Hamas. A criatura rebela-se contra o seu criador

22 out 2023, 11:00
Israel retalia ataques do Hamas (AP Photo)

ANÁLISE || O Hamas tem as suas raízes no início da década de 1970 quando, então, se dedicou a atividades de apoio social. Mas o ano de 1989 marca o início dos ataques do Hamas contra Israel

“Enganámo-nos. Acreditámos tratar-se de uma organização que apenas se preocupava com o bem-estar das populações. Nunca imaginamos que se transformaria neste tipo de inimigo”. A afirmação, desabafo quase, foi feita por um responsável israelita quando, na década de 1990, o inquiri sobre as razões que levaram Israel a não proibir a criação do Hamas ou, segundo algumas publicações, mesmo a incentivar e apoiar a sua fundação.

As razões para Telavive impedir a criação do Movimento de Resistência Islâmica, vulgo Hamas, eram demasiado óbvias; estavam ‘escritas na parede’, mas o então governo liderado por Yitzhak Shamir, com Yitzhak Rabin na defesa, tinha outras preocupações: conter a laica Organização de Libertação da Palestina (OLP), chefiada por Yasser Arafat, que se apropriara da liderança da primeira Intifada. Israel precisava de um grupo palestiniano que fizesse contraponto à OLP ou, melhor ainda, que a fragilizasse e minasse a sua popularidade junto dos habitantes da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, em luta contra uma ocupação que já contava 27 anos.

Caridade e bombas

O Hamas mergulha as suas raízes no início da década de 1970 quando um grupo de palestinianos, aparentemente sem filiação política/partidária, se dedicou a atividades de apoio social à população dos territórios ocupados. Para o efeito, fundou em Gaza a organização Mujama al-Islamiya que criou escolas, clínicas e até mesquitas e foi reconhecida por Israel em 1979.

Aparentemente pacífica, a organização do xeque Ahmed Yassin era, porém, um ramo da Irmandade Muçulmana egípcia com quem Yassin contactara quando estudante na universidade Al-Azhar do Cairo e cuja ideologia teocrática e violenta abraçou. A prová-lo, o envolvimento dos seus líderes, no início da década de 1980, na aquisição e armazenamento de armas, o que os levou às cadeias israelitas.

Em dezembro de 1987 e na sequência de um incidente no campo de refugiados de Jabalyia, na Faixa de Gaza, desencadeia-se um movimento popular contra o ocupante que irá denominar-se de Intifada (Guerra das Pedras) e que rapidamente alastra à Cisjordânia. Embora apanhada de surpresa, a OLP não hesita em assumir a liderança deste movimento de resistência, a que dá enquadramento político e orientação militar.

É neste ambiente que o paraplégico xeque Yassin, acompanhado por Abdel Rantissi e Mohammad Taha, funda, em Gaza, o Hamas. De orientação sunita, o grupo é considerado pelos seus fundadores como a “ala militar” palestiniana dos Irmãos Muçulmanos.

Tal como muitos outros movimentos do género, o Hamas – para além da sua ala militar, designada pelas brigadas Ezzedine Al-Qassam - tem uma ala política chefiada por Yassin, considerado desde sempre o seu líder espiritual e que nunca foi contestado dentro do movimento nem a sua palavra foi alguma vez posta em causa.

Meses após a sua criação, o Hamas tornou pública a Carta de Princípios onde se afirma determinado em estabelecer um Estado islâmico em todo o território do antigo mandato britânico, ou seja, “do mar Mediterrâneo ao rio Jordão”. Posto isto, libertar a Palestina passou a ser então um “dever religioso” de qualquer muçulmano, sublinha o documento do movimento que conta com o apoio do Irão e do Qatar e ainda das várias Jihad Islâmicas que pululam pelo mundo assim como das Irmandades muçulmanas

O ano de 1989 marca o início dos ataques do Hamas contra Israel. A inexistência de fronteiras físicas, como os muros e as barreiras eletrificadas que hoje existem, com os territórios ocupados facilitou as ações do movimento integrista, a primeira das quais foi o rapto e assassinato de dois soldados israelitas. Em consequência o xeque Yassin é preso, mas será libertado oito anos depois numa troca de agentes da Mossad (serviços secretos israelitas que atuam no exterior) que haviam sido detidos na Jordânia quando tentavam assassinar Khaled Meshaal, chefe do gabinete político do Hamas.

A lista das ações do Hamas contra Israel é longa, e numerosas são as suas vítimas. De organização de caridade, o movimento islamita revelou-se como o mais violento grupo palestiniano, uma das razões que levou a OLP a recusar aceitá-lo nas suas fileiras.

De opositor a governo

Assinados entre a OLP e Israel em 1993, os Acordos de Oslo foram duramente criticados pelo Hamas que os rejeitou e continuou a defender a libertação da Palestina pela luta armada. Essa “luta” coube, durante muito tempo, a suicidas que se faziam explodir em autocarros, paragens de autocarros, restaurantes e cafés em Israel. Muitos dos suicidas eram jovens a quem haviam feito uma lavagem de cérebro ou que coagiram sob qualquer pretexto, muitas vezes para poupar a família. O Hamas, e a Jihad Islâmica que com ele colaborava, não hesitaram mesmo em utilizar crianças como suicidas, como está amplamente documentado.

Os Acordos de Oslo possibilitaram a criação da Autoridade Palestiniana (AP), liderada por Arafat, que se estabeleceu em Gaza e na Cisjordânia e que Telavive responsabilizava e tornava alvo de represálias de cada vez que acontecia um atentado perpetrado pelos integristas.

Israel retaliava a cada atentado do Hamas, retaliações que acabavam sempre por atingir civis. A política dos assassinos seletivos foi também posta em prática por Telavive para eliminar os líderes militares e também políticos do movimento integrista. É assim que, a 22 de março de 2004, o xeque Yassin é assassinado por um ataque de helicóptero quando saía de uma mesquita em Gaza. No mesmo ano, correm rumores de que o Hamas teria abandonado a ideia de criar um Estado islâmico. Verdade ou não, o facto é que o movimento decidiu participar nas eleições legislativas palestinianas, realizadas em janeiro de 2006, que sai vencedor, tal como temia Israel e a AP.

“A Fatah, então partido de Abbas, e Israel não queriam que se realizassem estas eleições porque tudo indicava que os candidatos do Hamas poderiam ganhar 35% dos lugares do Parlamento. No entanto, os Estados Unidos insistiram que se realizassem as já atrasadas eleições. O problema com o Hamas residia no facto de não ter subscrito os acordos de Oslo, (…) afirma, a propósito, Jimmy Carter no seu livro “A Full Life”.

O ex-presidente dos EUA avança que as eleições em causa foram honestas e que o “Hamas teve melhores resultados do que se esperava, ao ganhar 74 dos 132 lugares do Parlamento. Os candidatos eleitos incluíam médicos, advogados, executivos empresariais e antigos responsáveis locais”.

Carter, que seguiu todo o processo entre Israel e os palestinianos através do Centro Carter para a paz, revela ainda ter sido portador de uma mensagem do Hamas para o presidente da AP, Mahmud Abbas, a solicitar-lhe a escolha de alguns membros da Fatah para o novo governo palestiniano. O Hamas estava, afinal, a propor um governo de unidade nacional que foi recusado por Abbas. Por seu turno, o Quarteto (representantes dos EUA, ONU, União Europeia e Rússia) não teve a coragem de recusar o resultado das eleições, mas colocou exigências ao Hamas que sabia o grupo não iria aceitar, tal como aconteceu. Face a isso, EUA e UE decidiram congelar a ajuda direta ao governo palestiniano.

Durante o verão de 2006 ainda houve negociações para um governo de unidade nacional que, afinal, não se concretizou e, em 2007, o Hamas expulsa todos os elementos da Fatah, alegando que eles estavam a preparar um golpe de estado. A Faixa de Gaza transforma-se assim no verdadeiro reino do Hamas e a violência entre Israel e o grupo islamita prosseguiu.

Violência teima em manter-se

Em junho de 2008, os dois inimigos figadais acordaram, via terceiros, com um cessar-fogo em Gaza e seus arredores e com o fim do cerco ao território. Mas ainda o ano não terminara e já Gaza é objeto de uma ofensiva israelita que, num só dia, matou mais de 200 pessoas. Mas pouco depois, o exército israelita realiza uma invasão terrestre que o mantém duas semanas em Gaza. Um relatório da ONU dá conta, então, de que as duas partes cometeram crimes de guerra.

A 14 de novembro de 2012, Israel, num ataque aéreo mata o comandante do Hamas Ahmed al-Jaabari e prossegue com uma campanha aérea que dura oito dias e se salda pela morte de 130 palestinianos e cinco israelitas. O Hamas retalia lançado rockets que, pela primeira vez, se dirigem a Jerusalém. No ano anterior, Telavive tinha posto em funcionamento o seu sistema antimíssil Cúpula de Ferro que lhe permite intercetar rockets de curto alcance que são lançados a partir de Gaza.

O ano de 2018 é marcado por protestos junto à fronteira entre Gaza e Israel contra o cerco ao território. As manifestações acontecem durante meses (entre março e dezembro) e saldam-se com a morte de 189 palestinianos e seis mil feridos, segundo revela uma comissão de Inquérito Internacional mandatada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Em 2021 e em reação aos confrontos na mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, entre a polícia israelita e palestinianos, o Hamas lança uma barragem de rockets contra Israel que responde com ataques aéreos a Gaza, iniciando-se um conflito de 11 dias que fez mais de 200 vítimas no território palestiniano. E a violência eterniza-se de forma intermitente…

A última ação do Hamas aconteceu no passado dia 7: num ataque sem precedentes, comandos do grupo integrista entraram - por terra, mar e ar – em Israel, onde fizeram mais de mil mortos e levaram para Gaza, como reféns, centenas de israelitas. Israel reagiu bombardeando a Faixa de Gaza enquanto se prepara para uma invasão terrestre e afirma-se determinado em eliminar o movimento que é considerado, por parte da comunidade internacional, como grupo terrorista. Um título, aliás, que lhe foi atribuído primeiro pelos Estados Unidos e depois pela União Europeia, que passou a ser utilizado por mais países desde o ataque do último dia 7 - um dia após o 50 º aniversário da guerra do Yom Kippur. Mas para muitos outros países, o Hamas é ainda encarado como um movimento de resistência à ocupação colonial.

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