"Morte à América, morte a Israel, que se danem os judeus": quem são os Houthis e porque andam a atacar navios no Mar Vermelho?

13 dez 2023, 18:00
19 de junho, combatentes iemenitas deixam as linhas de frente de Marib, no Iémen (Nariman El-Mofty, AP)

Nascidos para defenderem uma corrente minoritária do xiismo no Iémen, os Houthis transformaram-se nas últimas décadas num movimento de insurgência armada apoiada pelo Irão e pelo Hezbollah e sem uma agenda política definida. Com a guerra entre Israel e o Hamas, ganham uma nova dimensão no Médio Oriente, mas os analistas dizem que continuam a não ter capacidade de cumprir o seu derradeiro slogan

Foi o mais recente de uma série de ataques a navios de carga no Mar Vermelho, no contexto da guerra de Israel contra o Hamas. Na segunda-feira à noite, um “complexo ataque aéreo” com origem no Iémen atingiu o Strinda, um navio petrolífero da Noruega, causando um incêndio a bordo. 

Sem registo de feridos, o ataque à embarcação, que transitava da Malásia para a Índia, com recurso a dois mísseis – um lançado do porto de Hodeidah, outro de Huban, ambos no Iémen – foi reivindicado pelos Houthis, já depois de o ministro francês da Defesa ter anunciado que a fragata Languedoc tinha interceptado e abatido um drone que, na mesma noite, ameaçou o Strinda. 

De imediato, os EUA avisaram o grupo rebelde de que o plano de paz para o Iémen – a ser negociado com a Arábia Saudita desde 2022, com mediação da ONU – está em risco: se os ataques no Mar Vermelho não pararem, o acordo vai cair por terra. Foi um aviso em resposta a outro: no sábado, os Houthis tinham deixado claro que vão passar a atacar todos os navios que aparentam dirigir-se para Israel, independentemente da sua nacionalidade, origem ou destino, e advertido todas as empresas de transporte internacional marítimo que não devem fazer negócios nos portos israelitas, sob pena de serem consideradas alvos legítimos.

Telavive destacou para o Mar Vermelho um dos seus navios de guerra mais modernos, e conta com o apoio naval dos Estados Unidos, que continuam a tentar compor uma força de proteção marítima abrangente sediada no Bahrain para impedir que aquela que é uma das principais rotas marítimas comerciais do mundo seja bloqueada pelos rebeldes, com impacto direto na economia global.

Os Houthis dizem que todas as ações que têm em curso no Mar Vermelho são uma expressão da sua solidariedade para com o povo palestiniano, no contexto da ofensiva lançada por Israel contra o Hamas na Faixa de Gaza, que em dois meses e uma semana já provocou mais de 18 mil mortos, sobretudo mulheres e crianças. A ofensiva foi lançada em resposta a um ataque sem precedentes do grupo islamita, a 7 de outubro, que vitimou cerca de 1.200 pessoas em Israel.

Quais as origens dos Houthis?

Surgido no norte do Iémen no início do século passado, o movimento houthi enquadra-se no zaidismo, um ramo minoritário do xiismo, cujos imãs controlaram a região durante os séculos anteriores.

Em 1918, conseguiram estabelecer um Estado soberano que vigorou até 1962, ano em que um golpe militar conduziu a uma guerra civil que culminou no estabelecimento da República Árabe do Iémen, uma nação de maioria sunita cujas áreas zaiditas se tornaram bem mais pobres em comparação. Hoje, os xiitas zaiditas representam cerca de 35% da população do Iémen.

Nos anos 1980, face à crescente influência religiosa e financeira da Arábia Saudita no Iémen, os zaiditas uniram-se num movimento então relativamente pacífico de resistência que, ao longo da década seguinte, encontrou no clérigo Hussein al-Houthi a sua figura mais proeminente.

Em resposta aos seminários de evangelização sunita financiados pelos sauditas no país, al-Houthi lançou uma espécie de escolas de verão, um projeto que batizou "Acreditar na Juventude", para angariar mais apoiantes. Mas o seu grupo de seguidores acabaria por se desintegrar em 2001. Aqueles que continuaram a apoiá-lo passaram a ser conhecidos como Houthis.

"Morte à América, morte a Israel"

A invasão do Iraque dois anos depois forneceu a al-Houthi as munições de que precisava para voltar a engrossar as suas fileiras. Capitalizando a revolta de muitos iemenitas face ao apoio do governo às incursões bélicas dos EUA no Médio Oriente, o clérigo convocou protestos em massa e começou a disseminar o que classificava de “modelos de resistência”, na forma do grupo libanês Hezbollah e do Irão da guarda revolucionária.

Num dos seus discursos, em 2003, anunciou o objetivo declarado de “exterminar” a América e Israel, uma ameaça que, diz-se, proferira pela primeira vez em 2000, após ter visto, em vídeo, uma criança palestiniana a ser morta por soldados israelitas durante a Segunda Intifada.

Com a rebelião houthi a crescer no norte, o Iémen lançou uma operação militar que, em 2004, conduziu à morte de al-Houthi, originando uma guerra entre os rebeldes e as forças governamentais. Como indica a Economist, “a brutalidade da repressão pelo governo encorajou mais combatentes a juntarem-se às lutas que se seguiram”, o que permitiu ao grupo criar o seu próprio braço militar – se, no início, combatiam com armamento mais rudimentar obtido no mercado negro, hoje os Houthis são treinados, armados e financiados pelo Irão e pelo Hezbollah, diz o Ocidente. Teerão e o grupo islamita libanês desmentem.

Graças ao apoio do Irão, dizem os analistas, nos últimos anos os Houthis deixaram de ser um pseudo exército desorganizado para passarem a ser uma força militarizada com alcance regional, detentora de um arsenal sofisticado que inclui mísseis antitanques, balísticos e de cruzeiro, agora em uso no Mar Vermelho e nos ataques frustrados contra Israel. Ainda assim, existe o consenso de que continuam a ser um grupo sem capacidade para cumprir a ameaça de “exterminar” norte-americanos e israelitas.

Com a Primavera Árabe, inaugurou-se uma nova era no movimento rebelde, que em 2011 tomou a província de Saada e adotou o nome “Ansar Allah”, ou “defensores de Deus”. Três anos depois, e percorridos os 230 quilómetros que separam Saada da capital iemenita, os Houthis tomaram Sana’a, o norte e a maioria do oeste do Iémen, levando o então presidente do país, Abd Rabbo Mansour Hadi, a fugir para a Arábia Saudita. 

Foi a partir de Riade que, a pedido de Rabbo, os sauditas lançaram uma enorme campanha armada contra os rebeldes, cujo último capítulo continua por escrever. “Estados fragmentados não são uma raridade no Médio Oriente – veja-se o Iraque, a Líbia, a Palestina ou a Síria – mas o Iémen é o mais desunido de todos”, escrevia a Economist em agosto. Desde 2015, os cerca de 25 mil ataques aéreos sauditas no Iémen vitimaram mais de 19 mil civis. E mesmo com o cessar-fogo em vigor desde abril de 2022, a ONU declarou no início do ano que o país enfrenta a pior crise humanitária do mundo. 

Com a acalmia que a trégua trouxe, os Houthis conseguiram reforçar o controlo de várias partes do país, incluindo Sana’a, a capital, e entraram em negociações de paz com os sauditas – um acordo estava próximo quando, em outubro, deram início à sua campanha de ataques cumpridos ou prometidos contra navios que atravessam o Mar Vermelho.

O que distingue os zaiditas de outros xiitas? 

Os zaiditas acreditam que são os únicos descendentes de Ali, primo e genro do profeta Maomé, e que, por isso, é seu direito divino liderar toda a comunidade muçulmana. A maioria vive no Iémen. Ao todo, representam cerca de 8% dos 70 milhões de xiitas do globo. Contudo, há uma questão técnica religiosa que os separa dos restantes xiitas.

A maioria segue o modelo duodecimano do xiismo, que dita que o 12.º imã, desaparecido em 874 depois de Cristo, um dia regressará para trazer justiça enquanto Mahdi (“o prometido”), e que, até lá, determinados clérigos têm total autoridade sobre os fiéis, que devem segui-los como se de profetas se tratassem – uma versão religiosa que se transformou no modelo político do Irão após a Revolução Islâmica de 1979. Já os zaiditas acreditam que Zaid, bisneto de Ali, é o 5.º imã por direito, ao contrário dos duodecimanos, que defendem que o posto pertence a Mohammed al Baqir, irmão de Zaid. 

Tradicionalmente, os zaiditas não reconhecem os 12 imãs e rejeitam a doutrina duodecimana, que dita que um imã é infalível, acreditando que qualquer possível descendente de Ali é elegível para liderar a comunidade muçulmana. Contudo, a aproximação ao Irão em anos recentes tem levado a um aumento de influência duodecimana entre os Houthis. 

“As práticas xiitas duodecimanas, que são uma novidade no Iémen, estão a ser cada vez mais incorporadas na prática religiosa” no país, escreveu em 2019 Sama’a al-Hamdani, do Centro de Estudos Árabes Contemporâneos da Universidade de Georgetown. A especialista dá como exemplo a Ashura, um dos principais feriados religiosos xiitas, que marca o martírio de Hussein Ibne Ali, outro neto do profeta Maomé, e que, em 2017, foi publicamente celebrado em massa por apoiantes do movimento houthi pela primeira vez.

Politicamente, os Houthis não promovem uma ideologia coerente e a sua plataforma “é vaga e contraditória”, indica o Centro Wilson. Os insurgentes houthis originais pretendiam imitar o Hezbollah, para terem poder sem realmente estarem no poder, mas como apontava um outro analista, Gregory Johnsen, em 2015: “Eles estiveram sempre do lado de fora, têm sido um grupo miliciano que agora começa a envolver-se na política e que não sabe realmente como governar.” Para vários especialistas, a limitada mensagem que transmitem – “Deus é grande, morte à América, morte a Israel, que se danem os judeus, vitória para o Islão” – tem zero respaldo político e é mais fogo de vista para consumo externo.

A isto junta-se o imbróglio que os ocupou na década passada, quando o antigo presidente iemenita Ali Abdullah Saleh se alinhou publicamente com o movimento, para depois ser morto pelos próprios Houthis em dezembro de 2017. Antes disso, havia quem dissesse que as suas ligações a Saleh ameaçavam expô-lo como “apenas mais um dos grupos que quer um quinhão dos despojos da corrupção”.

Desde 2011, os Houthis têm recorrido mais e mais a uma linguagem nacionalista e populista e deixado de se apresentar como um movimento estritamente zaidista, cultivando inclusivamente alguns aliados políticos sunitas. Em termos domésticos, a sua grande reivindicação é criar uma região autónoma em Saada sob seu domínio – uma proposta que choca com aquela à que se opuseram durante a Conferência Nacional de Diálogo patrocinada pela ONU, na qual participaram oficialmente entre 2013 e 2014, que previa transformar o Iémen num Estado federal composto por seis regiões.

Qual o impacto destes ataques no Mar Vermelho?

Apesar de hoje mais moderno do ponto de vista armado, os Houthis continuam a não ter capacidades para representar uma ameaça séria a qualquer ator fora do Iémen. Isso é notório nos ataques que têm lançado contra o território israelita e que nunca chegam a atingir o alvo desejado: um dos mísseis de maior alcance que detêm, o Burkan-2h, consegue percorrer um máximo de mil quilómetros, longe da distância que separa os portos que controlam no Iémen e o Estado hebraico.

Já os ataques a navios do Mar Vermelho ameaçam ter um impacto maior na região e no resto do mundo. O facto de atingirem várias embarcações tem levado ao aumento dos prémios dos seguros desses navios, pagos pelas empresas que os operam, com algumas a optarem agora por uma rota mais longa através de África para escaparem aos mísseis e drones dos insurgentes.

É através do Mar Vermelho que os países europeus fazem trocas marítimas com os parceiros na Ásia através do Canal do Suez, uma das mais movimentadas rotas comerciais do mundo: de acordo com dados das autoridades norte-americanas, cerca de 8,8 milhões de barris de petróleo atravessam a região por dia. Por esse motivo, e apesar do seu alcance limitado, os recentes ataques dos Houthis não só estão a prender a atenção do Ocidente, como ameaçam ajudá-los a conquistar mais apoio entre os iemenitas após quase uma década de guerra e devastação.

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