Cisjordânia. Uma ocupação sem fim à vista e cada vez mais violenta. "Colonatos continuam a expandir-se sem qualquer contestação"

23 nov 2023, 08:00
Forças armadas israelitas estão a intensificar operações na Cisjordânia (Lusa/EPA/ALAA BADARNEH)

Número de palestinianos mortos e desalojados à força neste território, onde o Hamas não governa, disparou desde 7 de outubro. Expulsão "é um medo constante na nossa casa", diz Maria, habitante palestiniana da Cisjordânia, à CNN Portugal

As imagens que chegam diariamente da Faixa de Gaza têm captado as atenções do mundo no último mês. A crueldade da violência israelita sobre aquele território é espelhada nos números: centenas e centenas de edifícios destruídos, milhares de mortos e mais de um milhão e meio de deslocados internos.

O pequeno exclave palestiniano não é, contudo, o único a sofrer com a resposta israelita ao ataque de 7 de outubro. Muito discretamente, e nas barbas da comunidade internacional, Israel tem aumentado a repressão contra os palestinianos da Cisjordânia.

Tal como em Gaza, os dados não mentem: segundo o Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA), 418 palestinianos já perderam a vida naquele território em 2023, o segundo total mais elevado do milénio, apenas superado pelos 616 de 2002. Dessas 418 pessoas, 42%, ou 183, foram mortas pelas forças e colonos israelitas entre 7 de outubro e 17 de novembro. Entre essas 183, 47 eram crianças.

Para além da repressão armada, Israel tem também limitado os movimentos dos palestinianos da Cisjordânia, território onde o Hamas não governa e praticamente não existe. “Estamos todos a evitar deslocações desnecessárias”, diz Maria Jeries à CNN Portugal. “Estamos na época da colheita das azeitonas, mas a maioria dos palestinianos optou mesmo por não as colher”, refere, apontando ao assassinato de um agricultor em Nablus por parte de um colono israelita, no dia 29 de outubro.

Maria fala a partir de Belém, local histórico do Cristianismo onde, segundo a Bíblia, terá nascido Jesus Cristo. Os habitantes desta cidade conhecem bem a realidade da ocupação, uma vez que está quase totalmente rodeada de colonatos israelitas. Com os Acordos de Oslo, datados de 1993, a Cisjordânia ficou dividida em três zonas: a zona A, onde a Autoridade Palestiniana exerce o controlo civil e securitário; a zona B, cuja segurança é assegurada tanto por palestinianos como por israelitas; e a zona C, totalmente administrada por Israel. Esta última corresponde a cerca de 60% do território da Cisjordânia.

Igreja da Natividade, Belém, Cisjordânia (AP)

Os colonatos e postos avançados que rodeiam Belém fazem parte da zona C e foram, na sua maioria, construídos em terrenos ilegalmente expropriadas a palestinianos. A família de Maria foi uma das que sofreu: os colonatos de Gilo e Har Gilo desenvolveram-se em terras que outrora lhe pertenceram de facto.

Para os palestinianos que ainda residem nas aldeias da zona C, a vida é um pesadelo. “Serviços básicos, como a água e a eletricidade, não existem, devido às políticas israelitas, enquanto os colonatos usufruem dos melhores serviços e infraestruturas e continuam a expandir-se sem qualquer contestação”, lamenta Maria. “A fim de ‘proteger’ os colonos e abrir caminho a mais apropriação de terras, é também quase impossível obter uma licença de construção ou plantação na zona C”.

A vida de quem vive nas zonas A e B não é, contudo, mais fácil. Através de checkpoints, túneis, barreiras e uma forte presença das suas forças militares, Israel controla quase todos os movimentos dos palestinianos. Maria trabalha em Jerusalém e tem uma autorização de trabalho especial, o Tasreeh, para entrar na cidade, um “privilégio” que a maioria dos palestinianos não tem. Isto quer dizer que, para ir para o trabalho, tem de passar por um checkpoint ou escritório de coordenação israelita todos os dias. Nem sempre corre bem.

“Tenho de passar diariamente num checkpoint, onde um soldado de 18 anos verifica a minha autorização e o meu cartão magnético, também emitido por Israel, e tem o poder para recusar a minha entrada sem qualquer motivo. Raramente nos dão o benefício da dúvida, são treinados para desumanizar os palestinianos”.

Checkpoint de Maccabim, a noroeste de Jerusalém (AP)

De acordo com a OCHA, existem atualmente 645 checkpoints e barreiras por toda a Cisjordânia. Desses, apenas 23 estão situados na fronteira com Israel; os restantes servem para limitar a movimentação interna dos palestinianos. Há cada vez mais estradas exclusivas para colonos e menos para os palestinianos.

“Condicionam toda a nossa vida: em que universidade estudamos, onde trabalhamos, onde casamos. Planear um dia tornou-se quase impossível, e trabalhar e estudar noutra cidade já quase não é uma opção”, lamenta Maria Jeries, que nos partilha um conselho dado por palestinianos a outros palestinianos: “Se tiveres algo importante noutra cidade, parte no dia anterior”.

Maria dá-nos um exemplo. Uma viagem da sua cidade, Belém, até Ramallah, passando por Jerusalém, demoraria 25 minutos pelo percurso mais rápido. No entanto, os palestinianos são obrigados a utilizar a estrada Wadi Alnar, que os encaminha para longe dos colonatos e para um dos mais importantes checkpoints, o Container, que controla os movimentos entre o norte e o sul da Cisjordânia. Os 25 minutos de viagem transformam-se em três horas num dia normal, quatro aos fins de semana.

Em Belém é também possível ver uma estruturas mais reconhecíveis da ocupação israelita, o muro, que se estende por toda a Cisjordânia. Em 2003, ainda durante as primeiras fases de construção, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) determinou que o muro “impede gravemente o exercício pelo povo palestiniano do seu direito à autodeterminação, constituindo assim uma quebra da obrigação de Israel de respeitar esse direito”, e considerou que este viola a Quarta Convenção de Genebra pois, a par da construção de colonatos, “tende a alterar a composição demográfica dos Territórios Palestinianos Ocupados”.

Ainda assim, Israel não parou e o muro tem agora cerca de 700 quilómetros de extensão. Mais do que separar israelitas e palestinianos, a barreira separa também muitos palestinianos do restante território da Cisjordânia: estima-se que mais de 20 mil vivem do mesmo lado de Israel.

Os colonos judeus que vivem no complexo do Túmulo de Raquel utilizam o seu parque infantil situado junto a uma secção do muro, que os separa da cidade de Belém, na Cisjordânia (AP)

Colonatos, um projeto supremacista apoiado por Israel

Tem sido uns dos temas que menos divide a comunidade internacional. Ao longo dos anos, a maioria dos Estados do mundo condenou, em determinado momento, os colonatos israelitas nos Territórios Palestinianos Ocupados. Em dezembro de 2016, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a resolução 2334, que determina que os colonatos “não têm qualquer validade legal e constituem uma flagrante violação do direito internacional”. A resolução foi aprovada com 14 votos a favor e nenhum contra; os Estados Unidos, maior aliado de Telavive, absteve-se.

Mas não importa para os sucessivos governos israelitas, que têm impulsionado e apoiado o estabelecimento de mais colonatos e postos avançados em território palestiniano.

O número de colonos ultrapassou este ano os 700 mil. Muitos destes nem são israelitas: em 2016, cerca de 60 mil judeus americanos viviam nos territórios ocupados, o que correspondia a 15% da população dos colonatos à época (excluindo Jerusalém Oriental).

O movimento dos colonos é um dos mais extremistas da sociedade israelita. No dia 11 de novembro, a revista New Yorker publicou uma entrevista com Danielle Weiss, uma das líderes desta corrente. Filha de pai americano e mãe polaca, Weiss admitiu abertamente à publicação americana que um dos objetivos do movimento é fechar totalmente à porta ao estabelecimento de um Estado palestiniano.

Entre outras considerações, Weiss afirmou que a pátria dos judeus se deveria estender do Nilo até ao Eufrates, o que incluiria não só o território da Palestina e de Israel, mas também de Egito, Jordânia, Síria e Iraque, e que os palestinianos “deveriam aceitar” viver sob o domínio israelita, mas sem direitos fundamentais, como o direito ao voto.

Sobre Gaza, Weiss disse que o fim dos colonatos israelitas naquele território foi “um erro” e referiu que os palestinianos que lá vivem deveriam ir “para o Sinai, para o Egito ou para a Turquia”.

Quando questionada sobre o porquê de os habitantes de Gaza terem de ir para esses sítios, uma vez que não são egípcios nem turcos, Weiss deu uma resposta arrepiante: “Os ucranianos não são franceses, mas quando a guerra começou foram para muitos países. E os habitantes de Gaza estão a morrer [desesperar] para ir para outros lugares”.

Na mesma entrevista, Danielle Weiss referiu que o apoio do atual governo de Benjamin Netanyahu tem sido melhor que o dos anteriores. De facto, o atual executivo é o mais extremista deste século em Israel, havendo dois nomes que se destacam: Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir.

Smotrich, ministro das Finanças, é ele próprio colono, vizinho de Weiss no colonato de Kedumim. No dia 14 de novembro, depois de mais de um mês de relativa contenção, disparou a seguinte declaração: “O Estado de Israel não será mais capaz de aceitar a existência de uma entidade independente em Gaza. A única solução humanitária, após 75 anos de refugiados, pobreza e insegurança, é a emigração voluntária dos árabes de Gaza para outros países no mundo”. A expressão foi clara: há uma solução “humanitária” que é a limpeza étnica, mas também há outras, presumindo-se, mais violentas.

Obras de construção no colonato israelita de Kedumim, onde reside Bezalel Smotrich (AP)

Mais recentemente, no dia 17, Smotrich criticou a decisão do gabinete de guerra de Israel, que passou a permitir a entrada diária de dois camiões-cisterna na Faixa de Gaza para ajudar à limpeza do sistema de saneamento, de modo a conter a propagação de doenças.

"Esta decisão é extremamente estranha e uma cuspidela na cara dos soldados das IDF, das famílias enlutadas, dos reféns e das suas famílias. Não é assim que se ganha uma guerra, não é assim que se destrói o Hamas e não é assim que vamos devolver os reféns", explicou, num comunicado publicado nas suas redes sociais.

Quem também se mostrou desfavorável a esta decisão foi Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional, uma das pastas de maior relevo no governo israelita. Fanático religioso e supremacista judeu, uma das suas declaradas intenções é facilitar o acesso dos israelitas a armas de fogo, processo que acelerou após 7 de outubro. O indicador mais relevante da sua ideologia não é esse, porém.

Em 2020, aquando das negociações para a formação de um anterior hipotético governo liderado por Naftali Bennett, do partido Nova Direita, uma das linhas vermelhas de Bennett era um retrato que Ben-Gvir tinha pendurado na sua casa. A fotografia era de Baruch Goldstein, terrorista de extrema-direita israelo-americano que, no dia 25 de fevereiro de 1994, abriu fogo sobre dezenas de muçulmanos que rezavam numa mesquita em Hebron, na Cisjordânia. Goldstein matou 29 pessoas nesse dia, incluindo crianças de 12 anos.

Com alguma relutância, Ben-Gvir retirou o retrato da sua casa. "Perante o facto de o destino do povo judeu e da terra de Israel estar em jogo, declaro que, a bem da unidade e de uma vitória da direita nas eleições, vou retirar a fotografia da minha sala de estar", escreveu, na altura, numa publicação no Facebook, citada pelo The Times of Israel.

Mais uma vez, a linguagem foi clara: Ben-Gvir não removeu a fotografia por ser errado apoiar o terrorismo.

Com estes governantes no poder, não é de estranhar que alguns colonos sintam impunidade para aterrorizar a vida dos palestinianos. Cenas como as relatadas pela CNN Internacional na aldeia de Khirbet Zanouta, de onde 140 pessoas foram expulsas por colonos armados, tornaram-se mais frequentes desde 7 de outubro. De acordo com dados da B’Tselem, organização israelita pelos direitos humanos, e até 16 de novembro, 963 palestinianos foram expulsos das suas casas pelos extremistas, que contam com o apoio das forças e do governo israelita.

“O Ocidente vê-nos como um fardo”

O apoio fervoroso do Ocidente a Israel, em particular dos Estados Unidos e da União Europeia, não é algo que tenha surpreendido Maria, que garante que a sua perceção dos governos ocidentais não mudou com este conflito.

“Há 75 anos que estamos em paz com esse facto, pelo que não se tratou de uma grande mudança de perceção, mas sim de uma chamada de atenção para o facto de o Ocidente nos ver como um caso social e até como um fardo. Não somos tratados ou considerados como iguais a eles e as nossas vidas não são vistas como iguais às vidas dos israelitas”, lamenta Maria à CNN Portugal.

“No entanto, foi desanimador o facto de termos visto recentemente como os líderes mundiais conseguiram unir-se para defender os direitos humanos e condenar a ocupação durante a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O Ocidente é seletivo nas causas e na aplicação dos direitos humanos e do direito internacional e é guiado por interesses. Estão a usar como arma a sua culpa em relação aos judeus contra os palestinianos, pelo que Israel está imune a qualquer tipo de responsabilidade e consequências. Qualquer tipo de condenação ou ação contra Israel é agora considerada antissemita”, considera.

Nas últimas semanas, contudo, a administração americana tem-se mostrado favorável à criação de um Estado palestiniano governado pela Autoridade Palestiniana, posição que o secretário de Estado Antony Blinken transmitiu a Mahmoud Abbas. No dia 18 de novembro, Joe Biden declarou não só essa intenção, como avançou com o que seria uma novidade: decretar sanções, como a rejeição da concessão de vistos, aos colonos israelitas que ataquem os palestinianos da Cisjordânia. Longe de ser suficiente para convencer Maria.

Antony Blinken e Mahmoud Abbas reunidos em Ramallah, Cisjordânia, no dia 5 de novembro de 2023 (AP)

“São promessas e compromissos vazios, não acredito que os EUA sejam uma terceira parte neutra, os palestinianos já passaram por isso em diferentes momentos da história e todo o mundo teve oportunidade de o ver durante esta guerra. O nosso direito à autodeterminação e as nossas legítimas aspirações não podem ser ditadas por nenhuma administração americana”, afirma, questionando também a legitimidade da Autoridade Palestiniana nesse eventual cenário.

“Também não acredito que a atual Autoridade Palestiniana seja, para começar, o representante legítimo do povo palestiniano. É necessário que se realizem eleições antes da representação dos palestinianos em qualquer negociação ou acordo”, diz. Porém, lembra que é Israel quem impede esse processo.

“Contra a crença comum, é Israel que está a impedir as eleições palestinianas, devido à sua recusa em realizar eleições em Jerusalém Oriental”.

Perguntámos a Maria Jeries se tem medo de que algum dia seja expulsa de Belém. “É um medo e uma discussão constantes na nossa casa. Israel criou um ambiente coercivo para os palestinianos, especialmente para os jovens, mas tenho a certeza de que não vou desistir tão facilmente”.

Aprendemos com a Nakba, em 1948, e com a Naksa, em 1967, que os refugiados que fugiram à perseguição não puderam regressar até hoje, apesar de várias resoluções [da ONU] que apelavam ao seu regresso, e a procura temporária de refúgio tornou-se uma realidade brutal e prolongada. Embora receemos ser forçados a partir, estamos profundamente enraizados e investidos nesta terra e não facilitaremos a saída forçada de ninguém”, declara.

Para que a ocupação israelita tenha fim, Maria afirma que terá de “realizar-se um longo processo de conciliação e responsabilização”. Mas não se mostra muito esperançosa que este regime acabe.

“Vivi os meus quase 30 anos sob ocupação, por isso não conheço outra realidade, a ocupação acontece desde 1967. Não consigo imaginar o que seria ou o que aconteceria durante a minha vida. Parece que se tornou uma realidade com a qual temos de lidar e ajustar as nossas vidas”.

Médio Oriente

Mais Médio Oriente

Patrocinados