
Os homens gostam de ganhar, as mulheres gostam de jogar.
Por isso o futebol feminino é mais autêntico, mais honesto e mais verdadeiro. Há menos simulações, menos perdas de tempo, menos jogos mentais. Há menos equipas na retranca: ninguém está ali para não jogar.
As mulheres atacam quando têm a bola e defendem quando a perdem. Como devia ser sempre. Como era o futebol quando foi criado.
O futebol feminino é jogado à flor da pele, com sinceridade, com respeito pelo próprio jogo. Pelo menos para quem olha de fora, não está tão poluído com esquemas, artimanhas e chico-espertices. É um futebol educado.
Por vezes duro, sim, mas nunca com maldade.
Mais do que o adversário, respeita o próprio jogo e o público: e isso é, de facto, o mais importante. Este amor genuíno, de coração aberto, foi o que levou milhões de pessoas a apaixonarem-se pela modalidade no início de tudo. Quando eram, também elas, um coração puro.
O Benfica-Sporting desta quarta-feira, de resto, teve duas decisões revertidas pelo VAR. No fim não se viram críticas à arbitragem, nem discursos inflamados. Pelo contrário, o Sporting até fez guarda de honra ao Benfica.
Lapidar, não é?
Talvez por isso o futebol feminino vá batendo recordes de audiência. O dérbi de Aveiro, aliás, foi o programa mais visto do dia na televisão nacional.
Os mais céticos dirão, certamente, que tem tudo a ver com promoção. A Federação fala disso, a FIFA fala disso, os patrocinadores falam disso.
É verdade, há muita propaganda no futebol feminino. Mas há mais do que isso: há uma dignidade, uma lisura e uma correção muito difíceis de encontrar. No futebol de alta competição, por exemplo, o que interessa é ganhar.
Ganhar a qualquer custo.
É certo que é mais talentoso, mais rápido, mais forte, mais perfeito. Por isso é o maior espetáculo do mundo. Mas não é perfeito. Talvez o seja cada vez menos, sobretudo em Portugal. Quando descer do pedestal a partir de onde olha para o resto do mundo, talvez o futebol masculino perceba que tem coisas a aprender com o futebol feminino.
Por exemplo, nesta paixão pela verdadeira essência do jogo.
«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, editor-chefe do Maisfutebol