Alá marca os golos dos taliban

21 set 2001, 17:48

Afeganistão está inscrito na FIFA Também se corre atrás da bola no Afeganistão. As regras são rígidas, usar calções pode dar cadeia, mas o futebol parece ser a única afinidade com o Ocidente.

O futebol é assim. Encanta, surpreende, provoca alienação, une gente desavinda. É um milagre terreno e visível, é uma fé muito própria de quem suspende a respiração durante o percurso de um remate e parte para um êxtase interminável assim que a rede abana. O futebol é uma religião sem Deus, mesmo que o último século tenha revelado uma série de pregadores inesquecíveis. Católicos e muçulmanos, judeus ou ateus. Todos adoram ver a bola a pular, todos sonham com pontapés oficiais e carreiras fulgurantes. O futebol, mesmo sem saberem e, essencialmente, sem admitirem, liga-os de forma inegável. 

No Afeganistão, como não podia deixar de ser, joga-se futebol. Com qualquer tipo de objecto mais ou menos esférico, em qualquer canto de uma cidade degradada. O país dos taliban está prestes a entrar em guerra contra o mundo ocidental, mas não está totalmente separado de quem tanto odeia, a ponto de, ao que tudo indica, ter provocado a tragédia do World Trade Center. O Afeganistão está filiado na FIFA desde 1948 e, mesmo sem votar e competir, integra uma lista de selecções onde se pode encontrar, sem esforço, a sigla USA. Talvez seja esta a única parceria com os americanos e com quem agora tanto lhes aponta o dedo indicador em sinal de reprovação.  

Em 1992, na última vez em que apresentaram dados oficiais ao organismo que rege o futebol a nível planetário, contavam com 30 clubes e quase cinco mil jogadores federados. Estes números, obviamente, tendiam a crescer, mas a subida ao poder dos taliban abrandou o desenvolvimento do jogo. Nem as recordações do campeonato internacional de 1948, realizado em Londres, motivaram uma aposta verdadeira na modalidade. Em 94, de resto, todas as actividades desportivas foram proibidas no território afegão, medida justificada numa discutível interpretação do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. 

Ir à bola e não aplaudir 

Três anos depois, contudo, os taliban decidiram rever a opção e aceder aos pedidos cada vez menos tímidos que escutavam. Podia voltar-se a jogar futebol, mas com restrições que não se ficavam pelas leis do jogo. As partidas só podiam realizar-se entre as oito da manhã e as quatro da tarde e os jogadores não estavam autorizados a vestir os equipamentos tradicionais, pois não deviam mostrar partes tão importantes do corpo como as pernas e os braços. A regra mais radical, contudo, proibia todo e qualquer festejo no estádio. Ou seja, os jogos estavam condenados a ser uma autêntica luta contra as emoções. Um golo, por exemplo, teria de ser festejado com uma única frase. «Alá é grande». Quem acertava na baliza não podia ter tanto mérito. 

Para as mulheres, já se sabe, o futebol é algo perfeitamente interdito, como, aliás, todas as manifestações públicas autorizadas, como o cricket e o boxe. A sua entrada nos estádios está unicamente prevista em duas situações: para serem castigadas ou para assistirem a um castigo público. A Amnistia Internacional registou, em Novembro de 99, vários relatos que dão conta da execução de uma mulher no Estádio de Kabul, em plena grande área do terreno de jogo. Nas bancadas estavam 30 mil pessoas. Terão gritado «Alá é grande». 

Usar calções dá mesmo prisão 

A história é simples e serve de exemplo. Há cerca de um ano, em Kandahar, sede militar do regime Taliban, vários jogadores de uma equipa do Paquistão foram presos por terem entrado em campo de calções. Um atendado ao islamismo, justificaram as autoridades afegãs, que não tiveram qualquer pudor em aplicar as suas regras a um grupo de estrangeiros. 

Os poucos futebolistas que não foram detidos tiveram de refugiar-se no consulado paquistanês de Kandahar e esperaram três dias para ver novamente os seus companheiros, que cumpriram a viagem de regresso com o cabelo rapado, uma vez que a pena que lhes foi imposta por jogar de manga curta foi essa. Resta esperar que não faça jurisprudência.

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