O que vai mudar na relação entre clubes e sociedades desportivas?

20 jan 2023, 09:32
Adepto na bancada

Perguntas e respostas sobre as alterações ao regime jurídico, que pretende defender melhor os clubes

A relação entre clubes e sociedades desportivas vai mudar. O novo regime jurídico das sociedades desportivas introduz uma série de medidas para regular essa ligação e pretende responder aos muitos problemas de processos que acabaram mal, em rutura ou até com a extinção de clubes. Foi aprovado em Conselho de Ministros e passará agora pela Assembleia da República. Ainda sem o texto final da legislação, o Maisfutebol recorreu à experiência e do advogado e especialista em direito do desporto Fernando Veiga Gomes, para uma série de perguntas e respostas sobre o que está em causa.

A quem se aplica o regime jurídico das sociedades desportivas?

Esta é a lei que enquadra os clubes que disputam competições profissionais. Atualmente é o Decreto-Lei nº 10/2013, com alterações introduzidas em 2017, que regulamenta essa participação. Até aqui, os clubes teriam de se organizar sob duas formas para poderem participar: Sociedade Anónima Desportiva (SAD), onde os clubes têm uma participação mínima de 10 por cento, ou Sociedade Desportiva Unipessoal por Quotas (SDUQ), 100 por cento na órbita do clube. A maior parte dos clubes participantes na I e II Liga de futebol são nesta altura SAD. Há apenas seis SDUQ. Cinco na Liga – Arouca, Casa Pia, Gil Vicente, Paços Ferreira e Rio Ave – e uma na II Liga, o Sp. Covilhã, que aliás quer avançar com a constituição de uma SAD. O novo regime vai substituir a lei anterior. Na sua apresentação, o Governo informou que algumas das normas previstas no novo diploma não se aplicam às SAD cotadas em bolsa, «às quais se aplica o regime previsto no CVM» (Código de Valores Mobiliários).

Porque é que o regime jurídico está a ser alterado?

Ao longo dos anos, foram vários os problemas que se levantaram na relação entre clubes e SADs, que levaram a ruturas, com prejuízo dos clubes, alguns dos quais acabaram por desaparecer. O caso mais notório é o do Belenenses, mas há muitos mais, muitos deles envolvendo emblemas históricos como U. Leiria, Beira Mar, Desp. Aves ou Atlético. «Cerca de 20% das sociedades anónimas desportivas constituídas até hoje foram ou estão a caminho da extinção, insolvência ou dissolução», estima o Governo, na nota em que divulgou a aprovação do novo regime jurídico em Conselho de Ministros: «Estes clubes fundadores foram arrastados pela queda das respetivas sociedades desportivas, encontrando-se uma parte em atividade mínima e uma outra parte a enfrentar imensas dificuldades no processo de recuperação.» Daí a conclusão: «É prioritário assegurar maior regulação para um setor que se pretende mais atrativo na captação de investimento.» Fernando Veiga Gomes reforça a ideia de que este é um problema que se vinha arrastando e precisava de respostas para «reequilibrar a relação entre o clube fundador e a SAD»: «Há muito que se falava disto, só peca por tardio. Porque infelizmente tivemos muitos casos de sociedades desportivas que foram compradas por investidores sem capacidade financeira ou de idoneidade duvidosa e com resultados desastrosos para os clubes fundadores. Muitos deles viram as suas SAD desaparecer à mão de investidores pouco escrupulosos.»

Os clubes passam a ter uma forma alternativa de organização?

Sim. Uma das alterações a introduzir é a criação de uma nova forma de organização, a sociedade comercial por quotas. «Até agora tínhamos a Sociedade Anónima Desportiva e a SDUQ. A SDUQ era unipessoal, 100 por cento do clube fundador. Agora já será possível ter uma sociedade por quotas, mas com outros sócios, com mais ou menos quotas», observa Fernando Veiga Gomes, analisando em que difere uma SAD desta nova forma de organização: «Uma SAD tem órgãos de fiscalização, tem um revisor oficial de contas, tem que ter um capital social maior e uma série de obrigações e de estrutura interna mais pesada e mais onerosa. Percebo que faça algum sentido ter uma SAD na mesma, mas que tenha uma estrutura mais simplificada e possa ter outros sócios, maioritários ou não. Faz algum sentido. Não acho que seja a alteração mais importante, mas é importante porque abre uma terceira via.»

Como é que a nova lei pretende defender melhor os clubes?

Há uma série de alterações que pretendem reforçar a posição do clube em relação a uma SAD. Fernando Veiga Gomes começa por destacar algumas das novidades na relação entre clube e sociedade desportiva (SD). «O administrador nomeado pelo clube passa a ter o direito de participar em todas as reuniões, uma coisa que até agora não estava clara», nota. Além disso, há uma clarificação dos direitos de veto do clube. Já estavam definidos, mas agora «estendem-se ao emblema e à marca e a outros sinais distintivos». Isso resulta um bocadinho dos litígios que existiram», observa. É também introduzida a figura de um «observador» nomeado pelos sócios. «A assembleia geral do clube fundador elege, expressamente para o efeito, um associado para o órgão de administração de sociedade desportiva, com direito a participar em todas as reuniões, mas sem direito a voto», diz a nota do Governo. Além disso, uma SD «que viole de forma grave e continuada os acordos parassociais que celebrou com o clube desportivo» passa a ter vedada a participação em competições. E em caso de dissolução, extinção ou insolvência da SD, «as instalações desportivas, se não forem indispensáveis para liquidar dívidas sociais, o palmarés desportivo e os troféus conquistados pela sociedade desportiva são atribuídos ao clube desportivo fundador». O especialista em direito desportivo destaca ainda outro ponto, a questão da «herança» de impedimentos fiscais por parte do clube: «Até agora tínhamos um problema: se a SAD ou o clube não tivessem a situação tributária regularizada, isso prejudicava o outro. A nova lei vem definir isso, finalmente, e diz que se a sociedade desportiva não tiver a situação tributária regularizada isso não prejudica o direito do clube desportivo de obter apoio desportivo para outras modalidades. Era uma coisa que acontecia e prejudicava muitos clubes. Se uma SAD tivesse dívidas e o clube queria receber por exemplo um apoio da Junta de Freguesia para a piscina, não podia. Isso era extremamente injusto.»

Que controlo passa a haver em relação aos acionistas?

São introduzidas várias medidas relativas a controlo da idoneidade dos acionistas, redução dos conflitos de interesses e maior transparência. «Os investidores, e isto é muito importante, passam a ter de demonstrar capacidade económica para fazer o investimento», destaca Fernando Veiga Gomes: «Não é qualquer pessoa, como até agora, que pode comprar uma participação numa sociedade despotiva. Tem de mostrar capacidade económica, tal como se faz noutros países. Acho isto muito positivo.» Além disso, acrescenta, «os detentores de participações sociais e os órgãos de administração não podem ter sido condenados em processos-crime por uma série de crimes». «Passa a haver aqui uma certa verificação dos registos criminais, etc, que não era feita até agora. E passa a haver a verificação da idoneidade dos detentores da participação, não só a administração mas os próprios investidores.» Há ainda vários impedimentos. Quem tem ligações a casa de apostas já não podia ser detentor de participação qualificada ou administrador de uma SD, mas essa incompatibilidade alarga-se agora também, por exemplo, a empresários de jogadores. Ou ainda a quem tenha tido esse papel no ano anterior noutra SAD.

Que mais obrigações passam a ter as SAD?

O novo regime pretende introduzir mecanismos de transparência, ou publicidade, que passam pela divulgação pública das atividades da SD, que identifiquem a estrutura acionista mas não só. «Passa a haver uma série de deveres de transparência e comunicação», diz Fernando Veiga Gomes. «Passam a ter por exemplo que publicar no site oficial da SAD as contas dos últimos três anos, a composição dos órgãos sociais e o cumprimento dos deveres de transparência.» Também é introduzida uma lógica de quotas, para maior diversidade de género: «Passa a ter de haver 20 por cento de representação mínima de pessoas de cada sexo.»

E o que acontece a quem não cumprir?

O novo regime prevê a introdução de sanções monetárias, com todo o processo controlado por uma «entidade fiscalizadora» encarregue de aplicar as sanções ou até suspensões preventivas, embora ainda não seja claro que entidade será. Na nota divulgada pelo Governo, refere-se que «a fiscalização das sociedades desportivas é efetuada no âmbito da plataforma nacional destinada ao combate da manipulação de competições desportivas»: «Esta plataforma, a criar, poderá promover ações de fiscalização através de inquéritos, inspeções, sindicâncias e auditorias externas.» Mas já foram divulgados, genericamente, os valores das contraordenações. Vão de 500 euros para infrações leves até 500 mil euros para infrações consideradas muito graves. «Há uma série de comportamentos que não tinham qualquer sanção e agora passam a ser punidos, até com algumas coimas até bastante elevadas para aquilo que é prática na área do desporto em geral», nota o especialista, acrescentando que a falta de um regime sancionatório «era um dos grandes problemas» na relação entre clube e SAD: «Se a SD incumprisse as obrigações previstas na lei, o que é que acontecia? O clube podia reagir, podia ir para tribunal, pedir uma indemnização, etc. Mas, não havendo nenhuma sanção, à partida dava às SAD e aos seus acionistas maioritários a possibilidade um bocadinho de fazerem o que queriam, sem respeitar aquilo que seriam os direitos do clube. Portanto, esperamos que isso fique um pouco mais equilibrado nesse sentido.»

A nova legislação impedirá que os clubes sejam arrastados pela queda de uma SAD?

Pois. «Isso nunca se pode garantir», nota Fernando Veiga Gomes. Mas, acrescenta, são passos «no bom sentido»: «Se houver mais transparência, se houver publicidade, controlo da idoneidade dos administradores e dos investidores, de onde vem o dinheiro, qual é a sua proveniência, quem são, etc, isso já ajuda muito. Se nós soubermos exatamente quem são os investidores que estão por trás das sociedades desportivas, depois a própria opinião pública pode escrutinar, os órgãos de comunicação podem escrutinar, há uma revelação pública. No global, acho que as alterações vão no bom sentido. Depois teremos que ver em concreto. Há aqui medidas positivas e há muito tempo aguardadas, que só pecam por tardias. As questões do «fit and proper test», o controlo da entrada de capitais. Globalmente são medidas positivas», observa. Mas depois, conclui, tudo depende da aplicação da lei: «Parece-me que o Governo fez um bom trabalho de ouvir os stakeholders relevantes na área do desporto e introduzir as alterações que há anos vinham sendo faladas. Eu próprio tive oportunidade várias vezes de criticar o regime e registo com agrado que muitos dos comentários que fiz foram incluídos nesta nova proposta de lei. Agora, como dizia a lei da boa razão, boas são as leis, melhor é o uso que delas se faz.»

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