Dielmar vai fechar 2023 com lucros, dois anos após falência. “Só conseguimos aproveitar os trabalhadores”

ECO - Parceiro CNN Portugal , António Larguesa
30 out 2023, 08:15
José Manuel Ferreira, presidente da Valérius (Foto: Ricardo Castelo/ECO)

Acumulou uma década de prejuízos até falir com estrondo em 2021. Agora nas mãos da Valérius, a empresa de Castelo Branco emprega 200 pessoas e já fatura 6 milhões. Conheça a história da recuperação

O presidente da Valérius, que no ano passado pagou 275 mil euros para ficar com o recheio da fábrica e a propriedade industrial e intelectual da Dielmar, incluindo a própria marca, avança ao ECO que a empresa de vestuário, que fez renascer das cinzas de um atribulado processo de insolvência iniciado em agosto de 2021, vai chegar ao final deste ano com um volume de faturação próximo dos seis milhões de euros e fechar o exercício com lucros. Algo que a empresa de Castelo Branco nunca conseguiu atingir entre 2011 e 2021, ano em que fechou portas.

“É isso que esperamos. Mas o objetivo neste momento é que ela não dê prejuízo. Sempre que vamos para um novo negócio [de recuperação de empresas], o primeiro objetivo não é ganhar dinheiro, é estabilizar o doente”, refere José Manuel Ferreira, que nos últimos 15 anos já resgatou várias empresas da falência. Aliás, foi assim que se iniciou como empresário neste setor, depois de duas décadas na têxtil Araújo & Irmão, onde entrou como cronometrista e subiu a diretor industrial.

José Manuel Ferreira, presidente do grupo Valérius, em entrevista ao ECO - 24OUT23
José Manuel Ferreira, presidente da Valérius (Foto: Ricardo Castelo/ECO)

Em 2007, dois anos depois de investir em duas fabricantes de componentes para automóveis que ainda detém – Inoveplastika (peças plásticas) e Henfilgon (pintura e acabamentos) –, foi desafiado pelo dono da Texamérica para salvar a Valérius, que hoje trabalha para grandes marcas internacionais da moda.

Desde então foi comprando várias têxteis insolventes, como a Covidel, Lima Têxtil, Filobranca, Triumph (roupa interior) ou a Delcon, que pertencia ao universo da falida Ricon, que detinha a marca Gant em Portugal.

Fora do setor têxtil, o empresário de Barcelos, filho do meio do casamento de uma empregada doméstica com um cozinheiro, também já resgatou da falência outras empresas históricas, como a Fábrica de Calçado Campeão Português (Camport) ou a Ambar, produtora de artigos de papelaria, de material escolar e de brinquedos pedagógicos comprada em 2014 a meias com José Costa, da Coscelos, igualmente ligado à indústria têxtil.

 

Integrada no universo Valérius na sequência de um acordo alcançado com os credores, tendo em vista a manutenção da atividade e o aproveitamento da capacidade e experiência de cerca de 200 trabalhadores, a histórica fábrica de confeções de Alcains está neste momento a produzir “190 a 200 fatos por dia” (calça e casaco). Para já, apenas 5% estão a ser vendidos com a marca Dielmar; o grosso da produção assenta no modelo de private label e é exportado para clientes dos EUA, Canadá e Alemanha.

A empresa soma “à volta de dez clientes”, sendo que alguns já trabalhavam com a Valérius, que aproveitou para fazer cross selling, e “dois ou três” eram antigos compradores na Dielmar. É o caso do grupo brasileiro Via Veneto, que pertence a Carlos Antunes, um empresário com origens na zona de Leiria e detém perto de 250 lojas de pronto-a-vestir espalhadas pelo Brasil e também vende no mercado alemão.

A par do desvio de encomendas que estavam no leste europeu, por causa da guerra na Ucrânia, foi a entrada deste cliente – chegou a ser referido como potencial parceiro numa outra proposta pela Dielmar e assegura atualmente perto de 20% da produção total – que acelerou a previsão de fecho de contas no “verde” no final deste ano.

“Tínhamos feito um orçamento para quatro milhões de euros e perdíamos algum dinheiro”, relata José Manuel Ferreira, notando que o objetivo é atingir “no pico” uma faturação a rondar “8 ou 9 milhões de euros”, pouco mais de metade dos 15 milhões que a Dielmar chegou a faturar no passado.

“É a dimensão que queremos ter”, vaticina o empresário minhoto que Cavaco Silva fez comendador da Ordem de Mérito Industrial antes de sair da Presidência da República. Quanto à capacidade desta fábrica, diz ter “a expectativa de chegar aos 280 fatos por dia daqui a algum tempo – e não são precisas mais pessoas para isso”, ressalva.

200 trabalhadores e menos de 50 mil euros em sucata

A Dielmar chegou a empregar perto de 300 pessoas e sempre foi uma das maiores empregadoras da região da Beira Baixa. Fruto de vários apoios públicos concedidos nos últimos anos, o Estado português detinha cerca de 30% do capital desta empresa de confeções fundada em 1965.

Sob a gestão de Ana Paula Rafael, deixou dívidas no valor de 18 milhões de euros: oito milhões ao Estado, resultantes de diversas ajudas públicas financeiras e não financeiras e que o então ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, desde logo reconheceu que o Estado não iria conseguir recuperar; cerca de seis milhões à banca e ainda 2,5 milhões a fornecedores e 1,7 milhões à Segurança Social.

Depois da rescisão de contratos com os trabalhadores das lojas e da não renovação dos contratos a termo, em novembro de 2021, quando foi decidido avançar com o encerramento da empresa e respetiva liquidação da massa insolventetinha ainda cerca de 240 trabalhadores, que foram para o desemprego.

Através de uma nova empresa, a Valérius comprometeu-se a ir buscar 200 de forma faseada e após uma formação teórica e outra em contexto de trabalho, em parceria com o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). E a manter a operação industrial em Alcains, arrendando o edifício que pertence ao estatal Fundo Imobiliário Especial de Apoio às Empresas (FIEAE).

O que aproveitámos foi o conhecimento das pessoas porque, de resto, não conseguimos aproveitar mais nada. A gestão era o que era e as máquinas tinham 40 anos. Ficámos com tudo, mas era uma coisa surreal. Estava pior [equipada] que uma fábrica do Norte de África.

José Manuel Ferreira

Presidente da Valérius

“Já temos à volta de 190 a 200 pessoas. Perto de 80% estavam antes na empresa. Não são todas as mesmas porque havia gente próxima da reforma, e já fomos buscar algumas novas a empresas lá à beira. Tivemos de lhes dar formação, apesar da experiência, porque trabalhavam no sistema de há 30 anos. Havia um estigma e o grande problema é o mindset. A grande dificuldade é sair de um registo em que havia três administradores num gabinete e que chamavam lá as pessoas para terem conversas banais. Sabem que hoje isso não acontece, toda a gente trabalha. Isto acontecia”, relata José Manuel Ferreira, que calcula ao ECO já ter investido perto de dois milhões de euros.

Questionado sobre uma futura venda da empresa, responde que “primeiro [quer] recuperá-la e dar dignidade àquelas pessoas”.

E esse conhecimento dos trabalhadores, a par da marca, foi mesmo o maior ativo com que diz ter ficado. “De resto, não conseguimos aproveitar mais nada. A gestão era o que era e as máquinas tinham 40 anos. Ficámos com tudo, mas era uma coisa surreal. Estava pior [equipada] que uma fábrica do Norte de África. No final, nem 50 mil euros fizemos em sucata”, resume, recordando que quando foi conhecer o parque industrial até a luz estava cortada.

“Aquele foi um valor simbólico [275 mil euros], não contabilizei equipamento a equipamento. Mas pensei: quanto é que me custaria hoje formar [de raiz] esta gente toda? Muito dinheiro”, completa.

Para ficar à frente da operação, com um “mandato de três anos para formar uma nova equipa de gestão” para o futuro, o líder da Valérius contratou Alcino Rafael, atualmente com 64 anos, que é filho de um dos quatro fundadores e que tinha vendido a quota e saído uma década antes de a empresa pedir a insolvência ao fim de 56 anos de atividade.

“Ele era o homem da produção, do chão de fábrica. Os outros [gestores] eram do PowerPoint. E no PowerPoint funciona sempre [risos]. Hoje é a nossa cabeça naquele projeto”, apresenta José Manuel Ferreira.

A nível comercial, uma das missões do experiente gestor, concretizada no início do último verão, foi o rebranding da marca de moda masculina, com o lançamento das primeiras peças “de raiz” desde a mudança de proprietário.

Além da renovação da imagem e do logótipo, envolveu igualmente um reposicionamento em termos de segmento e de preço, “mais abaixo um bocado, não perdendo a qualidade nem a forma de estar”.

“Um fato da Dielmar ou da Hugo Boss não podem custar o mesmo. Claro que estamos a andar mais devagar, mas o problema é que aquela marca gastava muito dinheiro. Tinha uma coleção enorme, trabalhava para stock e não vendia. Estamos a fazer uma coisa diferente e, a prazo, pode valer 40% das vendas” da empresa, conclui o empresário barcelense, que há precisamente dois anos estava a ser contactado pelo Governo para avançar com uma proposta de última hora para salvar a empresa e que pudesse ser aprovada pelos credores.

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