Há "medo da diversidade e da liberdade", há "ideias erradas". E há muito mais críticas ao livro "Identidade e Família, apresentado por Passos Coelho

CNN Portugal , ARC e DCT
9 abr, 21:00
Pedro Passos Coelho na apresentação do livro "Identidade e Família" (Manuel de Almeida/Lusa)

São várias frases que levantaram polémica e trouxeram uma direita mais conservadora para o centro do debate. E a presença do antigo primeiro-ministro não acalmou os ânimos

Sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo: "Um contrato é um contrato e a orientação sexual das pessoas não altera nada”. Sobre a escola pública e o género: “Sempre foi um espaço onde se transmitem ideias sobre o género”. Sobre a perda da essência de Portugal com o aumento da imigração: "É absurdo e de um fechamento ao mundo global tremendo”. Especialistas nas temáticas abordadas no livro “Identidade e Família" discordam do teor da obra, que foi apresentada esta segunda-feira por Pedro Passos Coelho.

“Muitas destas frases assentam na ideia de que havia um tempo antigamente em que as coisas eram diferentes. Parece que há dois mil anos era de uma maneira e nos últimos dois de outra”, começa por dizer Maria do Mar Pereira. A especialista em assuntos de género explica à CNN Portugal, contudo, que “estas ‘tradições’ são recentes”.

“As tradições a que se referem parecem intemporais, porque se calhar conheceram-nas na sua infância, mas são muito recentes. A ideia de que o azul é para rapazes e o rosa para raparigas apareceu nos anos 20 e 40, não tem sequer 100 anos e até já se pensou o contrário”, exemplifica.

O livro, que aborda a temática da família e apresenta os grandes “adversários” da mesma está no centro de polémicas. Conta com textos de 24 personalidades que se têm debruçado sobre a temática, como a antiga primeira-dama Manuela Ramalho Eanes, do cardeal Manuel Clemente, do antigo presidente do CDS José Ribeiro e Castro, da advogada Raquel Brízida Castro e do diretor do jornal O Século, Jaime Nogueira Pinto.

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Pedro Afonso: "Esta [a "ideologia de género"] não tem suporte científico, nem se apoia em novas descobertas da ciência"

Ao contrário do que Pedro Afonso afirma no texto “A família como escola de amor e transmissão de valores”, o estudo do género tem um longo historial. É por isso que esta frase merece um cartão vermelho da especialista em estudos de género Maria do Mar Pereira.

Antes de mais, importa descodificar a expressão “ideologia de género”. O termo surgiu inicialmente em textos doutrinários escritos pelo Papa Bento XVI, ainda cardeal à data. Já "identidade de género", de acordo com o glossário da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, é "o autorreconhecimento pessoal e profundo enquanto homem ou mulher, enquanto ambos, ou enquanto pessoa trans e/ou não binária".

Para Maria do Mar Pereira, o uso do termo "ideologia de género" no texto não é, no entanto, claro. “Não há uma definição científica desse termo e não é clara a designação que usam. Se assumirmos que se referem à área do estudo do género, que é a forma como as sociedades se organizam em termos de género, fala-se de um campo científico reconhecido”, explica, rejeitando a falta de "suporte científico" a que o autor alude. “É absolutamente incorreto. Há mais de 70 anos que existe investigação e as primeiras surgiram ainda antes disso, mas só aí começou como um campo de estudo sistemático, em que pessoas estudam a forma com o género se organiza na sociedade”, contrapõe.

E não só é uma área estudada como está presente em várias disciplinas, desde a antropologia à neurociência, passando pela filosofia. Do ponto de vista das ciências naturais, principalmente a neurociência, “toda a investigação tem demonstrado que existe uma maior variabilidade biológica” do que simplesmente “dois sexos mutuamente exclusivos em que um é isto e o outro é aquilo”. “Sempre se soube que os homens têm cromossomas XY e as mulheres XX mas também há pessoas com cromossomas XXY. Isto sempre existiu, é reconhecido”, garante Maria do Mar Pereira.

A também investigadora na Universidade de Warwick explica que também nas ciências humanas, como a história e a antropologia, existem estudos sobre a temática do género. “Há estudos que mostram que há variabilidade dos corpos e das identidades, diferentes maneiras de viver a feminilidade e masculinidade, pessoas que não se encaixam e pessoas que transitam. É um fenómeno histórico e quanto mais estudamos, mais encontramos essas realidades que foram invisibilizadas”, afirma.

Neste texto, Pedro Afonso critica também a escola pública, dizendo que “não pode ser um lugar de doutrinação, inspirada numa ideologia radical, desvinculada da realidade”. 

Para a especialista em assuntos do género, a escola é “um espaço de veiculação de mensagens e de ideais da sociedade em qualquer parte do mundo” e “sempre foi um espaço onde se transmitem ideias sobre o género”. “Os manuais antigos em Portugal tinham textos que diziam que as mães não trabalhavam, hoje dizem que as mães trabalham. A escola veicula sempre ideias sobre género”, exemplifica.

E a ideologia “desvirtuada da realidade” ensinada na escola pública, como lhe chama Pedro Afonso, não está assim tão longínqua do presente. Maria do Mar Pereira lembra que a igualdade de género é “um princípio da Constituição”. “A escola está a veicular os princípios da Constituição portuguesa. Não estão desligados da realidade - a Constituição é a nossa realidade”, afirma.

A investigadora reitera ainda que os programas das aulas de Cidadania - a disciplina que já esteve no centro de polémicas - estão “ajustados cientificamente às práticas e à realidade atual”. “A disciplina tem vários módulos e há um de direitos humanos que aborda a igualdade de género, onde se apresentam valores da Constituição portuguesa. Há pessoas que talvez desejem mudar a realidade atual e dizem que é radical e não representa”, atira.

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Pedro Afonso: "Na verdade, ela [a legislação promotora da autodeterminação de género] acaba por não acautelar o facto de, nos casos em que verifica uma disforia de género (presença de incongruência acentuada entre o sexo biológico e o género autopercepcionado), estes estarem associados a várias patologias psiquiátricas (por exemplo, perturbações de ansiedade e depressivas, autismo, perturbações de controlo de impulso, etc.)"

A legislação da autodeterminação de género sofreu alterações em Portugal em 2018, para “obedecer aos normativos internacionais da saúde que separam a esfera jurídica e a médica”, começa por explicar Sara Merlini, investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG). A primeira lei, que veio trazer o novo paradigma, surgiu na Argentina em 2012.

De acordo com a lei portuguesa, "o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género de uma pessoa é assegurado, designadamente, mediante o livre desenvolvimento da respetiva personalidade de acordo com a sua identidade e expressão de género". Para além disso, "todas as pessoas são livres e iguais em dignidade e direitos, sendo proibida qualquer discriminação, direta ou indireta, em função do exercício do direito à identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais". 

Esta é uma das frases do texto, e que merece várias objeções de Sara Merlini.

“Temos das leis mais progressistas da Europa. As pessoas sabem quem são”, assegura. A partir daqui, “a identidade de género já não é questão da esfera médica” em Portugal (e em todos os outros que adotam legislações semelhantes). A juntar-se a estas leis, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a disforia de género do sistema de classificação internacional de doenças em 2018.

Assim, quanto à associação entre a identidade de género e as patologias psiquiátricas, Sara Merlini é clara: “Não podemos assumir que estas pessoas por terem diversidade de género estão doentes". A investigadora do CIEG garante que "já não estamos nessa fase da história", que "já ultrapassamos”.

“Parece estranho que as liberdades individuais tenham de ser determinadas para quem está contra elas, que pretende impor uma visão da realidade e restringir a liberdade e direitos que já estão garantidos”, aponta. “Não é por dizer que são doentes que vamos tornar a sociedade mais inclusiva. O que seria natural é compreender que a diversidade faz parte da sociedade”, acrescenta Sara Merlini.

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Pureza de Mello: "Somos bombardeados a toda a hora com palavras novas, que vão de 'pansexual' a 'assexual', e que pretendem descrever novas realidades identitárias, momentâneas e mutáveis"

“Pansexual” e “assexual” são dois termos apresentados por Pureza de Mello como “novos”, no texto “Quem sou eu?”. Mas, de acordo com Maria do Mar Pereira, de novos estes não têm nada - exceto a maior visibilidade no espaço mediático.

“Alguns dessas palavras já existem há muito tempo. ‘Assexual’ por exemplo já existe há muitas décadas - é mais velho do que eu e tenho 42 anos”, garante a especialista em assuntos de género. Para Maria do Mar Pereira, acontece sim que os termos em causa “estão mais visíveis no espaço mediático”. Ainda assim, o uso da palavra "bombardeados" pelo autor "induz em erro", diz.

Mas e se fossem mesmo termos novos? A criação de novas palavras é, segundo a especialista, "um fenómeno básico, normal e constante das sociedades que a linguagem mude à medida que vivemos em sociedade". "Com a emergência covid, surgiram novas palavras. É um processo normal e saudável, é a forma de se organizar à medida que mudam os desafios”, admite, garantindo que são símbolo da "inovação" e da "mudança".

“Saudável” e “normal” é também a mutabilidade das realidades referida pelo autor e com a qual Maria do Mar Pereira concorda. A investigadora rejeita, contudo, que se trate "cientificamente de uma ameaça ou disfuncionalidade das sociedades”.

“A maneira como as mães se comportavam e nós nos comportamos é diferente. As pessoas gostam de dizer que antes os homens usavam perucas e maquilhagem nas cortes e hoje já não. As identidades são sempre mutáveis”, demonstra.

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Paulo Otero: "(ii) a adulteração do conceito de casamento, fazendo nele incluir uniões de pessoas do mesmo sexo; (iii) a destruição da biparentalidade como base do vínculo de filiação, através da adoção ou da procriação medicamente assistida por parte de pessoas solteiras ou casais do mesmo sexo; (iv) a transformação do aborto e da eutanásia em direitos, numa total desproteção das situações mais frágeis da vida humana e em menosprezo pela família. Em qualquer dos casos, o que está em causa é, afinal, uma intromissão indevida do Estado na esfera reservada da família, no plano educativo, social e cultural, violando o dever de proteção da família que a Declaração Universal dos Direitos do Homem impõe aos Estados"

A intromissão do Estado na família “sempre existiu”, diz Sofia Marinho, que lembra que “Portugal tem um Código Civil que já existia desde Salazar e que regulava as relações familiares”. A socióloga da família acrescenta que o mesmo foi sofrendo mudanças a partir do 25 de Abril, nomeadamente com, entre outros, a atribuição de iguais deveres e direitos a homens e mulheres na família e o direito ao divórcio.

O casamento é apresentado por Paulo Otero, no texto "A tripla dimensão entre identidade e família: parâmetros éticos e jurídicos de veiculação", como vítima de uma “adulteração” de conceito, devido à inclusão de “uniões de pessoas do mesmo sexo”. Para Sofia Marinho, o casamento não é mais do que “um contrato social entre duas pessoas que o Estado permite” e no qual são “regulares direitos e deveres”.

“Não estou a ver o que homossexualdiade tem a ver com adulteração. Um contrato é um contrato e a orientação sexual das pessoas não altera nada”, garante, sublinhando que “as famílias de casais do mesmo sexo fazem parte da riqueza da família”, já que “os valores tradicionais da família - amarem-se, cuidarem-se, protegerem-se - se mantêm”.

Também no que toca ao aborto, Sofia Marinho não consegue compreender o “menosprezo da família” a que Paulo Otero alude. “A partir do momento em que é menos regulada a reprodução no sentido literal e em que se permite que as mulheres tenham direito a decidir juntamente com os homens se têm os filhos e quando os têm, não altera absolutamente nada a família”, garante.

A socióloga da família afirma que desde o 25 de Abril se deu luz verde à “diversidade na família”, incluindo com a possibilidade de divórcio, que dá uma “segunda oportunidade de se ter um segundo casamento, ter mais filhos, de se juntar aos filhos de outras pessoas”. O mesmo se aplica à procriação medicamente assistida, que diz ser uma “ciência extraordinária que permite às mulheres que não conseguem ter filhos tê-los”. 

“Vejo é medo da diversidade e da liberdade na reprodução e nas relações íntimas e pessoais das pessoas através das pessoas que querem ter poder na regulação - principalmente nos homens”, finaliza Sofia Marinho, analisando o livro.

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Paulo Otero: "Nas últimas décadas, porém, pela via da abertura dos critérios legais atributivos da nacionalidade, desde logo a quem não tem um mínimo de identidade cultural com os portugueses, ou através de políticas inconscientes de imigração, concedendo vistos de residência a estrangeiros que não se pretendem inserir ou aculturar na sociedade portuguesa, regista-se um sério risco de adulteração da identidade nacional. Ou, num outro sentido, a subalternização ou substituição da língua portuguesa por parte de instituições públicas, tal como sucede, por exemplo, com órgãos de universidades públicas e a própria Fundação para a Ciência e Tecnologia a tramitarem procedimentos administrativos em língua inglesa"

O número de imigrantes a viver em Portugal tem vindo a aumentar. De acordo com dados do SEF (entretanto extinto), só em 2022, eram 780 mil os residentes estrangeiros em Portugal - o nível mais alto de sempre. Têm estes valores relação com “um sério risco de adulteração da identidade nacional”, como aponta Paulo Otero no texto "A tripla dimensão entre identidade e família: parâmetros éticos e jurídicos de veiculação"?

Para Catarina Reis Oliveira, do Observatório de Migrações, a resposta é simples: “É uma ideia errada”. “A política de integração tem um efeito recíproco. Não são só os migrantes que são obrigados a acomodar-se e integrar-se, a sociedade também tem de mudar e de o fazer. Funciona de forma bilateral”, assegura.

E “todas as sociedades” o fazem pelos quatro cantos do mundo, o que foi visível, de acordo com a especialista, com a resposta “automática” e a “solidariedade” dos países aquando do rebentar dos conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente.

“Não podemos estar numa lógica de seleção em função dos que são mais parecidos connosco ou que têm relações históricas para a preservação da identidade, já não vêm só dos PALOP ou do Brasil”, diz Catarina Reis Oliveira, que acusa o autor de pensar nas identidades como algo “estático”, o que diz ser “absurdo e de um fechamento ao mundo global tremendo”.

A coordenadora do Observatório das Migrações saúda por isso a “simplificação” do processo de aquisição da nacionalidade portuguesa, que em 2006 viu os legisladores reduzirem de dez para cinco anos o número de anos de residência para a conseguir. “Até 2006 a lei estava muito ligada ao que era realidade portuguesa de país de emigração. Estava muito focada em manter os laços com as comunidades portuguesas e não tanto nesta lógica de país de imigrantes”, considera.

Catarina Reis Oliveira, que afirma que “a nacionalidade tinha de se tornar flexível”, explica que a mudança “teve um impacto muito favorável nos números”, com "um aumento expressivo dos pedidos de nacionalidade portuguesa". E reitera que “os acessos não têm necessariamente relação com a identidade nacional” e que a frase de Paulo Otero “não corresponde à verdade”.

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