Vera prefere viver "apertada" todos os meses para ter a filha num colégio privado e longe da "selva": "Agora sei que está protegida"

8 mar, 18:07
Escola

Vera não chegou a endividar-se, mas vive com os euros contados para ter a filha num colégio privado, num ambiente protegido do bullying que a atormentou durante toda a escola primária. E ainda recorre a um centro de estudos para “colmatar lacunas” que ficaram da “matéria que era dada de forma superficial”. Quem está nas escolas, públicas e privadas, reconhece as falhas do ensino público, mas sublinha que o ensino privado não é o mar de rosas que muitos costumam pintar

Vera admite que podia “viver 500 euros mais à vontade por mês”. Podia fazer outras coisas com a filha, como “ir de férias, viajar, colocá-la em atividades nas férias”. Mas prefere viver “apertada” todos os meses e “rezar” para que “não aconteça nenhum imprevisto e ninguém mexa nas contas”, para que não tenha de passar pela experiência humilhante de pedir dinheiro emprestado para acabar o mês. Tem a filha num colégio privado por opção. Porque sente que a escola pública não lhe dá as respostas que pretende para a educação da jovem Maria.

Aos 11 anos e a frequentar agora uma escola privada, Maria tem muito para contar dos quatro anos que frequentou a escola pública. O bullying fez parte da realidade de quase todos os seus dias dos primeiros quatro anos da escolaridade obrigatória.

“Uma vez fui buscar a minha filha à escola e ela queixava-se de muitas dores no peito e disse-me que tinha sido uma colega que praticava karaté que tentou um golpe com ela. Liguei para o 112, fomos encaminhadas para o centro de saúde e dali para o Hospital de S. João. Foi diagnosticada com um ligeiro traumatismo torácico. Liguei para a escola para tentar perceber o que se passou e a resposta da professora foi que não estava presente e não podia pronunciar-se sobre o assunto”, conta Vera Monteiro, 41 anos, animadora social numa IPSS que trabalha com crianças em risco.

“Agora, no colégio, sei que está protegida”, diz.

"Não ouço uma frase que não tenha dois ou três palavrões"

A experiência profissional de Vera também a conduziu para a decisão que tomou no final do ano letivo passado. “Trabalho na área da infância e juventude e trabalho com crianças em risco, estive numa Comissão de Proteção de Crianças e Jovens durante nove anos e tenho acesso a muita informação que me levou a tomar essa decisão", assume.

"No meu local de trabalho, faço parte de um programa que me obriga a ir a uma escola (a escola para onde a Maria iria se não tivesse optado pelo ensino privado), uma manhã de 15 em 15 dias. Aquilo parece uma selva. Não ouço uma frase que não tenha dois ou três palavrões. Nos intervalos, que é quando ocorrem grande parte dos episódios de bullying, não se vê assistentes operacionais nos corredores”, relata.

Os números sobre violência e indisciplina nas escolas corroboram os receios de Vera. No início desta semana, a Polícia de Segurança Pública avançava com números que davam conta de um aumento. De acordo com os dados divulgados pelo Jornal de Notícias, no primeiro semestre de 2023 foram registadas 2.617 ocorrências nos estabelecimentos de ensino, das quais 1.881 foram de natureza criminal. A maior queixa foram as ofensas corporais (855), seguindo-se as injúrias e ameaças (571) e os furtos (252).

Números apontam para um aumento da violência e da indisciplina nas escolas. 

Os professores e os especialistas alertam que as crianças estão mais violentas e pedem recursos ao Governo para reforçar os "serviços de psicologia e orientação nas escolas".

Greves, falta de profissionais e professores "exaustos"

A somar-se às agressões “físicas e verbais” de que Maria era vítima diariamente, as greves que encerravam a escola da filha com frequência, obrigando-a a faltar ao trabalho para ficar com ela, e a falta de assistentes operacionais pesaram na decisão de a mudar para um colégio privado agora que passou para o quinto ano.

“Uma pessoa não pode estar sempre a faltar ao trabalho para ficar com ela em casa, a retaguarda familiar também não está sempre disponível. Os meus pais já são idosos e não podem ficar sempre com ela e a minha irmã também é professora. (…) As auxiliares não tinham formação para lidar com crianças. Havia duas ou três assistentes operacionais fixas na escola, mas as restantes eram pessoas colocadas pelo centro de emprego, ao abrigo de medidas de proteção do emprego e de inserção. Pessoas sem qualquer formação específica para as funções em que são colocadas”, aponta.

Vera reconhece o esforço e o trabalho dos professores do Ensino Público, que ela própria frequentou desde sempre. Tem na família o exemplo de dedicação à Escola Pública. A irmã é professora de História e “todos os anos chega ao fim exausta”.

Foi também a essa realidade de falta de docentes e assistentes técnicos e operacionais e de “professores exaustos” que Vera quis fugir.

"Lacunas a Português e Matemática"

Enquanto frequentava o primeiro ciclo, Maria já era utente de um centro de estudos privado. Isto porque o horário de funcionamento da escola não era compatível com o horário de trabalho dos pais. Assim que terminavam as aulas, era no centro de estudos que esperava que a mãe a pudesse ir buscar. Por causa dos episódios de bullying, a determinada altura, passou a almoçar também no centro de estudos.

“Na hora de almoço, era o período em que ocorriam os episódios de violência física e verbal de que a minha filha era vítima. Não havia assistentes operacionais suficientes para controlar as crianças. Por isso, optei por colocá-la no centro de estudos também à hora de almoço, além do período do final do dia. Eu tinha as refeições a 1,43 euros na escola, mas preferi pagá-las mais caras no centro de estudos e ter a minha filha protegida”, diz.

Outro dos motivos que levaram Vera e o ex-marido a tomar a decisão de colocar a filha num colégio privado quando passou para o 5.º ano foi o feedback que recebiam do centro de estudos em relação à preparação da jovem. Falta de preparação que ainda se manifesta e traz despesas acrescidas. “A informação que nos era dada era de que a matéria era dada de uma forma muito superficial e que a minha filha tinha muitas lacunas. Agora, no colégio privado, adaptou-se muito bem ao contexto, aos colegas e aos professores. Mas continua a ter muita falta de bases a Português e a Matemática”, recorda.

Vera recorre a um centro de estudos para colmatar "as lacunas" com que diz que a filha veio do primeiro ciclo a Português e Matemática

“Apesar de o colégio oferecer apoio gratuito a Português e Matemática, eu preferi mantê-la no centro de estudos, até ela regularizar as aprendizagens e as lacunas com que veio do 1.º ciclo”, explica.

A ajuda dos pais

No debate com Pedro Nuno Santos (PS), Luís Montenegro (AD) citava notícias sobre o endividamento das famílias, que “quadruplica para fazer face a despesas de saúde e educação”. O presidente do PSD falava de “uma realidade de pais e avós que estão hoje a dar muito daquilo que são as suas poupanças, da sua capacidade de endividamento para permitir que os seus filhos e os seus netos possam aceder a uma resposta mais exigente, com mais qualidade e, mesmo frequentando a escola pública, possam ter acesso a mecanismos de compensação que são as explicações”.

Vera ainda não chegou ao nível do endividamento e não depende dos familiares para pagar o colégio ou o centro de estudos. O “sacrifício” de Vera é partilhado com o ex-marido, um professor que “nunca teve colocação e teve de dar uma volta ao seu percurso profissional” e hoje ganha “pouco mais do que o salário mínimo”. “Mas não deixa faltar nada à nossa filha”, reforça.

“Conto com o apoio dos meus pais. Não me ajudam a pagar o colégio, mas ajudam financeiramente, no sentido em que vão buscá-la para almoçar e depois levam-na de novo à escola. Se não fosse isso, seriam mais 150 euros por mês para alimentação e eu já não conseguiria fazer face”, reconhece.

Todos os meses paga 500 euros, entre colégio e centro de estudos. Faz ainda um esforço para manter as atividades extracurriculares, como o piano e a natação, “que ela gosta e que são importantes para a sua saúde física e mental”. E há a renda da casa, a eletricidade e o gás e a alimentação e o vestuário. “Para mim, quase nunca compro nada. Mas a ela não deixo faltar nada”, assegura.

Os números

Por questões demográficas, o sistema de ensino público tem vindo a perder alunos. Mas o ensino privado parece contrariar essa tendência. Números da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência divulgados em julho do ano passado, mostravam que o ensino privado aumentou em cerca de cinco mil o número de alunos matriculados em 2021/2022, face a 2019/2020.

O crescimento mais significativo foi no ensino secundário, em que os colégios ganharam quase quatro mil novos alunos, contando com 84.768 estudantes matriculados, o equivalente a cerca de 21% do total (e não 25%, como disse Luís Montenegro no debate com Pedro Nuno Santos).

Cristina Mota, uma das porta-vozes do movimento cívico de professores, reconhece que “algumas famílias estão à procura da escola privada por causa dos constrangimentos do ensino público, incluindo a falta de professores”. Mas assegura que “não são muitos os alunos” que estão a deixar as escolas públicas para irem para as privadas. E sublinha que acontece mais frequentemente “o contrário”.

Cristina Mota, do movimento Missão Escola Pública, diz que "os alunos são selecionados" nos colégios, à partida e durante o percurso educativo 

 

“Os colégios privados selecionam os alunos. Alunos com registo de indisciplina ou com notas que não contribuem para as médias são expulsos ou convidados a sair. Nós sabemos porque eles chegam-nos de lá. Foram expulsos do colégio por questões de indisciplina, ou não foram aceites por terem necessidades educativas especiais ou notas mais baixas”, testemunha a professora de Matemática.

Mais do que a realidade da alegada fuga de alunos para o privado, Cristina Mota sublinha o recurso a “explicações às disciplinas cruciais por causa da falta de professores”. “Praticamente todos os alunos do ensino secundário têm explicações às disciplinas cruciais. Tendo em conta o custo de vida, os alunos continuam a estar na escola pública, mas as famílias fazem efetivamente um enorme sacrifício para colocar os filhos em explicações e colmatar lacunas deixadas pela falta de professores”, sublinha.

O que há no privado que "a opinião pública não tem noção"

Goretti da Costa dá aulas de Português e Espanhol no ensino público. Não se sente bem tratada pelo “patrão”. Conta que já houve um ano em que acumulou horários em três escolas: uma na Moita, outra na Quinta do Conde e outra em Sacavém. E havia dias em que começava o dia a dar aulas na Margem Sul do Tejo, cruzava o rio para vir dar aulas à banda Norte, para depois regressar a outra escola do Sul. Mas nem todos os sacrifícios que fez e faz a fariam regressar ao ensino privado onde começou a carreira.

“A sobrecarga horária era incrível. A opinião pública não tem a noção da sobrecarga de funções e da sobrecarga horária que os colégios privados impõem aos seus professores”, desabafa.

Goretti deu aulas num colégio onde as mensalidades ascendiam aos quatro dígitos. Mas relata que “muitas vezes só conhecia os pais dos alunos quando estes se iam queixar de alguma coisa”. E não é só: “Nunca me senti livre e autónoma na minha sala de aula. Havia até o reconhecimento de alguns pais, mas havia alguma censura a partes de programas ou até à forma como abordávamos as questões.”

“Os alunos nos colégios privados não conhecem a inclusão. Até podem estar sentados ao lado de alunos com espectro do autismo, mas isso não é inclusão. Têm turmas homogéneas, que o ensino público não tem. Os colégios privados selecionam os alunos. Se não tiverem as notas desejadas, são convidados a sair. Há colégios em que, quando os alunos têm notas que não vão contribuir para a média do ranking, chumbam para irem fazer exame como alunos externos”, acrescenta.

A professora não hesita em dizer que “o Estado é que acaba, através do desinvestimento no ensino público, por promover o ensino privado”. “Os colégios, regra geral estão bem equipados e com infraestruturas muito melhores do que os do público. Têm professores e assistentes operacionais, que é o que os pais querem. Os pais trabalham muitas horas e não encontram no público o apoio necessário para fazer face a essa exigência de horários”, exemplifica.

“Há uma desigualdade gritante entre os alunos do público e do privado”, resume.

Em conversa com a CNN Portugal, a professora recorda a frase que um antigo coordenador de um colégio privado onde deu aulas costumava repetir amiúde: “Ele dizia com frequência que o importante não era ser, mas sim parecer.”

"Desinvestimento na Educação"

Em defesa do ensino público, Goretti da Costa sublinha: “Há estudos que mostram que os alunos que mais facilmente concluem o ensino superior e com maior qualidade são os que vêm do ensino público.”

Pedro Barreiros, secretário-geral da Federação Nacional de Professores (FNE), diz que tem havido “uma tentativa por parte de diversos agentes, no sentido de fazer passar a mensagem de que a luta dos professores estava a ser prejudicial para o ensino público e que havia alunos a deixar o ensino público por causa da luta dos professores”. Mas garante que o abandono da escola pública rumo às escolas privadas “não é um problema que se tenha verificado em 2024, salvo raras exceções”.  

“A FNE não vai alimentar o discurso contra a escola pública. Pelo contrário, vai fazer tudo para defender a escola pública. Também defendemos os professores e a qualidade do ensino privado. Mas o que queremos é que a escola pública tenha as mesmas condições das escolas privadas para os alunos estudarem”, diz.

Pedro Barreiros acusa os sucessivos Governos de desinvestimento na Educação. “A percentagem do PIB investida na Educação devia rondar os 6% e estamos nos 2,8%. Uma das medidas que defendemos é que, até ao final da legislatura, se passe para os 6%. Compreendemos que não possa ser de imediato, mas pelo menos até ao fim da legislatura temos de estar nesse patamar”, reclama.

Entre outros, os objetivos passam por tornar a carreira docente mais atrativa e melhorar as condições das escolas.

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