Encerramento de maternidades e urgências "pode ser considerado violência obstétrica"

16 mar, 08:01
Mia Negrão

ENTREVISTA | Mia Negrão é advogada. Acompanha mulheres vítimas de violência obstétrica e ginecológica desde os tempos de estudante. Em 2020, fundou o projeto Nascer com Direitos. Diz que sonha com o dia em que a violência obstétrica deixe de existir, para se poder dedicar a outras causas. Autora de vários livros e ebooks sobre os direitos das mulheres durante a gravidez e o parto, lançou agora “O Meu Parto, As Minhas Regras”, para ajudar as mulheres a tomar decisões informadas sobre o parto

Portugal é dos países da Europa com maior taxa de partos instrumentalizados, episiotomias e cesarianas. Apesar de a generalidade das mulheres estarem mais atentas aos seus direitos na gravidez e no parto, Mia Negrão diz que ainda há um longo caminho a percorrer na autonomia e autodeterminação da grávida. Só este ano, a Entidade Reguladora da Saúde já recebeu quase uma centena de queixas relacionadas com as áreas de ginecologia e obstetrícia.

A advogada e ativista pelos direitos na gravidez e no parto, doula, formadora, instrutora de massagem infantil e assessora de lactação acaba de lançar o livro “O Meu Parto, As Minhas Regras”, para ajudar as mulheres a tomar decisões informadas. Numa entrevista à CNN Portugal, Mia Negrão diz que as mulheres estão, de facto, mais conscientes dos seus direitos, mas há muito a fazer nesta matéria: “As mulheres estão mais reivindicativas porque já ouvem falar em violência obstétrica e querem proteger-se, mas as clientes mais reivindicativas que tenho são, na maioria, estrangeiras.”

Mia Negrão defende um alargamento da licença de parentalidade e “licenças iguais” para pai e mãe.  As licenças parentais devem ser maiores, por forma a permitir uma maior adaptação da família a cada bebé que nasce. O facto de haver tipos de licença diferentes para o pai e para a mãe (tipicamente), é problemático na medida em que não se reconhece a importância de ambos os progenitores no pós-parto e na nova vida familiar”, sublinha.

Mia Negrão acaba de lançar o livro "O Meu Parto As Minhas Regras"

A advogada condena o encerramento de maternidades e urgências obstétricas e sublinha também que estas decisões governamentais configuram violência obstétrica, já que a grávida fica privada de escolha e tem aqui um fator acrescido de ansiedade.  

Para a ativista, é preciso deixar de olhar para a grávida como meras “incubadoras”, como “seres divinos que carregam no ventre o maior tesouro do mundo” e passar a encará-las como pessoas. E o recado é também para os profissionais de saúde.

Ainda estudante, apoiou mulheres vítimas de violência obstétrica. Porque é que se começou a interessar tão cedo por este assunto? Com que tipo de casos se deparou?

Desde miúda que não me fazia sentido quando ouvia relatos de parto em que as mulheres eram cortadas. E só mais tarde, já na faculdade de Direito, percebi que isso tinha um nome: episiotomia. Percebi também que era uma prática recorrente em Portugal e que a taxa de episiotomia rondava os 73%, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS), na altura, aconselhava que a taxa se mantivesse até 10%. Atualmente, a OMS não recomenda qualquer taxa de episiotomia, uma vez que não há evidência do seu benefício.

A maioria das mulheres que me chega à consulta jurídica, queixa-se dos maus-tratos durante o parto, de humilhações e da episiotomia, que provoca danos físicos, muitas vezes irreversíveis.

O projeto Nascer com Direitos surgiu em plena pandemia, com que objetivos?

O Nascer com Direitos surgiu da necessidade de informar grávidas e casais numa altura em que os direitos foram restringidos, principalmente nos hospitais. Na verdade, as restrições que foram feitas nos blocos de partos durante a pandemia já aconteciam antes, mas as pessoas aceitavam a justificação para a restrição de acompanhante que era dada e não aceitaram que a restrição fosse motivada pela eventualidade de estarem infetados/as com covid, uma vez que não fazia qualquer sentido separar por dois ou três dias pessoas que coabitam e iriam continuar a coabitar na mesma casa após o parto. Houve muitos atropelos à lei e continua a haver.

Quatro anos depois, que balanço faz?

Em 2024, ainda só temos um hospital a cumprir a lei relativamente ao acompanhamento da grávida por três acompanhantes à sua escolha. Os hospitais, na sua maioria, ainda não seguem as recomendações da OMS, conforme estipulado na lei. Há hospitais e profissionais de saúde que ainda não aceitam planos de parto. Há profissionais de saúde que se recusam a fazer doses mais baixas de epidural para que as grávidas possam deambular. Entre outras coisas...

As mulheres hoje em dia estão mais conscientes dos seus direitos no que toca à maternidade, à gravidez e ao parto?

Sim, mas nem todas as mulheres. As mulheres de classe média alta têm maior acesso à informação, seja através das redes sociais ou da aquisição de livros e até de cursos de preparação para o parto e sessões informativas. Efetivamente, noto que as mulheres estão mais reivindicativas porque já ouvem falar em violência obstétrica e querem proteger-se, mas as clientes mais reivindicativas que tenho são, na maioria, estrangeiras.

Esses direitos são frequentemente atropelados em Portugal? De que forma?

São. A Lei n.º 15/2014 de 21 de março, com as alterações introduzidas em 2019, não é, de todo, cumprida em Portugal. Há ainda muita falta de informação e de formação de profissionais de saúde, que não sabem o que é consentimento informado, não reconhecem às grávidas o direito a decidir sobre os seus corpos e sobre os seus bebés e intervêm demasiado na fisiologia de parto.

Como conciliar os desejos e os planos da mulher com as necessidades identificadas pelos profissionais de saúde em relação a cada caso concreto?

É fácil se os cuidados se basearem no consentimento informado, que é já considerado um direito humano. A grávida toma decisões sobre o seu corpo e os/as profissionais de saúde são obrigados a dar informação isenta e cientificamente válida para que esta se possa autodeterminar. Quando a grávida toma uma decisão que vai contra a opinião de um/a profissional de saúde, deve ser respeitada e, na realidade, isso passa a responsabilidade para a grávida, desonerando o/a profissional de saúde da responsabilidade pela decisão, mas nunca da responsabilidade pela informação que tem sempre de dar à grávida.

Ainda recentemente foi notícia o caso de uma grávida que se deslocou ao hospital e foi enviada para casa e acabou por perder o bebé aos 9 meses de gravidez. O que é que se diz a uma mulher que enfrenta uma situação destas?

Para fazer queixa, para denunciar a situação e contactar um/a advogado/a para perceber quais as suas opções judiciais e/ou extrajudiciais. Dependendo da situação, podemos estar perante a prática de um crime ou de negligência, o que pode motivar, entre outras obrigações, o pagamento de uma indemnização à mãe.

A violência obstétrica ainda é uma realidade em Portugal? Que pode ser considerado violência obstétrica?

A violência obstétrica é a norma em Portugal e explico o porquê no meu ebook "Violência Obstétrica - O resumo ilustrado que Precisas de ler". A violência obstétrica é a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres, ou seja, sempre que as grávidas não podem tomar decisões na gravidez e no parto porque estão num ambiente hostil, porque são coagidas, porque as intervenções lhes são impostas em vez de propostas… Isso é violência obstétrica. Trata-se da desumanização das mulheres e de não lhes reconhecer agência sobre o corpo.

Como agir se sentir que fui vítima de violência obstétrica?

Uma pessoa que passe por estas situações deve fazer queixa ao hospital, às ordens profissionais, à Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e a outras entidades que se mostrem competentes mediante o caso, e deve contactar um/a advogado/a para perceber se tem direito a uma indemnização ou se aqueles factos consubstanciam um tipo legal de crime que motive uma queixa-crime. Explico como reclamar no "Guia Prático para Reclamar", que criei para ajudar as pessoas a dirigirem corretamente as suas reclamações e perceberem como as devem fazer.

Como traçar a linha entre aquilo que é realmente violência obstétrica e aquilo que uma mulher que, por estar num momento de maior fragilidade, sente que pode ser violência e não é?

Em 2019, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa emitiu a Resolução 2306, sobre violência obstétrica e ginecológica, em que declara que as mulheres são vítimas de práticas violentas ou percecionadas enquanto tal, tanto no consultório médico nas consultas de vigilância da gravidez, como nas salas de parto, durante o parto. Segundo a Assembleia Parlamentar, estas práticas violentas incluem atos inapropriados e/ou realizados sem consentimento, oferecendo como exemplo os toques vaginais, as episiotomias e outras intervenções dolorosas sem anestesia, frequentemente sem consentimento.

Precisamente por o parto ser um momento de grande vulnerabilidade, há um especial dever de respeito pela situação, que exige uma conduta mais silenciosa, menos interventiva e mais cuidada em termos de linguagem e de trato.

Já se deparou com casos de mulheres que se consideravam vítimas de violência obstétrica e não serem de facto?

Não. Mas é frequente as práticas que consubstanciam violência obstétrica nem sempre consubstanciarem tipos legais de crime, inviabilizando, nessa parte, a via judicial.

Resumidamente, que direitos é que eu tenho enquanto grávida ou recém mãe?

Eu diria que o direito fulcral na gravidez e no parto é o direito ao consentimento informado. Além desse, a maioria dos direitos estão previstos na Lei n.º 15/2014 de 21 de março, que traduzo para linguagem corrente no ebook "Os Meus Direitos na Gravidez e no Parto". A título de exemplo, as grávidas têm o direito a fazer um plano de parto, têm direito a ter até três acompanhantes durante o parto e têm o direito a não ser coagidas.

Os direitos das grávidas e das mães estão assegurados quando o Governo fecha maternidades e urgências obstétricas a pretexto da gestão de recursos humanos e materiais?

Não. Desde logo, isso pode ser considerado violência obstétrica, uma vez que as grávidas ficam sem poder de escolha e com imensa ansiedade relativamente ao parto por não saberem em que maternidade vão parir.

O pós-parto e o puerpério é talvez a fase mais solitária e mais difícil que uma mulher atravessa. O que deve mudar em Portugal para que as mulheres se sintam mais acolhidas nessa fase?

As licenças parentais devem ser maiores, por forma a permitir uma maior adaptação da família a cada bebé que nasce. O facto de haver tipos de licença diferentes para o pai e para a mãe (tipicamente), é problemático na medida em que não se reconhece a importância de ambos os progenitores no pós-parto e na nova vida familiar. Já existe apoio domiciliar - através do SNS - em algumas áreas do país, promovido pelos centros de saúde, em que enfermeiros/as de saúde materna e infantil se deslocam ao domicílio para prestar cuidados à mãe e bebé e apoiar na amamentação. Esta medida devia ser alargada a todos os centros de saúde do país.

A amamentação (sobretudo a amamentação prolongada) e a respetiva redução horária continua a ser olhada de lado em muitas empresas. Como se pode mudar isto e que direitos têm as mulheres nesta matéria?

O preconceito relativamente à amamentação é cultural, especialmente quando falamos em amamentação após os seis meses, por estar convencionado que os bebés só mamam até aos seis meses, altura da introdução alimentar. A questão é que há muita desinformação, porque, na realidade, o desmame natural acontece entre os dois e os sete anos, ou seja, só falamos em "amamentação prolongada" após os dois anos de idade do bebé. Efetivamente, há mães que passam por situações de assédio laboral quando mantêm a amamentação e, por isso, o chamado "horário reduzido", e há mães que, para evitarem situações laborais desagradáveis, abdicam da dispensa para amamentação e trabalham a jornada completa, prejudicando as crianças. Mudar isto só seria possível com uma licença parental igual para ambos os progenitores, de duração superior a 12 meses, para que também os pais usufruíssem do tempo em família, não prejudicando a empregabilidade das mulheres por serem estas as únicas a usufruírem de uma licença parental "alargada".

Atualmente, as mulheres têm direito a dispensa para amamentação, ou seja, a trabalharem menos duas horas diárias para amamentarem os seus bebés. Este direito não caduca com a idade do bebé, mas sim com o desmame. Enquanto a mãe amamentar, tem direito à dispensa para amamentação e os/as médicos/as de família e/ou pediatras, devem atestar este facto para que a pessoa possa apresentar o atestado à entidade empregadora.

A falta de respeito pelos direitos maternos é um problema do sistema ou é uma questão social e/ou cultural?

Ambos. Culturalmente, as grávidas são vistas como seres divinos que carregam no ventre o maior tesouro do mundo, mas não são vistas enquanto pessoas. Isto significa que uma pessoa grávida é frequentemente vista como uma incubadora que serve o propósito de gerar uma vida. O bebé é, muitas vezes, mais valorizado do que a grávida, levando a conflitos relativamente à autonomia e autodeterminação da grávida. Este tipo de pensamento está enraizado no sistema e por isso falamos em violência obstétrica como violência sistémica e de género. O Conselho da Europa, na Resolução 2306, de 2019, declara que a violência obstétrica e ginecológica tem as suas raízes no sistema patriarcal. É preciso compreender que a violência obstétrica não acontece num vácuo nem acontece por termos profissionais de saúde tecnicamente incompetentes. Antes pelo contrário, temos profissionais de saúde com competências técnicas acima da média a exercerem essas competências em grávidas de baixo risco e que, por isso mesmo, não precisam desse tipo de intervenções clínicas. A medicalização do parto é uma forma de violência obstétrica e é a mais comum em Portugal.

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