“É exasperante a forma como, eleição após eleição, elegemos um Governo que não quer mudar nada”

ECO - Parceiro CNN Portugal , António Costa e Hugo Amaral
23 out 2023, 15:30
António Costa (Luís Forra/LUSA)

O economista Ricardo Reis admite em entrevista ao ECO que a proposta de Orçamento para 2024 é coerente com o que foi prometido, mas considera que o caminho não é sustentável

Ricardo Reis, economista e professor na London School of Economics (LSE), considera que o Orçamento do Estado proposto pelo Governo para 2024 é um dos melhores dos que foram apresentados nos últimos oito anos por António Costa, porque mantém a consolidação orçamental e a redução do peso da dívida pública. “Se é um orçamento bom, já é uma questão diferente”, afirma em entrevista ao ECO. “Parece que a maioria absoluta dos portugueses escolhe este caminho e, portanto, dentro dessa restrição, muito importante em democracia, o Governo está a corresponder ao que os portugueses querem, a cortar impostos, cortar impostos diretos, a aumentar impostos indiretos, a ter rigor orçamental, a não mexer nas pensões, a aumentar salários mínimos…“. Ainda assim, é particularmente crítico da ausência de reformas estruturais. “É exasperante a forma como, consecutivamente, eleição atrás da eleição, nos últimos anos, elegemos um Governo que promete não mudar nada, que promete não reformar nada”.

O Orçamento do Estado para 2024 é mesmo “um dos melhores“, como escreveu na crónica semanal no Expresso?
Escrevi que é um dos melhores orçamentos aprovados por António Costa…

Um dos melhores dos últimos anos. É mesmo?
Precisamente. Porquê? Acho que é no seguinte sentido: Um, é um orçamento que não tem aquela farsa a que nos habituámos durante anos em que se anunciavam grandes investimentos públicos e, depois, não eram realizados porque as verbas eram cativadas. Aprecio que, ao menos, ao não prometer programas, não entremos nessa farsa durante meses, como aconteceu durante anos. Dois, é um orçamento que corta impostos e responde ao que parecem ser os desejos de muitos portugueses que, numa sondagem recente, falavam de como achavam que a carga fiscal era grande demais. É um orçamento que corta impostos. Três, é um orçamento positivo porque faz aquilo que o Governo de António Costa sempre tem feito, e de uma forma transparente, favorece as pessoas com o salário mínimo e favorece os pensionistas. Prejudica todos os outros em termos relativos, mas favorece esse dois grupos, e até favorece um bocadinho os mais jovens, com o IRS Jovem, que têm sido os mais prejudicados pelos orçamentos anteriores. Além disso, e mais importante, é um orçamento que continua com o rigor orçamental da dívida pública, que tem ser a prioridade número um, continua a favorecer o apoio eleitoral do PS e que lhe deu a maioria absoluta, pensionistas e pessoas com salário mínimo, e não entra na farsa do investimento público. Neste sentido, parece-me melhor do que os orçamentos anteriores…

E é um orçamento bom?
Se é um orçamento bom, já é uma questão diferente.

O Governo desce o IRS, mas sobe os impostos indiretos, A despesa pública aumenta para valores estratosféricos, da ordem dos 115 mil milhões de euros, e a carga fiscal aumenta. Este caminho é sustentável?
Quero separar a resposta em duas partes. Uma, se o orçamento é sustentável e, dois, a discussão dessas variáveis e porque é que é o melhor orçamento dos últimos oito anos. António, os portugueses votaram há pouco tempo, e votaram num partido de esquerda, ao qual deram a maioria absoluta, que não enganou ninguém, que a despesa ia aumentar e que estava comprometido com o rigor orçamental. O rigor orçamental, mais despesa a aumentar, implica a carga fiscal a aumentar. Não parece que o aumento deste ano defraude o que foi prometido pelo Governo de António Costa que uma maioria absoluta dos portugueses apoiou. Se queriam que a carga fiscal baixasse, deveriam ter votado mais à direita, porque o outro partido queria baixar a carga fiscal e os portugueses, em maioria absoluta, escolheram esse caminho. Não sou eu aqui a dizer que essa é a opção errada ou certa, é claríssimo, e segue o sentido da votação dos portugueses. Em segundo lugar, em relação aos impostos diretos ou indiretos. Num pais em que o crescimento económico está estagnado, a capacidade de gerar rendimento é o grande entrave, diminuir os impostos sobre o rendimento para estimular as pessoas a procurarem formas de o aumentar para serem mais compensadas pela sua produção de riqueza, parece-me correto. Assim, a mim parece me razoável. Em terceiro lugar, em relação ao aumento da despesa, aumenta em parte porque há um aumento no investimento público, e aumenta também por causa do peso que temos em termos de pensões públicas e em termos de despesas de saúde…

Há despesa dinâmica, independentemente das decisões políticas…
A verdade é que já tivemos há muito tempo um Governo, na altura do FMI, há mais de uma década, que tentou fazer reformas estruturais no que diz respeito à despesa com pensões, por exemplo, que foram, depois, rejeitadas em eleição atrás de eleição. Os portugueses, de uma certa forma, não querem que essa despesa caia. Parece que a maioria absoluta dos portugueses escolhe este caminho e, portanto, dentro dessa restrição, muito importante em democracia, o Governo está a corresponder ao que os portugueses querem, a cortar impostos, cortar impostos diretos, a aumentar impostos indiretos, a ter rigor orçamental, a não mexer nas pensões, a aumentar salários mínimos…

Mas é um orçamento sustentável, é um caminho sustentável?
Daí ter separado a resposta em duas partes. Este caminho é sustentável? Eu penso que não, não é sustentável. E digo isto com esta segurança, porque não é sustentável há mais de dez anos. Estamos desde 2001, desde o discurso do país que está de tanga, com um aumento na despesa pública que não para, sem investimento público nos últimos oito anos, com um conjunto de regras e sistemas que absorvem muitos recursos e, ao mesmo tempo, com uma falta de preocupação, de investimento, de desejo de reformas, de mudanças, que permitam criar a riqueza que sustenta esse sistema.

Sou completamente a favor de um sistema de pensões e de um sistema de saúde ao nível do que temos, ou até mais generoso, mas têm de ter a noção do que é preciso gerar a riqueza que o sustente. A falta de capacidade inovadora, de capacidade de reforma, com uma breve exceção durante o programa do FMI, é de facto exasperante. É exasperante a forma como, consecutivamente, eleição atrás da eleição, nos últimos anos, elegemos um Governo que promete não mudar nada, que promete não reformar nada. E sendo assim, é insustentável de facto, ao mesmo tempo, não querer mudar nada, não querer fazer reformas económicas, e ao mesmo tempo não querer cortar num Estado social que não é particularmente grande em comparação com os parceiros europeus, mas que em relação ao que produzimos é muito grande. E isso reflete-se numa carga fiscal que aumenta cada vez mais, em não haver estímulo nenhum para um crescimento económico. Portugal está estagnado já há 23 anos e não se vê a recuperar desse estado nos próximos cinco…

Ainda há dias, o primeiro-ministro dizia que a Segurança Social está bem e recomenda-se. Criando a expectativa aos atuais trabalhadores de que a Segurança Social vai estar cá para pagar as pensões de acordo com as expectativas que têm hoje.
A economia portuguesa tem de crescer. Ao nível a que cresceu nos últimos 23 anos, incluindo mesmo os últimos sete anos em que cresceu um pouco mais do que a média europeia, não conseguimos suster a Segurança Social que temos, a não ser aumentando imenso a carga fiscal.

Sublinha e valoriza a descida do rácio da dívida em percentagem do PIB, mas ainda assim, em termos nominais, a dívida tem estado a subir.
Sobretudo numa altura em que temos uma inflação relativamente elevada, como nos últimos anos, mexer o valor nominal da dívida seria um choque de austeridade fiscal que me parece que seria louco. Não vejo sequer como é que seria possível a despesa em termos nominais. Não parece sequer que fosse aconselhável em termos económicos, sociais. O foco no rácio da dívida está perfeitamente adequado, tem funcionado. Portugal, neste momento, está altamente favorecido na sua imagem internacional. Hoje, a nossa dívida pública está a pagar aproximadamente o mesmo que a Bélgica, e a Bélgica tem uma dívida pública que é 40% menor que a nossa, tem perspetivas de crescimento iguais às nossas e tem uma despesa pública muito mais sob controlo. E nós pagamos a mesma taxa de juro que eles e -0 vírgula cinco por cento do que a Espanha.

Os investidores estão a avaliar corretamente o país?
Os investidores estão muito otimistas em relação a Portugal. Estou a avaliar corretamente, sim, porque olham e veem um Governo atual completamente empenhado e um primeiro-ministro que já deu provas dadas de que leva o rigor orçamental a sério. Veem à direita o mesmo e, portanto, veem que, independentemente de qualquer instabilidade política ou mesmo económica, há um compromisso sério com a descida da dívida.

O bolo económico não está a crescer, escreveu recentemente no Expresso. Isto é, falta a este orçamento, faltou aos outros, fermento…
…Exatamente.

A verdade é que, para o bem e para o mal, o Governo de António Costa tem sido de repartição, de paz social, de redistribuição do bolo. Essa é a grande preocupação, e muito menor a do crescimento do bolo. Neste orçamento, novamente, não há nada sobre o crescimento do bolo. Aliás, mesmo nos últimos anos, só surgiu quando se falou do PRR, ou seja, quando nos começaram a pôr o fermento à frente e a dizer “façam alguma coisa com ele”, aí falamos um pouco do fermento. Mas, mesmo aí, não se vê uma ideia muito clara…

O que é que deve ser introduzido, no quadro em que estamos a viver, para que, de facto, a economia portuguesa possa mesmo crescer?
Ponto número um, o orçamento é nada mais do que as contas e os planos do Estado, Estado esse que é de longe o maior agente económico na nossa economia. Quando discutimos essas contas, a razão pela qual temos as questões e o crescimento económico é porque o orçamento acaba por ditar o que o Governo vai fazer nos próximos 12 meses. Ponto número dois, tem faltado a este orçamento a aos outros que o precederem qualquer preocupação com o crescimento económico. Surge às vezes num discurso, mas há muito pouca preocupação com o crescimento económico. Nesse sentido, de onde pode vir esse fermento? Deixe-me dividir a resposta em diferentes partes.

Em primeiro lugar, antes sequer de começarmos a discutir o ponto, é sequer a preocupação do do cozinheiro em pôr fermento no bolo económico. A minha maior preocupação, e nisso sou crítico do Governo atual, é não ver essa preocupação, não ver o cozinheiro sequer a perguntar onde está o fermento. Não vejo, nos últimos anos, uma preocupação do Governo em perguntar como é que se põe esta economia a crescer, o que é preciso fazer.

A verdade é que, para o bem e para o mal, o Governo de António Costa tem sido de repartição, de paz social, de redistribuição do bolo. Essa é a grande preocupação, e muito menor a do crescimento do bolo. Neste orçamento, novamente, não há nada sobre o crescimento do bolo. Aliás, mesmo nos últimos anos, só surgiu quando se falou do PRR, ou seja, quando nos começaram a pôr o fermento à frente e a dizer “façam alguma coisa com ele“, aí falamos um pouco do fermento. Mas, mesmo aí, não se vê uma ideia muito clara…

Em segundo lugar, é preciso criar as condições para esse crescimento económico. Na analogia do bolo, a receita para o fazer. Em Portugal, temos que fazer um esforço maior para propiciar o crescimento económico. O que dizemos com isso? Pôr menos entraves à atividade privada, permitir que as empresas possam ajustar-se, de uma forma mais flexível, ao mercado, permitir que os trabalhadores não estejam presos a contratos muitas vezes rígidos, a contratos que não lhes permitem criar as suas próprias empresas, despedir-se e ir para outras empresas, em que não estejam presos a empregos de função pública, protegidos, mal aproveitados, mas presos a toda uma série de incentivos em termos de reformas e despedimentos… Em que não tenhamos as empresas com enormes dificuldades para entrar em mercados externos, porque, por exemplo, é muito difícil ter licenciamentos em Portugal, é muito difícil conseguir um visto para contratar um quadro qualificado do estrangeiro. Do lado do Estado, também, que haja também um discurso que não diabolize a propriedade privada, o lucro, que estimule a procura pelas pessoas nas suas oportunidades para fazer melhor. Um Estado que, como chamei muitas vezes nas minhas escritas, faz a expropriação do sucesso. Não sou eu a imaginar um mundo ideal. A Irlanda, um país não muito diferente de Portugal, é isso que é muito diferente no Estado irlandês. Tratando do fermento, tratando da receita, da atitude, de resolver problemas, chegamos então, aí sim, às prioridades, aos setores.

Não há uma bala de prata.
A experiência ensina-nos que, quando os governos se convencem demasiado de que temos de apostar neste ou naquele setor, são mais os erros do que os casos de sucesso. Há casos sucesso também, mas são muitos falhanços, porque, enfim, nunca sabemos bem… Isto porque mesmo quando identificamos um caso de sucesso, o que surge é uma rigidez natural do Estado e dos políticos. Não é que o Estado não consiga identificar setores, é que, depois, o Estado é muito teimoso, os políticos são muito teimosos, não querem admitir que erraram. Não temos, dentro da própria máquina do Estado, uma capacidade de fazer uma avaliação do que correu mal, aprender, porque os políticos, e não só os políticos, os próprios funcionários públicos são muito avessos à crítica.

Ao mesmo tempo, sobretudo numa altura de reconfiguração industrial, com o nearshoring, com a recuperação geopolítica que tem a ver com a mudança das cadeias de abastecimento, com mudanças muito grandes no que será o padrão da energia, do lado climático, tudo isto exige investimentos de infraestrutura nacionais, de um Estado que ajude a orientar de uns setores para outros.

 

Relacionados

Governo

Mais Governo

Patrocinados