A CNN Portugal falou com três politólogos para analisar as entrelinhas do primeiro discurso de Luís Montenegro como primeiro-ministro, na cerimónia de tomada de posse do novo Governo
Luís Montenegro quer que o deixem governar e, para isso, coloca "o ónus da responsabilidade política sobre o PS", que fica, assim, "preso num dilema" entre ser uma oposição colaborativa ou assumir-se como alternativa ao PSD - "e é nesta amarra política que o PS vai viver enquanto estiver na oposição", antecipa à CNN Portugal o politólogo João Pacheco, numa análise ao primeiro discurso do novo primeiro-ministro.
"Enquanto este Governo do PSD durar, o PS vai estar preso num dilema entre a colaboração institucional, construtiva, e a afirmação de uma alternativa. E este é um jogo difícil de se fazer, porque o PSD a qualquer momento pode vitimizar-se. Ora, se formos a eleições e o PSD se vitimizar, vai naturalmente crescer, e o PS pode ser prejudicado", teoriza João Pacheco, explicando que, uma vez no poder, todos os partidos "gostam das crises políticas" se delas puderem tirar proveito, isto é, se conseguirem "não ser responsabilizados" por essa crise, jogando assim a cartada da vitimização.
Para sustentar esta teoria, João Pacheco lembra a origem da maioria absoluta de António Costa: "Em 2022, como as negociações com o Bloco de Esquerda correram mal, o PS conseguiu vitimizar-se e António Costa conseguiu uma maioria absoluta porque foi a eleições como vítima do exercício da oposição."
E, com este discurso, no qual Montenegro questionou o PS se quer “ser oposição democrática ou bloqueio democrático", ficou claro para a politóloga Paula do Espírito Santo que o PSD "está a colocar o ónus da responsabilidade política sobre o PS", invocando-o como "o partido fundamental que pode viabilizar uma boa parte das soluções que forem ao Parlamento". É que, "além de todas as questões político-partidárias, temos a circunstância de haver uma oposição forte com a extrema-direita, que vai ocupar todo o espaço mediático, e por isso tem de se tomar uma decisão, quase um pacto de regime democrático, no qual o PS não pode deixar de estar presente", argumenta.
Por isso, neste contexto, "o PS tem de jogar com alguma cautela", adverte João Pacheco, reiterando que os socialistas podem ser "os primeiros a perder" num eventual cenário de dissolução do Parlamento e novas eleições.
Também o politólogo José Filipe Pinto considera que esse cenário "iria beneficiar o PSD e penalizar o PS" e talvez por isso Luís Montenegro tenha insistido na "co-responsabilização" dos socialistas nesta legislativa, apelando a que "façam parte da solução e não do problema".
Esta tentativa de responsabilizar o PS pela governabilidade do PSD "não vai cair bem junto do PS", antecipa José Filipe Pinto. Sobretudo porque, "ao mesmo tempo que Luís Montenegro convoca o PS para apoiar as suas políticas, traça um quadro muito negro da atuação do Governo do PS" neste seu primeiro discurso, ao assinalar, por exemplo, o "elevadíssimo nível de pobreza em praticamente metade da população portuguesa".
"Ora, é evidente que esta questão vai criar anticorpos no PS, porque o PS quer sair do Governo com o legado das contas certas e das reformas, e o que Luís Montenegro diz neste discurso é que a situação do país está longe de ser aceitável", argumenta José Filipe Pinto, que entende que esta posição do novo primeiro-ministro "dificulta a aglutinação num projeto comum", ou "pacto de regime democrático", nas palavras da politóloga Paula do Espírito Santo.
Neste contexto, para José Filipe Pinto, a postura do PS - que já se manifestou disponível para viabilizar um eventual orçamento retificativo - vai ser muito óbvia a partir de agora: "Vai ter uma atitude do 'politicamente correto', vai criticar o discurso dizendo que o retrato que Luís Montenegro traçou do país não corresponde à realidade, que o PS tem consciência de que há problemas no país para resolver, mas que tem um grande ativo na resolução desses problemas. E vai insistir nas contas certas e nos processos já em curso, como a execução do PRR, o lançamento do primeiro troço da ferrovia, o trabalho que já foi feito para a localização do novo aeroporto."
Resumindo, diz, o PS "vai dourar o seu ativo" dos últimos oito anos de governação, traçando a mesma linha do "balanço autoelogioso" de António Costa, no seu último discurso enquanto primeiro-ministro cessante. "Essa herança vai passar para Pedro Nuno Santos, que vai dizer que o PS estará aqui para ajudar a resolver os problemas do país, mas que não lhe peçam para ajudar a pôr em prática um programa em que não se revê", antevê o politólogo.
A "jogada de mestre" de Montenegro com "as bandeiras do Chega"
Ao mesmo tempo que responsabilizava o PS pela governabilidade do seu executivo, Luís Montenegro, sem nunca nomear o Chega, trouxe para cima da mesa algumas das suas "grandes bandeiras", ao defender uma imigração regulada e desafiando todos os partidos a combater a corrupção - e nada disto foi por acaso, assumem os analistas políticos ouvidos pela CNN Portugal, que destacam uma "jogada de mestre" em particular por parte do novo primeiro-ministro.
Para o politólogo José Filipe Pinto, Luís Montenegro fez mais do que um mero discurso de tomada de posse - fez "a apresentação de um programa eleitoral". E fê-lo "muito bem", diz. "A ideia do combate comum à corrupção é uma jogada de mestre, porque convoca todos para a solução de um problema que, sendo coletivo, tem de ter uma solução coletiva", observa.
E, com esta "jogada de mestre", diz o politólogo, Luís Montenegro faz duas coisas: "Esvazia uma das bandeiras do Chega [o combate à corrupção] e mostra que tem capacidade de diálogo e que, se não houver resultados, é porque os outros partidos não estão imbuídos do espírito do interesse nacional."
Além do combate à corrupção, Luís Montenegro também defendeu a regulação da "porta escancarada" da imigração - uma outra "grande bandeira" do Chega. Mas fê-lo com uma visão "humanista" e "realista", ao contrário da visão "negativa" do Chega, distingue José Filipe Pinto: "Luís Montenegro vem fazer aquilo que tenho definido como a 'política realista', ao defender uma imigração controlada e que permita o desenvolvimento do país, ao mesmo tempo que permita também aos imigrantes condições dignas de vida. Ora, isso retira uma bandeira ao Chega, que tem uma visão negativa da imigração e defende uma políticas de quotas, mas de quotas muito seletivas. Ao apresentar esta proposta, Luís Montenegro acaba por retirar ao Chega uma das suas bandeiras favoritas."
A "ausência estratégica" de Pedro Nuno Santos
Luís Montenegro bem falou indiretamente para o PS, mas na audiência não se vislumbrava Pedro Nuno Santos. Momentos antes do início da cerimónia de tomada de posse, o secretário-geral fez saber que se iria fazer representar por Alexandra Leitão, o seu 'braço direito' na campanha para as últimas legislativas.
Para o politólogo João Pacheco, a ausência de Pedro Nuno Santos na tomada de posse do novo Governo foi "uma ausência estratégica", uma vez que assim conseguiu destacar-se dos demais. "É uma forma em que ele necessariamente é falado, mais pela sua ausência. Estava lá o governo cessante em peso, estava o primeiro-ministro cessante... no fundo, parecia que estavam todos a estender a mão a Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos não quis ficar neste enquadramento, sentado, perante Luís Montenegro", analisa o politólogo.