“Não sabia o que fazer da vida, até que um milagre aconteceu”. Foi a deficiência que deu o primeiro emprego a Daniel, Rosana e Mansi

24 dez 2023, 08:00

Um emprego pode ser o maior presente para alguém. Sobretudo quando a sociedade pensa que não somos capazes de o fazer. Daniel, Rosana e Mansi mostram que sim. À primeira vista, é difícil encontrar-lhes a deficiência. Têm aquilo que se chama dificuldade intelectual e do desenvolvimento. É, como o nome indica, uma dificuldade. Não um impedimento. Querem inspirar outros: “não desistam de procurar trabalho, peçam sempre ajuda a alguém”

O dia de Daniel Nobre, 26 anos, começa cedo. São cerca de duas horas desde o momento em que sai de casa e o momento em que chega ao destino. Carnaxide, Marquês do Pombal, Campo Grande, Azambuja. Todos os dias, duas horas para lá, duas horas para cá. Daniel não se queixa. Afinal, todo este esforço é por causa de “uma das coisas mais incríveis” que já lhe aconteceu: ter trabalho.

Daniel sempre sonhou ser jogador profissional de videojogos, mas a vida tinha outra coisa preparada para ele. Ainda se espanta com a altura das caixas empilhadas na plataforma logística. Entre os corredores de alimentos que o rodeiam a cada dia, encontrou o seu lugar. É ele quem controla os robôs que envolvem com plástico cada uma das paletes que vão chegar aos supermercados. “Vês? Gostava tanto de tecnologia, que agora até tenho o meu próprio robô”.

E esta seria uma história banal se Daniel não tivesse uma dificuldade intelectual e do desenvolvimento, que a muitos bloqueia a entrada no mercado de trabalho. No caso de Daniel é síndrome de Asperger, uma forma mais leve no espetro do autismo.

Os olhos azuis de Daniel não mentem por detrás dos óculos. “Vale tudo a pena porque me deu mais responsabilidade. Consigo sair de casa”. O sorriso ilumina-lhe o rosto. Depois do estágio, este jovem vai assinar o seu primeiro contrato. “Eu sentia-me muito fechado lá no meu quarto e realmente não sabia o que podia fazer mais na minha vida, até que um milagre aconteceu”, conta.

Tudo isto só foi possível porque Daniel Nobre fez parte do projeto Semear, focado em fazer chegar ao mercado de trabalho pessoas com deficiência, seja ela cognitiva ou física. Mais de seis dezenas de jovens conseguiram o mesmo tipo de ajuda. Outra centena está em preparação para esse passo. O projeto conta com uma taxa de sucesso de 83% na integração. E deseja fortemente que outras empresas se juntem à lista de parceiros, atualmente a rondar as 30, porque sem elas a missão ficará sempre incompleta.

“Quem se diverte na vida, não tem stress, não se zanga muito”

Para muitos de nós, o trabalho é uma verdadeira dor de cabeça. Mas, quando se luta tanto por ele, quando há barreiras difíceis de ultrapassar, a visão acaba por ser diferente. Este é o conselho de Daniel: “basta só ficar tranquilo e divertir-se na vida. Quem se diverte na vida, não tem stress, não se zanga muito”. É a estratégia dele para enfrentar cada dia, cada desafio. A fazer o que for preciso fazer.

E o mais difícil? O mais difícil, diz ele, é quando faltam as tarefas. “Mas ali vou para os corredores, faço os produtos que estão estragados ou desarrumados. Ajudo o pessoal a tirar aqueles produtos bem lá no alto, lá longe, que são pesados, para eles estarem mais á vontade”.

Daniel ajuda, porque sabe que é isso que recebe dos colegas quando também precisa. A outros, que estão em casa fechados como ele estava a pensar que a limitação seria o fim de tudo, deixa esta mensagem: “Queria dizer-vos que não desistam de procurar trabalho. Peçam sempre ajuda a alguém”

Uma “vida normal, dentro das possibilidades”

As novas rotinas deixaram menos tempo para Rosana Silva, 34 anos, acompanhar os seus programas favoritos na televisão. Sempre sonhou com a caixinha mágica. Agora, com esta reportagem, vai fazer parte dela. Daquilo que não abdica mesmo é dos episódios do “Festa é Festa” na TVI. No sofá, com o marido. Para rir, para deixar para trás as amarguras.

Mesmo que os últimos tempos tenham dado motivos para sorrir. Depois do estágio, Rosana acaba de assinar o primeiro contrato sem termo. Nunca imaginou que esse dia fosse chegar. “É para toda a vida”, diz, vincando o compromisso. Mesmo quando a vida dá voltas, ela sabe que tem essa segurança. Faz parte da equipa do restaurante Único, em Lisboa, um dos principais parceiros do projeto Semear. “Estou a aprender a servir às mesas. Estou a interagir mais com os clientes”.

Rosana sabe dizer bem, sem hesitações, o nome daquilo que a tornou “especial”, por mais complicado que seja. “Tive um vírus raro, que é chamado opsoclonus myoclonus. Deixou-me sequelas, mas tive um bom tratamento graças aos meus familiares. E hoje sou quem sou”.

Mas como é que a deficiência limita o dia a dia? “Quem me ensina tem de ter alguma paciência comigo. Eu própria tenho de ser mais calma. Às vezes, não tenho. Se calhar, sou um bocadinho ansiosa demais”.

Cada pessoa tem o seu tempo. Com o tempo, Rosana decorou a carta como ninguém, aprendeu a lidar com os pedidos mais inesperados dos clientes. A nós, sugere-nos os raviolis e os wraps, embora não queira tirar o mérito às restantes opções. Enquanto coloca delicadamente os individuais, os pratos, os talheres, os copos e os guardanapos na mesa, pensa como seria a sua vida sem trabalho. “Era inútil. Era uma pessoa que não tinha nada, que ia ficar cheia de pressões”.

A certa altura da conversa, para falar dos outros, que não têm deficiência, Rosana Silva usa a expressão “pessoas normais”. Perguntamos-lhe o que é isso. “Uma pessoa normal é uma pessoa que faz a vida normal, que foi para a faculdade, é caloura”. Di-lo tendo a irmã como referência. E tu, Rosana, não tens uma vida normal? Ri-se com a constatação. “Tenho, tenho. Tenho uma vida normal dentro das minhas possibilidades”.

Muitos são aqueles que, como Rosana, só querem ter uma “vida normal”. Contudo, o mundo do trabalho não é propriamente fácil nesta matéria. As instituições queixam-se da falta de números oficiais em Portugal, admitindo que o desemprego em pessoas com deficiência seja seis vezes maior ao desemprego entre aqueles que não têm qualquer limitação.

O relatório “Pessoas com Deficiência em Portugal – Indicadores de Direitos Humanos 2021”, desenvolvido pelo Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH), revelou que entre 2011 e 2021, o desemprego registado na população com deficiência em Portugal continental aumentou 30,5%, sentindo-se sobretudo nas mulheres. E a pandemia não veio tornar esta realidade mais fácil.

“Eu sabia que ia conseguir”

É impossível não reparar nas unhas de Mansi Unadkat, de 27 anos, quando os pratos chegam à mesa. Pequenos pandas em verniz sobre um fundo verde. É um trabalho de pormenor, que ajuda a revelar a personalidade desta jovem. Ela é tímida, responde sempre em poucas palavras, procura seguir o guião daquilo que aprendeu, sorri de forma automática para agradar.

Mansi não sabe dar nome à dificuldade intelectual ou do desenvolvimento que tem, mas nunca a encarou como um obstáculo. O restaurante Único é o primeiro trabalho dela. Durante a formação no projeto Semear chegou a experimentar um armazém. Mas faziam-lhe falta as pessoas.

“No início, foi difícil comunicar com as pessoas. Não comunicava tanto. Não sentia muito à vontade para falar com elas”. Com a ajuda dos colegas, Mansi foi superando esse receio. Hoje, a maior dificuldade, diz, “é nos trocos”.

Mansi aprendeu a apresentar os pratos, a falar com os clientes, a perguntar-lhes se está tudo bem. Mas, até esta etapa, o caminho foi longo: contou com o apoio de uma mentora para perceber como se deveria apresentar numa entrevista ou mesmo como apanhar os transportes para chegar ao trabalho.

A jovem confessa que sempre sonhou com um “bom emprego”. E o que é isso? “Um bom emprego é um sítio calmo, onde não haja confusões”, responde, desvalorizando que para muitos uma cozinha possa ser um dos trabalhos mais stressantes que existem no mundo. “Tudo depende das empresas”.

Quando o cliente é estrangeiro, é Mansi quem se chega à frente com o seu melhor inglês. Da carta, recomenda tudo, mesmo aquilo que ela não pode comer, por ser vegetariana. Confia no trabalho dos colegas. E não esconde a vontade de, mais tarde ou mais cedo, também ela se aventurar na confeção dos alimentos. Por agora, vai cortando os limões com afinco.

Tudo se aprende, mesmo que leve mais tempo. “Por exemplo, segurar a bandeja, isso foi com o treino”. “Mas eu sabia que ia conseguir”.

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