Eutanásia, barrigas de aluguer, identidade de género. Dividem o país, foram vetados, estão à espera de regras: com eleições há “receios de retrocessos”

9 fev, 07:00
Bandeira LGBT (Foto: Ben Curtis/AP)

Na vida, na morte, na identidade. Com uma possível viragem à direita no Parlamento, os ativistas destas causas temem retrocessos nas respetivas lutas. Lamentam que os temas não sejam atrativos para as campanhas eleitorais. Porque , avisam.“não é por se resolver a questão das crianças trans que se deixa de resolver o salário das forças de segurança”

Com o fim de duas legislaturas lideradas pelo PS e as novas eleições legislativas à porta, os ativistas temem que causas como a eutanária, morte medicamente assistida e as barrigas de aluguer não tenham novas oportunidades no parlamento.  E receiam que por serem temas polémicos fiquem de fora da campanha eleitoral que se inicia a 25 de fevereiro.
Apesar dos avanços, explicam, há muito que ficou por fazer. No que se refere à eutanásia, por exemplo, apesar de ter sido aprovada, falta definir as regras para que possa ser aplicada, lembra o médico Bruno Maia e candidato do Bloco de Esquerda. 
Já quanto às chamadas "barrigas de aluguer", Joana Freire, porta-voz da Associação Portuguesa de Fertilidade, nota que ao fim de vários anos, há ainda um novo texto que terá de ser modificado. Isto depois de em janeiro deste ano, o presidente da República ter devolvido o diploma ao Governo por considerar imprescindível ouvir-se "o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. "O nosso receio é se vão ficar eternamente pendentes ou se vai haver vontade política” de tratar destas causas, explica Joana Freire.  Além disso, há ainda o tema que ficou conhecido como a "lei da casa de banho" nas escolas que, teme Helder Bértolo, presidente da Opus Diversidades, pode ficar esquecido por se considerar que não é uma prioridade.  

Eutanásia: “Infelizmente, o PS empurrou com a barriga”

Praticamente três anos de avanços e recuos, e com vetos do Presidente da República, pelo meio. A morte medicamente assistida, mais conhecida como eutanásia, acabou confirmada pelos deputados em maio do ano passado. A lei está em vigor. Mas faltam as regras para aplicá-la – a chamada regulamentação, que deveria ter ficado pronta em outubro.

Agora, com o cenário de eleições, há o receio de que este direito conquistado não se concretize. “Esse risco está claramente em cima da mesa. Se houver uma maioria de direita, pode facilmente reverter a lei. Ou criar condições para que não seja regulamentada”, aponta o médico Bruno Maia, ativista pelo acesso à morte medicamente assistido – e novamente candidato do Bloco de Esquerda nestas legislativas.

Depois da queda do Governo em novembro, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, veio explicar que a regulamentação não seria para já, “à pressa”, ficando o tema na pasta de transição para o próximo executivo.

“Infelizmente, o PS empurrou com a barriga”, lamenta Bruno Maia, a quem têm chegado mais relatos de famílias defensoras (e potencialmente beneficiárias) da morte medicamente assistida. “Não há lei mais debatida do que esta. Foi vetada quatro vezes”, reforça.

Na última confirmação, PS, IL, BE, PAN e Livre votaram a favor. PSD, Chega e PCP votaram contra.

(Freepik)

Barrigas de aluguer: “Enviaram para o Tribunal Constitucional. Se ficarem eles no Governo, como vão olhar desta vez?”

O possível regresso da direita ao poder (com ou sem o apoio do Chega) preocupa os ativistas. Porque os partidos neste espetro da política tendem a ser mais conservadores. Um dos temas em cima da mesa é o que muitos dizem ser uma das poucas soluções para quem lida com problemas de fertilidade: a gestação de substituição, mais conhecida como barrigas de aluguer.

Joana Freire, porta-voz da Associação Portuguesa de Fertilidade, lembra que esta é uma luta antiga. Desde 2014. E os últimos três anos foram passados à espera de uma regulamentação – das tais regras de acesso a esta prática – que tarda a materializar-se.

“As mudanças políticas trazem sempre apreensão, porque nunca sabemos se o novo Governo vai abraçar estas causas. Coloca-se uma preocupação extra porque houve deputados do PSD e do CDS-PP [em 2017] a enviar a lei para o Tribunal Constitucional. Se ficarem eles no Governo, como vão olhar desta vez? E que resposta vão dar aos casais?”, questiona.

Em janeiro deste ano, Marcelo Rebelo de Sousa vetou a regulamentação proposta pelo Governo em novembro de 2023, praticamente dois anos depois do prazo legal. Tal obriga o governo a preparar um novo texto. Mas que governo irá prepará-lo? E quão prioritário será este tema para ele? São essas as grandes dúvidas.

“São processos que ficam pendentes. O nosso receio é se vão ficar eternamente pendentes ou se vai haver vontade política”, completa Joana Freire.

Em novembro de 2021, PS, BE, PAN, PEV, IL, a deputada social-democrata Margarida Balseiro Lopes e a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira (ex-Livre) votaram a favor. PSD, CDS-PP, PCP e Chega votaram contra. A deputada não-inscrita Cristina Rodrigues (ex-PAN, agora ligada ao Chega) absteve-se.

(Pexels)

Esperanças e promessas depositadas à esquerda

Como mostram as votações na morte medicamente assistida e na gestação de substituição, é no PS, Bloco de Esquerda e no PAN que estão depositadas as expectativas dos ativistas para que os temas voltem ao parlamento.

Nos programas eleitorais já conhecidos, apenas o do Bloco de Esquerda e o Livre fazem referência a um dos temas deste artigo: o da autodeterminação de género. O documento do PCP faz uma menção à necessidade de combater a discriminação, incluindo a motivada pela “orientação sexual” ou “questões de género”.

À CNN Portugal, a socialista Isabel Moreira, rosto do partido nos temas da eutanásia e da autodeterminação de género, assegura que não é possível sequer equacionar que “o PS retroceda em matéria de igualdade”. “Tudo é Portugal Inteiro”, reforça, recuperando o slogan de campanha.

Do Bloco de Esquerda chega também a garantia de que o partido se irá bater por estas causas numa futura legislatura.

Estes temas, garante Anabela Castro, cabeça de lista do PAN pelo Porto, "estarão vertidos" no programa eleitoral que o partido está a ultimar. A candidata reconhece que estas questões "normalmente não são ouvidas pelas políticas de direita". Serão, diz, "uma prioridade" do PAN, "que esteve sempre ao lado destas famílias". Apoiando um governo à esquerda ou à direita, defende, "as causas" estarão em primeiro lugar.

Mas, apesar das garantias, quem está habituado a estudar a política sabe que, por serem geradores de grandes cisões, temas como a eutanásia, barrigas de aluguer ou questões de género devem ficar de fora dos debates e da campanha.

“Os partidos acabam por ser muito utilitários do ponto de vista de captação de voto. Em temas fraturantes nos próprios eleitorados, acabam por não dar visibilidade. Diria que os temas em causa são temas quando há uma estabilização do ponto de visita económica, social e política. Não chegámos a fazer essa consolidação democrática”, refere a politóloga Paula do Espírito Santo.

Mas há uma exceção, o Chega, que tem sido acusado de tirar partido do ataque aos direitos conquistados pela comunidade LGBTQIA+. Chama-lhe “ideologia de género”, um termo que, segundo dizem os ativistas não existe e serve apenas como ataque político.  O uso desse argumento pelo Chega é feito, explica a politóloga, "porque é algo que abala a sua visão de bons costumes e de sociedade tradicional”.

(Mário Cruz/Lusa)

Autodeterminação de género: “Não é por se resolver a questão das crianças trans que se deixa de resolver o salário das forças de segurança”

Foi, entre as questões mais fraturantes, o último veto do Presidente da República. Em causa está o texto com as medidas a adotar pelas escolas para garantir o direito de crianças e jovens à autodeterminação da identidade de género. Ficou conhecido como “lei das casas de banho”.

Para definir “que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos e tendo presente a sua vontade expressa, aceda às casas de banho e balneários, assegurando o bem-estar de todos, procedendo-se às adaptações que se considerem necessárias”.

O texto final foi aprovado pelo PS, BE, PAN e Livre. PSD, Chega e IL votaram contra. O PCP absteve-se. O tema tem dado energia para a campanha do Chega, em especial nas redes sociais. E alimentado muitas preocupações entre as associações a trabalhar com a comunidade LGBTQIA+.

“Estamos numa altura em que os discursos estão muito polarizados. Em que as pessoas, por facilidade ou desinteresse, se ficam pelas redes sociais ou pelos títulos. E não vão procurar os factos”, lamenta Helder Bértolo, presidente da Opus Diversidades.

E acrescenta: “A chamada ‘ideologia de género’ é usada para desvalorizar outras medidas, para mostrar que os outros partidos só se preocupam com causas identitárias. É um discurso perigoso, que vai ser usado como arma de arremesso, de forma desleal, porque as propostas não são discutidas com verdade ou fundamento”.

Este professor universitário e ativista admite que possam existir retrocessos com uma mudança ideológica na Assembleia da República: “Vamos estar no alvo de muita demagogia, porque é assim que os populismos vingam”. E desafia todos a lerem os programas eleitorais dos partidos ou a traçarem o histórico dos seus líderes.

“Temos um líder do PSD que votou contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. E de certeza que há pessoas gay e lésbicas que vão votar no PSD”, exemplifica.

Helder Bértolo lamenta que questões como a identidade de género não estejam nas prioridades: “Como se as políticas fossem hierárquicas e não paralelas. Não é só por se estar a tentar resolver a questão das crianças trans que se deixa de resolver o salário das forças de segurança”.

(EPA/Erdem Sahin)

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