UE com teto no preço do gás no próximo ano. Mas como funciona?

ECO - Parceiro CNN Portugal , Jéssica Sousa
24 dez 2022, 17:00
A Europa tem tanto gás natural que o preço desceu abaixo de zero. JP Black/LightRocket/Getty Images

A presidência checa do Conselho da UE e os Estados-Membros acordaram o teto no preço do gás importado, a entrar em vigor no próximo ano. A medida prevê ser dinâmica, podendo ser ativada ou desativada mediante certas condições. Veja ao detalhe como funciona

Foi um longo braço de ferro, mas a Comissão, a presidência checa do Conselho da UE e os Estados-membros finalmente acordaram um mecanismo de correção para os preços do gás. Saiba como funciona.

O que está em causa?

Foi um longo braço de ferro entre a Comissão Europeia, a presidência checa do Conselho da União Europeia e os Estados-membros, mas ao fim de quase um mês, alcançou-se um acordo para a imposição de um teto aos preços do gás importado no mercado europeu. O travão foi desenhado em novembro e esta segunda-feira, depois de uma longa “maratona negocial”, como referiu João Galamba, secretário de Estado da Energia, chegou-se a acordo político.

Na prática, o mecanismo de correção de mercado (MCM) incide sobre os contratos futuros de gás na plataforma holandesa TTF (Title Transfer Facility), a referência nos mercados europeus de gás natural.

A proposta inicial da Comissão Europeia previa que o teto se situasse nos 275 euros megawatt-hora (MWh), mas face à contestação de vários Estados-membros — que consideravam o limite demasiado alto — o executivo comunitário viu-se obrigado a reduzir, na semana passada, o limite para 200 MWh, não tendo, ainda assim, conseguido reunir consenso entre os 27 Estados-membros. O limite aprovado cifrou-se nos 180 MWh.

Quando é acionado o limite?

Ao contrário do mecanismo ibérico, a proposta europeia prevê ser dinâmica, podendo ser ativada ou desativada sempre que se justificar.

Existem duas condições que, se verificadas em simultâneo, poderão resultar na ativação do mecanismo de correção de preços, o chamado limite dinâmico.

Por um lado, é necessário para ativar o mecanismo que o preço nos contratos de gás natural para o mês seguinte sejam, durante três dias úteis consecutivos, superiores a 180 euros por MWh no TTF.

Por outro, impõe-se que o preço de referência no TTF seja 35 euros mais elevado que o preço de referência para o gás natural liquefeito (LNG), também durante três dias úteis consecutivos. Mas o preço de referência de LNG a considerar nunca poderá ser inferior a 143 euros. Caso o preço do LNG esteja abaixo desta fasquia, o cálculo do limite dinâmico ignora o valor real e utiliza-se o valor de 143 euros no cálculo, sendo este, assim, o ponto de partida mínimo.

Segundo a Comissão, uma vez acionado o teto, este vigora durante 20 dias úteis, a não ser que o preço se mantenha abaixo de 180 MWh, ao longo de três dias, durante este período — nesse caso, é desativado antes do fim dos 20 dias.

O que acontece se o limite for ultrapassado?

De acordo com a nota da Comissão e do Conselho da União Europeia, sempre que os dois limites definidos forem ultrapassados não serão negociados os futuros do contrato do gás natural, ficando, desta forma, as negociações suspensas.

Será aplicado em todos os contratos futuros?

Não. O teto não se aplica aos contratos fora dos mercados organizados de gás, isto é, aos contratos bilaterais negociados diretamente entre comprador e vendedor no mercado secundário (OTC, na sigla em inglês), bolsas do dia seguinte e bolsas intradiárias. Nestas situações, o valor negocial continua livre.

Quando vigora a proposta?

A redação do regulamento ficará concluída no dia 1 de fevereiro de 2023 e o mecanismo entrará em vigor no dia 15 de fevereiro. Contudo, antes de entrar em vigor, a ACER irá realizar um estudo de impacto do mecanismo que será divulgado a 23 de janeiro de 2023.

Dado que foi criado no âmbito da crise energética, e como forma de os países poderem enfrentar a alta dos preços do gás na Europa, a Comissão prevê apenas que o travão se mantenha como uma opção durante um ano, estando sempre em risco de ser suspenso no caso de que uma das clausulas suspensivas seja acionada, ou caso o preço do gás no TTF esteja abaixo dos 180 MWh.

O regulamento é temporário e será aplicado durante apenas um ano”, Conselho da União Europeia.

Quem irá monitorizar?

A responsabilidade de monitorização do mecanismo à Agência de Cooperação dos Reguladores de Energia (ACER), juntamente com a Comissão e a Autoridade Europeia de Valores Mobiliários e Mercados (ESMA).

Em que situações o mecanismo pode ser suspenso?

De forma a assegurar que os ministros chegavam a um acordo político já nesta segunda-feira, a presidência checa e a Comissão Europeia acrescentaram à proposta quatro cláusulas que permitiram suspender o travão:

  • Se se verificar um aumento do consumo de gás de 15% em dois meses ou de 10% num mês (recorde-se que os 27 Estados-membros comprometeram-se em reduzir, voluntariamente, o consumo em 15% até ao próximo ano);
  • Se se registar uma quebra nas compras de gás no TTF ou entre os Estados-membros;
  • Se se verificar uma diminuição trimestral na importação de LNG no bloco europeu;
  • Se for posta em causa a estabilidade dos mercado financeiros;

Quando se verificar uma destas condições, o mecanismo será suspenso no dia seguinte.

Além disso, a Comissão indica que o limite também será desativado automaticamente, a qualquer momento, se o executivo comunitário declarar emergência regional ou da União Europeia, tal como prevê o regulamento de segurança do abastecimento. Isto acontece perante uma situação em que o fornecimento de gás passe a ser insuficiente para responder à procura de gás e se proceda ao racionamento.

Em qualquer dos casos, a ACER publicará uma ‘nota de desativação’ na sua página web.

Quantas vezes o preço do gás no TTF esteve acima dos 180 euros MWH?

O teto poderá ser aplicado a partir de 15 de fevereiro, mas, se tivesse sido introduzido no início deste ano, teria sido utilizado em mais de 40 dias nos meses de agosto e setembro, de acordo com os dados da S&P Global Commodity Insights citados pela Bloomberg.

No fim da reunião entre os ministros da Energia, esta segunda-feira, o secretário de Estado João Galamba referiu que caso o mecanismo tivesse sido adotado já este ano, ter-se-iam verificado as condições durante o verão que permitiriam ativar este mecanismo. A título de exemplo, em agosto, o preço do gás no TTF chegou a atingir um novo máximo: 345 euros MWh.

Prevê-se que o mecanismo possa vir a ser acionado nos próximos meses?

Os contratos para janeiro de 2023 permanecem, para já, abaixo dos 180 euros por MWh, no TTF. À hora de publicação deste Descodificador os contratos no TTF para os dois meses seguintes situavam-se abaixo dos 100 euros por MWh.

Quem votou contra?

Sem grandes surpresas, a Hungria manteve como opositora à medida até ao fim, ao passo que a Áustria e os Países Baixos recuaram e optaram por se abster. Quanto à Alemanha, que desde o início se opôs ao travão, acabou por se juntar à maioria.

À Reuters, fontes do executivo comunitário indicam que Berlim era o grande impasse na negociação por argumentar riscos a nível do abastecimento e consequências negativas também nos mercados financeiros (um alerta também emitido pelo Banco Central Europeu). No entanto, as cláusulas do regulamento acalmaram as incertezas dos alemães.

Ao que o Expresso apurou, a aprovação do mecanismo era possível mesmo sem a Alemanha, porque a aprovação do regulamento não exige unanimidade, mas apenas maioria qualificada. Ao início da tarde essa maioria já estaria reunida, mas os ministros não queriam avançar sem Berlim, nem aprovar o limite de preços à revelia dos alemães.

Estou um pouco cético de que o mecanismo para limitar o preço do gás seja o caminho certo. Mas agora concordámos com ele e está tudo bem porque existe uma série de salvaguardas e mecanismos para monitorizar tudo”, vice-chanceler alemão Robert Habeck.

Além do mecanismo, os ministros europeus aprovaram, também, avançar com compras conjuntas de gás na próxima primavera, tal como aconteceu com as vacinas anti-Covid durante a pandemia; a simplificação de licenças para projetos de energia renovável; e acordos bilaterais de solidariedade que têm como objetivo partilhar gás com os países mais vulneráveis, em caso de escassez ou de disrupção total no abastecimento.

De que forma este travão difere do mecanismo ibérico em vigor?

Desde logo, na sua natureza. Enquanto o teto no TTF, um mercado virtual para compra e venda de gás a nível europeu, tem como objetivo reduzir, principalmente, os efeitos da inflação associada aos mercados de futuros, o limite imposto a nível ibérico, um mecanismo criado exclusivamente para Portugal e Espanha pela falta de ligações elétricas ao resto da Europa, serve para conter custo para aquisição do gás natural, relevante para a produção elétrica.

A Península Ibérica concedeu, na forma de subvenções diretas, um apoio aos produtores de eletricidade a partir de gás, com o objetivo de financiar parte do custo do gás e assim aliviar os preços da eletricidade nos mercados grossistas, ou seja, os preços a que os produtores de eletricidade a vendem aos comercializadores e a alguns grandes consumidores.

“A medida agora aprovada vem essencialmente travar os efeitos de subida de preços associados (sobretudo) ao funcionamento do mercado de futuros e ao seu efeito em toda a União Europeia“, explica Filipe de Vasconcelos Fernandes, Especialista em Economia e Fiscalidade da Energia, ao ECO/Capital Verde, acrescentando que no Mercado Ibérico de Eletricidade (Mibel), os Governos de Portugal e Espanha “procuram uma redução muito significativa do custo da eletricidade, tendo em consideração as referências de preços praticados“.

Depois, enquanto o travão europeu prevê ser dinâmico, podendo ser ativado e desativado quando se justificar, o mecanismo ibérico limita os preços do gás em Portugal e Espanha com objetivo de limitar os preços no mercado grossista da eletricidade temporariamente até, pelo menos, maio de 2023.

E, por fim, diferem no valor do teto. Enquanto o teto europeu se situa nos 180 MWh, na Península ibérica o teto esteve nos 40 euros por MWh nos primeiros seis meses (entrou em vigor em julho deste ano) estando previsto aumentar cinco euros por mês, até atingir os 70 euros por MWh no décimo segundo mês.

O mecanismo estará em vigor até 31 de maio de 2023, mas António Costa já admitiu estar em negociações com a Comissão Europeia para prolongar o travão por mais um ano.

Quais são os riscos na aplicação deste mecanismo?

De acordo com os alertas emitidos por players relevantes do setor energético e financeiro — nomeadamente, o regulador de energia, ACER, a Federação Europeia de Comerciantes de Energia (EFET), a associação de bolsas energéticas europeias (Europex), o Banco Central Europeu (BCE) e o Intercontinental Exchange (ICE) –existem riscos a nível da estabilidade financeira e do fornecimento de energia no bloco, ao mesmo tempo que aumenta a volatilidade dos preços nos mercados bilaterais e as chamadas de margem.

Mesmo uma intervenção curta teria consequências graves, não intencionais e irreversíveis", Federação Europeia de Comerciantes de Energia (EFET).

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