“Ó Gente da Minha Terra. Quando ouço esta música, comovo-me porque podia ser sobre os ucranianos.” Embaixador da Ucrânia na ONU reitera que é preciso “desnuclear” a Rússia

21 jun 2023, 22:00
Sergiy Kyslytsya, embaixador da Ucrânia na ONU. 27 abril 2023. Foto: Ed Jones/AFP via Getty Images

Sergiy Kyslytsya, embaixador da Ucrânia na ONU falou em exclusivo com a CNN Portugal, numa entrevista que começou como é esperado de um diplomata ucraniano em tempos de guerra e terminou com um pedido à cantora Mariza e à gente da sua terra

Sergiy Kyslytsya conhece bem os cantos da casa do Instituto Ucraniano da América. Um edifício na 5.ª Avenida que destoa dos arranha-céus de Nova Iorque. É um marco histórico nacional e parte do Distrito Histórico do Museu Metropolitano. No primeiro andar, uma exposição de uma artista ucraniana nascida nos EUA. No segundo, a conferência anual da Associação de Jornalistas Ucranianos da América do Norte, onde o embaixador acabou de discursar. No terceiro, poltronas de pele e o silêncio da biblioteca interrompido por Sergiy Kyslytsya para repetir o que já disse tantas vezes.
 
“A presidência da Federação Russa no Conselho de Segurança foi um dos momentos mais baixos, senão o mais baixo da história das Nações Unidas. Porque nunca um país envolvido numa guerra ativa de agressão presidiu ao Conselho de Segurança ou à Assembleia Geral.”
 
Faz questão de relembrar o Artigo 23 da Carta das Nações Unidas, que determina a composição do Conselho de Segurança, para realçar que em nenhum momento a Rússia é mencionada como membro permanente, mas sim as “Repúblicas Socialistas Soviéticas”. Uma sucessão após o desmembramento da União Soviética aceite por unanimidade pelos membros da ONU. Afinal, as armas nucleares ficaram do lado da Rússia. E, sobre isso, Sergiy Kyslytsya também tem algo a dizer: “a Federação Russa deveria ser desnuclearizada. Provou com as suas ações que não é um membro responsável da comunidade internacional a quem se pode confiar um arsenal nuclear”.  

Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU são considerados superpotências, mas o embaixador refuta esse argumento. “A perceção sobre a Rússia ser económica e militarmente importante não é de todo verdadeira. Quantos de nós acreditavam que a Rússia tinha o segundo [maior] exército do mundo? E na forma como a Ucrânia, juntamente com os Aliados, provou o contrário? Se olhar para a contribuição da federação russa para o orçamento da ONU, é apenas um dos exemplos. Os Estados Unidos pagam 22% do orçamento comum e 27% do orçamento das operações de manutenção da paz das Nações Unidas. Acho que a China paga cerca de 11 a 12%. A Rússia que tem assento no Conselho de Segurança, a Rússia que nos diz todos os dias como nos comportar, o que fazer, o que dizer, paga menos de 2% de todo o orçamento das Nações Unidas.”

No final do ano passado, um dia depois do Natal, a Ucrânia pediu a exclusão da Rússia das Nações Unidas. Num exercício hipotético e de interpretação, Sergiy Kyslytsya demonstra que mesmo que isso acontecesse dificilmente o conflito na Ucrânia estaria resolvido. Imaginemos que “os membros do Conselho de Segurança elaboram uma decisão que diz literalmente: «A Rússia deve parar a guerra. A Rússia deve retirar imediatamente as tropas da Ucrânia», como a Assembleia Geral votou em várias ocasiões. A decisão é executada pelo Conselho, adotada e enviada a Putin. Putin recebe a decisão no seu escritório no Kremlin. Ele lê e o que acontece a seguir? Ele liga para o [Sergei] Shoigu [Ministro da Defesa da Rússia] num telefone do governo e diz: «Shoigu, há uma decisão do Conselho de Segurança! Dizem para retirarmos as tropas. Executa a decisão imediatamente!». Não, isso nunca irá acontecer porque lidamos com uma espécie de regime criminoso que está para além de qualquer censura ou controlo”.

Ainda assim, Sergiy Kyslytsya diz que o Conselho de Segurança não está completamente paralisado. Para além da questão da Ucrânia, há 12 operações de manutenção de paz, 15 regimes de sanções, a questão do Sudão, da Síria… “E a Rússia tem muito sucesso, vamos admitir, em manipular o seu papel no Conselho de Segurança, porque mesmo que a Rússia deixe todos irritados e frustrados com a questão da Síria, por fim, a Rússia acaba por concordar em votar no Conselho de Segurança para permitir um corredor humano na Síria.”

Para o diplomata ucraniano, a única solução é o “mundo civilizado manter-se unido”, porque “a Rússia está à procura de qualquer oportunidade para abrir uma brecha na posição da comunidade transatlântica”. Nem mesmo o diálogo com o homólogo russo está em cima da mesa. “[Vasily] Nabenzya não é ninguém. Não quero ofendê-lo, mas é um facto que na estrutura russa de poder e esquema de superioridade e subordinação, ele é literalmente ninguém. Ele não tinha informações sobre o início da invasão. Se olhar para o vídeo do Conselho de Segurança na noite do dia 23, quando já era 24 de fevereiro na Europa, vê que todo o seu comportamento indicava que ele não tinha ideia do que estava a acontecer”.

Ainda assim, Sergiy Kyslytsyna realça o valor do Conselho de Segurança: “é a única plataforma global onde as reuniões são públicas, emitidas na televisão em seis línguas e onde os membros do Conselho de Segurança, as potências globais e os membros eleitos têm de tomar uma posição. Se olhar para as reuniões em Bruxelas, tanto as reuniões da NATO, como as reuniões da União Europeia, na maioria das vezes, ou mesmo exclusivamente, acontecem à porta fechada”.

Brasil “ainda está a tentar entender melhor as questões de política externa”

Desde que voltou a assumir a presidência do Brasil, Lula da Silva defende que a guerra na Ucrânia tem de ser resolvida na mesa das negociações. Algumas das suas declarações não foram bem vistas, nomeadamente em relação a cedências. O diplomata ucraniano sublinha que “o Brasil é um importante país regional. Ainda está a formar-se e a tentar entender melhor as questões de política externa depois das eleições”. Lula da Silva enviou o mesmo representante à Rússia, e depois de muitas críticas e pressão internacional, à Ucrânia. “Recebemos prontamente o senhor e tivemos discussões muito positivas. Ele está de volta ao seu país e provavelmente estão a analisar qual será o próximo passo. Acho que é nosso dever agir com responsabilidade e conversar com o Brasil e outros países importantes que estão dispostos a ser instrumentais”. Mas, tal como o Presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky tem repetido, Sergiy Kyslytsyna garante que “não importa quem possa apresentar um plano para pôr fim à guerra. Se esse plano não incluir a plena integridade territorial da Ucrânia, não vai resultar”.

“Não há purgatório para criminosos de guerra. Eles vão direto para o inferno”. Mais de 450 dias desde que Sergiy Kyslytsyna fez a sua primeira declaração sobre a guerra na reunião de emergência do Conselho de Segurança, na madrugada da invasão, o embaixador não sente que a comunidade internacional esteja cansada. “Não vejo cansaço na determinação dos países que podem fornecer-nos política e fisicamente defesa ou assistência financeira. Se comparar os votos na Assembleia Geral a 2 de março de 2022 e a 23 de fevereiro de 2023, irá ver que desmentem totalmente a narrativa da federação russa de que o mundo está cansado do conflito”.

A singularidade portuguesa

Quanto a Portugal, Sergiy Kyslytsya elogia o desempenho diplomático do país. “Portugal é um dos últimos países da União Europeia que ainda consegue aproveitar a vida e implementar as diretivas da UE. É um país muito bom. Tem um papel particular a desempenhar na política global porque Portugal tem uma dimensão particular quando se trata da comunidade lusófona. A maneira como vocês falam com Timor-Leste, com Moçambique, com Angola, com Cabo Verde é muito importante.”

“Gosto da comida portuguesa, gosto da música portuguesa.” Em 2021, ainda em plena pandemia, cruzou o oceano por um dia e meio para celebrar o aniversário em Portugal. E se pudesse pedir uma prenda? “Acho artistas como a Mariza excecionais. Adoraria conhecê-la quando ela estiver nos Estados Unidos. Uma das minhas músicas favoritas é Ó Gente da Minha Terra. Quando a ouço, comovo-me mesmo porque esta música pode ser 100% sobre os ucranianos. Espero que um dia a Mariza dedique uma das suas interpretações desta música à Ucrânia.”

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