Anna Ivanovna vive nos arredores de Kharkiv e foi filmada a saudar dois soldados ucranianos com uma bandeira da antiga União Soviética. Indignou-se quando os militares pisaram a bandeira vermelha aos seus pés, mas garante que não é pró-russa, apesar de o Kremlin ter aproveitado a oportunidade para associar a ucraniana ao patriotismo com que justifica a guerra contra Kiev
É conhecida na Rússia como Babushka Z - avó Z, em russo, uma referência à letra frequentemente pintada nos blindados de Moscovo que percorrem a Ucrânia invadida. Mas Anna Ivanovna, de 69 anos, vive em Velyka Danylivka, uma aldeia próxima de Kharkiv, na Ucrânia, com o marido, cães, gatos e coelhos. E, até há pouco tempo, não sabia sequer que se tinha tornado um ícone da Federação Russa. "Não percebo porque me tornei uma celebridade", contou aos jornalistas da BBC, que a procuraram quando perceberam que o Kremlin tinha feito uma utilização criativa da imagem da idosa ucraniana.
A história de Ivanovna conta-se em poucas linhas e começou com um vídeo. Dois soldados ucranianos chegaram junto dela há cerca de dois meses, oferecendo-lhe ajuda. Estenderam-lhe um saco com comida e bens essenciais, que a mulher aceitou, mas sem largar a bandeira da antiga União Soviética, que segurava com convicção.
— Jay Sutherland (@Jay_Sutherland_) June 18, 2022
Os soldados, depois do gesto de auxílio, decidiram então tirar-lhe a bandeira vermelha da ex-URSS e pisá-la. Perante isto, Ivanovna devolveu o saco de comida e quis recuperar a bandeira. "Os meus pais morreram por essa bandeira na Segunda Guerra Mundial", disse, indignada, aos militares. Toda a interação foi filmada e acabaria por chegar ao Kremlin, que viu no gesto de Ivanovna uma oportunidade de mostrar que, afinal, a invasão russa da Ucrânia tem encontrado apoio até entre os próprios nacionais ucranianos, ainda que essa não seja a realidade: mesmo os ucranianos pró-russos têm criticado a guerra, pelo que encontrar um "cartaz vivo" da Mãe Rússia, que surge nos cartazes patrióticos de Moscovo glorificando a União Soviética que foi capaz de se impor contra os nazis, foi para o Kremlin ouro sobre azul.
A BBC foi procurar Anna Ivanovna que, como seria de esperar, viveu durante algum tempo na ignorância de que fora transformada em símbolo da guerra e imagem da propaganda russa que procura justificar o conflito com Kiev.
I hope and pray #BabushkaZ is still alive. 🙏 https://t.co/2vrSqrBTW1
— Bird On A Mission (@suegrant54321) April 9, 2022
"Não acho que devam glorificar-me. Sou apenas uma camponesa. Não percebo porque me tornei uma celebridade", disse aos jornalistas da estação britânica, que lhe mostraram fotografias de uma estátua erguida à sua imagem em Mariupol, a cidade ucraniana tomada pelas forças russas depois de um longo cerco. "Pareço mesmo assim tão velha?", perguntou, ironizando, quando viu a homenagem.
Mas acabou por dizer que não fica satisfeita com o uso que foi feito da sua imagem, que agora está firmemente associada aos russos. "Na Ucrânia, agora, sou uma traidora", defende. Os vizinhos não lhe falam: vive numa localidade pequena e toda a gente se conhece. "Não quero problemas. Não quero que as pessoas usem isto contra mim", desabafa.
Anna Ivanovna garante que não quis passar aos soldados qualquer mensagem política quando devolveu a comida ao vê-los pisar a bandeira vermelha com a foice e o martelo. Quando os militares se aproximaram, julgou que eram russos. "Fiquei contente que os russos não vinham lutar connosco. Fiquei contente que nos uníssemos outra vez", explicou à BBC. Para ela, a bandeira da União Soviética é um símbolo de "amor e felicidade em cada família, cada cidade, cada república. Não de derramamento de sangue", reclama.
Warning! Anti-Nazi ♻ @Jeggit: This is 'Babushka Z,' the hardest wee maw in the Motherland. She's become internet famous for marching out to the Azov Nazis with her antique flag. She remembers what the Nazis did in Mariupol before.
I ❤ #BabushkaZ pic.twitter.com/Wc2NxbLhL8
— Irvine Enmore (@guauen) April 11, 2022
Diz que não é a favor da guerra. "Como posso apoiar com o meu povo a morrer? Os meus netos e bisnetos foram obrigados a ir para a Polónia. Vivemos no medo e no terror agora". Apesar da posição desfavorável ao Kremlin, Ivanovna não é capaz de criticar abertamente Vladimir Putin, a quem chama "um czar, um rei, um imperador". Mas assinala: se pudesse falar com o presidente russo, dir-lhe-ia que cometeu um erro. "Nós, trabalhadores ucranianos, o que fizemos para merecer isto? Somos nós quem está a sofrer mais", sublinha.
Para além da estátua em Mariupol, a imagem da "Babushka Z" encontra-se por toda a Rússia, desde Moscovo à Sibéria, imortalizada em cartazes, murais, até autocolantes. Até há pouco tempo, ninguém sabia se esta mulher existia: o retrato típico da camponesa da era soviética, com o lenço na cabeça e a saia grossa. E, apesar de ser uma estrela do Kremlin, Anna Ivanovna, que vive numa casa com os vidros quebrados e o telhado partido pelos bombardeamentos, faz questão de dizer a quem a quiser ouvir que não é pró-russa. "Eles não se importam com as pessoas aqui na Ucrânia, só querem conquistar as nossas terras", resume.