Um milhão de dólares em custos extra e atrasos de semanas: como a crise no Mar Vermelho está a afetar o comércio global

CNN , Anna Cooban
9 fev, 22:00
Docas no porto iemenita de Hodeida, no Mar Vermelho (Getty Images)

Esta análise mostra como a instabilidade no Médio Oriente pode ter um impacto direto na sua vida

Os ataques a navios porta-contentores no Mar Vermelho têm causado estragos numa das rotas comerciais mais importantes do mundo há várias semanas. A gigante marítima Maersk já veio avisar que as perturbações podem durar até um ano.

Os houthis, apoiados pelo Irão, intensificaram os seus ataques a navios no final de novembro, como forma de retaliação pela guerra de Israel contra o Hamas.

Os atrasos daí resultantes, bem como os custos adicionais para as companhias de navegação, alimentaram receios de que os consumidores, ainda em dificuldades após um longo período de inflação desenfreada, possam ser ainda mais atingidos por aumentos de preços.

Tem havido um “êxodo quase total” de navios porta-contentores de maior dimensão do Mar Vermelho e do vizinho Canal do Suez, disse à CNN Richard Meade, editor-executivo da Lloyds List, publicação dedicada à área da navegação. Esses navios, que transportam de tudo, desde ténis a telemóveis, de fabricantes asiáticos a clientes europeus, têm feito rotas mais longas para evitar aquela zona.

Esse êxodo é relevante: o Canal do Suez, que liga o Mar Vermelho ao Mar Mediterrâneo, é responsável por 10 a 15% do comércio mundial, incluindo exportações de petróleo, e por 30% do volume global de transporte de contentores.

Mas o impacto total nos custos de envio e nas cadeias de abastecimento é muito menos severo do que no auge da pandemia, dizem analistas à CNN. Ainda assim, a atual crise deixou marca, levando a Tesla a interromper parte da produção devido a atrasos na entrega de peças automóveis na Alemanha. E a gigante sueca do mobiliário Ikea a alertar para uma possível escassez de produtos.

O petroleiro Marlin Luanda a arder depois de um ataque no Golfo de Aden, via navegável que desemboca no Mar Vermelho, a 27 de janeiro de 2024 (Indian Navy/AP)

Atrasos de semanas

Peter Sand, analista-chefe da Xeneta, empresa dedicada à análise de dados do setor marítimo e aéreo, estima que cerca de 90% da capacidade habitual dos navios porta-contentores que passam pelo Mar Vermelho e pelo Canal do Suez tenha sido desviada para o extremo sul de África.

Cerca de um quarto de todos os navios graneleiros, que transportam grandes quantidades de carga seca, como cereais ou cimento, e um quarto dos petroleiros, que transportam petróleo ou gás natural, fizeram o mesmo desvio, à volta do Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, afirmou. Tal acrescenta duas semanas numa viagem típica de leste para oeste em navios porta-contentores e 18 dias para os graneleiros e petroleiros mais lentos.

Ataques no Mar Vermelho perturbam o transporte marítimo global: as empresas de transporte de contentores têm evitado o Mar Vermelho e redirecionado os seus navios por África, à medida que os houthis, no Iémen, intensificam os ataques a navios comerciais. A azul encontra-se a rota tradicional, com 11 mil milhas náuticas. A vermelho, a alternativa, através do Cabo da Boa Esperança, com 14 mil milhas náuticas – o que implica mais oito a 10 dias. Estes tempos assumem uma velocidade média de 16 nós. As rotas mostradas são ilustrativas (Fonte: Flexport. Gráfico: Lou Robinson)

Há evidências de que os clientes do transporte marítimo estão agora a optar por transportar as suas mercadorias por via aérea, devido a esta interrupção, segundo Sand.

“Vemos empresas de moda e vestuário a decidir que algumas das suas linhas de roupa serão transportadas por via aérea, em vez de marítima. E é isso que se fala, de facto, em custos crescentes”, disse. “É 10 a 20 vezes mais caro”.

Dados da Xeneta mostram um aumento no volume de carga transportada [por ar] a partir do Vietname, que é um centro de produção de vestuário, para o norte da Europa nas últimas três semanas.

Mais um milhão de dólares por navio

Juntar milhares de milhas às rotas marítimas tem aumentado os custos com combustíveis e seguros, bem como as taxas de fretamento e as folhas salariais.

Na Xeneta, Sand estima que o custo para as transportadoras – empresas como a Maersk ou a Hapad-Lloyd – é de mais um milhão de dólares [cerca de 930 mil euros] por navio para uma viagem de ida e volta à volta do extremo sul de África. A grande maioria desse valor deve-se aos custos mais elevados de combustível.

Consequentemente, as transportadoras aumentaram as taxas de fretamento que são pagas pelas empresas para que os seus produtos sejam levados nos navios, e juntaram ainda sobretaxas de emergência.

Os custos totais por envio num contentor típico de 40 pés atingiram os 3.786 dólares [3.514 euros] esta semana, uma subida de 90% face ao mesmo período de 2023, segundo o Drewry World Container Index.

Para um contentor do mesmo tamanho, numa viagem entre Xangai, na China, e Roterdão, na Holanda, o custo aumentou 158%, comparando com há um ano, atingindo os 4.426 dólares [4.108 euros].

Contudo, a atual crise é insignificante quando comparando com aquela que a precedeu.

Os custos globais de transporte de contentores estão agora em menos de metade do nível atingido durante a pandemia de covid-19, quando se atingiu um pico de 10.380 dólares [9.635 euros] em setembro de 2021.

Nessa altura, os consumidores estavam ainda, na sua maioria, presos em casa, cheios de poupanças e não tinham mais do que fazer a não ser gastá-las em bens.

“Estamos numa situação muito melhor do que estávamos na pandemia”, disse à CNN Simon MacAdam, economista-chefe global da Capital Economics.

A procura global de bens aumentou a uma velocidade “sem precedentes” em 2021, disse. Contudo, desde então, regressou a níveis historicamente normais, enquanto as taxas de juro mais elevadas diminuíram o apetite dos consumidores por artigos caros, normalmente pagos a crédito.

A inflação vai voltar a disparar?

Pode-se esperar que muitos retalhistas repercutam custos com frete mais elevados nos consumidores, segundo Sand, da Xeneta. Em especial, aqueles com margens de lucro mais pequenas.

Ainda assim, disse, o transporte de contentores é “muito económico”, já que muitas mercadorias podem ser embaladas num único contentor. Num contentor, é possível distribuir, por exemplo, alguns milhares de dólares de custos extra por centenas de produtos, com um impacto mais reduzido na subida dos preço de retalho.

Na segunda-feira, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) afirmou que, se os custos com o frete permanecerem elevados, a inflação dos preços ao consumidor nos seus 38 países membros poderá aumentar 0,4 pontos percentuais cerca de um ano depois.

Esta perspetiva otimista, que não é incomum, deve-se em parte ao enorme crescimento na dimensão da frota marítima global em 2023, segundo MacAdam da Capital Economics. É uma tendência que, antecipa, deverá continuar ao longo de 2024. As transportadoras, incapazes de acompanhar a procura durante a pandemia, acabaram por fazer “encomendas massivas” de novos navios, disse.

O navio de carga Galaxy Leader acompanhado por barcos dos houthis no Mar Vermelho a 20 de novembro de 2023 (Houthi Military Media/Reuters)

Tal permitiu manter um controlo sobre os custos com o frete. “O aumento da capacidade (de transporte) oferecida no mercado continua a pressionar as taxas”, disse a Maersk na quinta-feira.

Todavia, as perspetivas de inflação irão piorar se a guerra entre Israel e o Hamas se espalhar para outros países da região, ameaçando o fornecimento global de energia, ou se os preços do petróleo - que quase não se alteraram desde que os houthis intensificaram os seus ataques - começarem a subir.

A produção recorde de petróleo em países como os Estados Unidos da América ou o Canadá, bem como a fraca procura global que se prevê, mantiveram os preços sob controlo.

Foram menos os petroleiros a evitar o Mar Vermelho do que os navios porta-contentores, que os houthis acabam por associar mais aos países ocidentais aliados de Israel. Contudo, tal pode mudar.

Na semana passada, Meade, da publicação Lloyds List, assistiu a uma queda de 40% no número de petroleiros que atravessaram o estreito de Bab-el-Mandeb, uma apertada via navegável que conduz ao Mar Vermelho a partir do sul, quando comparado com a semana anterior.

“É considerado um risco. Não existe verdadeira confiança real entre os armadores de que seja seguro, independentemente da nacionalidade do navio”, disse.

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