Babushka Z, a ucraniana com a bandeira da União Soviética que o Kremlin usou para propaganda de guerra. "Na Ucrânia, agora, sou traidora"

20 jun 2022, 22:00
"Babushka Z" (Foto via Twitter)

Anna Ivanovna vive nos arredores de Kharkiv e foi filmada a saudar dois soldados ucranianos com uma bandeira da antiga União Soviética. Indignou-se quando os militares pisaram a bandeira vermelha aos seus pés, mas garante que não é pró-russa, apesar de o Kremlin ter aproveitado a oportunidade para associar a ucraniana ao patriotismo com que justifica a guerra contra Kiev

É conhecida na Rússia como Babushka Z - avó Z, em russo, uma referência à letra frequentemente pintada nos blindados de Moscovo que percorrem a Ucrânia invadida. Mas Anna Ivanovna, de 69 anos, vive em Velyka Danylivka, uma aldeia próxima de Kharkiv, na Ucrânia, com o marido, cães, gatos e coelhos. E, até há pouco tempo, não sabia sequer que se tinha tornado um ícone da Federação Russa. "Não percebo porque me tornei uma celebridade", contou aos jornalistas da BBC, que a procuraram quando perceberam que o Kremlin tinha feito uma utilização criativa da imagem da idosa ucraniana.

A história de Ivanovna conta-se em poucas linhas e começou com um vídeo. Dois soldados ucranianos chegaram junto dela há cerca de dois meses, oferecendo-lhe ajuda. Estenderam-lhe um saco com comida e bens essenciais, que a mulher aceitou, mas sem largar a bandeira da antiga União Soviética, que segurava com convicção. 

Os soldados, depois do gesto de auxílio, decidiram então tirar-lhe a bandeira vermelha da ex-URSS e pisá-la. Perante isto, Ivanovna devolveu o saco de comida e quis recuperar a bandeira. "Os meus pais morreram por essa bandeira na Segunda Guerra Mundial", disse, indignada, aos militares. Toda a interação foi filmada e acabaria por chegar ao Kremlin, que viu no gesto de Ivanovna uma oportunidade de mostrar que, afinal, a invasão russa da Ucrânia tem encontrado apoio até entre os próprios nacionais ucranianos, ainda que essa não seja a realidade: mesmo os ucranianos pró-russos têm criticado a guerra, pelo que encontrar um "cartaz vivo" da Mãe Rússia, que surge nos cartazes patrióticos de Moscovo glorificando a União Soviética que foi capaz de se impor contra os nazis, foi para o Kremlin ouro sobre azul.

 

A BBC foi procurar Anna Ivanovna que, como seria de esperar, viveu durante algum tempo na ignorância de que fora transformada em símbolo da guerra e imagem da propaganda russa que procura justificar o conflito com Kiev. 

 

"Não acho que devam glorificar-me. Sou apenas uma camponesa. Não percebo porque me tornei uma celebridade", disse aos jornalistas da estação britânica, que lhe mostraram fotografias de uma estátua erguida à sua imagem em Mariupol, a cidade ucraniana tomada pelas forças russas depois de um longo cerco. "Pareço mesmo assim tão velha?", perguntou, ironizando, quando viu a homenagem.

A estátua da "Babushka Z" na cidade ucraniana de Mariupol

Mas acabou por dizer que não fica satisfeita com o uso que foi feito da sua imagem, que agora está firmemente associada aos russos. "Na Ucrânia, agora, sou uma traidora", defende. Os vizinhos não lhe falam: vive numa localidade pequena e toda a gente se conhece. "Não quero problemas. Não quero que as pessoas usem isto contra mim", desabafa.

Anna Ivanovna garante que não quis passar aos soldados qualquer mensagem política quando devolveu a comida ao vê-los pisar a bandeira vermelha com a foice e o martelo. Quando os militares se aproximaram, julgou que eram russos. "Fiquei contente que os russos não vinham lutar connosco. Fiquei contente que nos uníssemos outra vez", explicou à BBC. Para ela, a bandeira da União Soviética é um símbolo de "amor e felicidade em cada família, cada cidade, cada república. Não de derramamento de sangue", reclama.

Diz que não é a favor da guerra. "Como posso apoiar com o meu povo a morrer? Os meus netos e bisnetos foram obrigados a ir para a Polónia. Vivemos no medo e no terror agora". Apesar da posição desfavorável ao Kremlin, Ivanovna não é capaz de criticar abertamente Vladimir Putin, a quem chama "um czar, um rei, um imperador". Mas assinala: se pudesse falar com o presidente russo, dir-lhe-ia que cometeu um erro. "Nós, trabalhadores ucranianos, o que fizemos para merecer isto? Somos nós quem está a sofrer mais", sublinha. 

Um mural russo com a imagem da "Babushka Z" (Foto via Twitter)

Para além da estátua em Mariupol, a imagem da "Babushka Z" encontra-se por toda a Rússia, desde Moscovo à Sibéria, imortalizada em cartazes, murais, até autocolantes. Até há pouco tempo, ninguém sabia se esta mulher existia: o retrato típico da camponesa da era soviética, com o lenço na cabeça e a saia grossa. E, apesar de ser uma estrela do Kremlin, Anna Ivanovna, que vive numa casa com os vidros quebrados e o telhado partido pelos bombardeamentos, faz questão de dizer a quem a quiser ouvir que não é pró-russa. "Eles não se importam com as pessoas aqui na Ucrânia, só querem conquistar as nossas terras", resume.

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