Um 6-1 que põe muita coisa em causa

10 mar 2014, 09:58
Wolfsburgo-Bayern Munique (Reuters)

A partir da goleada do Bayern, o retrato de um futebol europeu em mudança

«Se o Bayern ganhar os dois próximos campeonatos com 20 pontos de avanço, então diria que teremos de mudar alguma coisa»

Christian Seifert
, diretor executivo da Bundesliga, 22 de maio de 2013

Estas palavras foram ditas ao «Guardian» poucos dias antes da primeira final de Champions entre equipas alemãs. Na altura, celebrava-se a vitalidade da Bundesliga, assente em dois pilares fundamentais: a formação
e o equilíbrio
competitivo. Lembrei-me do arremedo de profecia de Seifert neste sábado, ao ver o Bayern Munique atropelar um forte candidato à Liga dos Campeões (6-1) em casa deste.

Primeiro pormenor nada irrelevante: a vítima deste atropelamento, o Wolfsburgo, fez o segundo maior investimento em transferências do futebol alemão (117 milhões de euros, bem à frente dos 99 do Dortmund, dos 67 do Schalke ou dos 50 do Leverkusen). Segundo pormenor nada irrelevante: a verba investida no atual plantel do Bayern (234 milhões) é precisamente o dobro da do seu rival mais próximo. Terceiro pormenor nada irrelevante: no primeiro ano da era Guardiola, os tais 20 pontos de diferença a que Seifert se referia foram atingidos a onze jornadas do fim. Não é fácil acreditar que o fosso diminua de forma significativa na próxima época.

A confirmação de que este Bayern - a caminho de ser uma das maiores máquinas futebolísticas da história – deixou de ter concorrência interna compromete a afirmação da Bundesliga como marca de referência no mercado televisivo internacional, numa altura em que o campeonato alemão pretendia conquistar quota de mercado à Premier League.

Mas, por outro lado, é apenas o mais recente sublinhar de uma tripla realidade. A primeira diz-nos que, por esta altura, a jóia de acesso à elite do futebol europeu é cada vez mais restrititiva. A segunda, que resulta da anterior, é a perda de competitividade de uma «classe média» como FC Porto, Valencia ou Leverkusen, que, há dez anos, ainda podia sonhar com vitórias na Champions. A terceira, e última, simbolizada pelos 6-1 de sábado e pelos 20 pontos de avanço no comando da Bundesliga, é o do risco de progressiva irrelevância das competições nacionais. Em especial para clubes como Bayern, Real Madrid, Barcelona, PSG, Mónaco - e, à nossa escala dos últimos anos, Benfica e FC Porto - que, mais do que dominá-las, as asfixiam.

Um recente estudo da Deloitte sublinha
esta realidade de outra forma: mesmo em contexto de crise, as receitas geradas pelos 20 maiores clubes da atualidade continuam a crescer, a um ritmo superior ao da economia global. Dito de outra forma, há um bolo, que está maior do que nunca, mas que é dividido em menos fatias.

É verdade, a Premier League continua a fazer figura de exceção neste contexto – porque vai tendo competitividade real entre cinco ou seis equipas de topo, e porque as suas equipas pequenas têm volume de receitas e massas adeptas relevantes. E talvez só mesmo isso torne um pouco mais distante o cenário, tantas vezes esboçado, da progressiva transformação da Champions numa Liga de elite fechada, em que as credenciais económicas, à semelhança do que contece com as Ligas profissionais americanas, têm um peso determinante no direito de admissão.

O cenário parece demasiado radical para ser viável a curto prazo, num universo ainda tão dependente da tradição, da memória e da identidades regionais. E talvez o seja. Mas, ainda assim, não será tão radical como a transformação a que Benfica e FC Porto sujeitaram as respetivas identidades, ao longo das últimas décadas, para manterem as vagas – em classe económica - no comboio internacional. 

Os responsáveis da Bundesliga, como Seifert, já tinham antecipado sinais de alarme, ainda antes de estes serem confirmados pela realidade - falta ver o que é essa «alguma coisa» a mudar. Por cá, mesmo com as movimentações em curso na direção da Liga, não há ilusões: o que está em causa é apenas redesenhar partilhas de pequenos poderes. No essencial continuaremos a ter uma competição disputada em estádios vazios, a gerar receitas irrelevantes, com plantéis hipotecados, dependentes dos empréstimos e sobras dos grandes - que vão ampliando o fosso, porque o seu potencial de receitas não se compara ao dos outros. E está tudo bem, porque nunca ninguém nos cargos de poder se preocupou a sério em demonstrar que talvez não tenha de ser assim. Afinal, se o problema da redistribuição desequilibrada não foi criado pelo futebol, por que raio haveria de ser o futebol a resolvê-lo?

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