Roger Spry é convidado do DESTINO 80s. Lembra-se do preparador físico que trouxe a música e as artes marciais para os treinos no Bonfim, Alvalade e Antas? Tem 68 anos e continua em excelente forma
DESTINO: 80's é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias dessa década marcante do futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINO: 80's.
O primeiro não futebolista a entrar nesta rubrica tinha de ser uma personagem especial. Marcante. Um homem carregado de histórias e memórias, de métodos out of the box. Aqui está ele: mister Roger Spry, o preparador físico que era muito mais do que isso. Um manipulador de corpos e mentes.
O Maisfutebol reencontra-o no seu estúdio em Inglaterra, antes de mais um dia de trabalho. Corpo são, mente sã, discurso cheio de revelações e saudades, muitas saudades. Do Vitória de Setúbal, do Sporting, do FC Porto, enfim, de Portugal.
Depois da conversa em 2008 durante o Europeu da Áustria/Suíça, perdemos-lhe o rasto. Roger conta agora tudo e põe a conversa em dia.
Maisfutebol – Aos 68 anos, o Roger continua em boa forma?
Roger Spry – Como se tivesse 30 anos, ah ah ah. Dou todos os dias aulas de capoeira e karaté aqui em Inglaterra. Mas não só.
MF – Ainda trabalha no futebol?
RS – Sim, sim. Saí há pouco da federação da Nova Zelândia e colaboro com a FIFA e a UEFA há mais de dez anos. Viajo pelo mundo a dar palestras e cursos de aplicação prática. Tento ser o treinador dos novos treinadores, ensinando o que aprendi ao longo da minha carreira. Além disso, recebo no meu estúdio jogadores do Arsenal, do Manchester City e do Chelsea. O Guardiola envia-me um jogador e diz ‘Roger, preciso que este tipo melhore o tempo de salto’ ou ‘Roger, este tipo tem de ter uma explosão mais forte’. A partir daí, trabalho esse ponto específico.
MF – Não gostaria de voltar a trabalhar em exclusivo para um clube?
RS – Só se fosse em Portugal. A minha esposa faleceu há três anos, depois de um longo sofrimento, e agarrei-me muito à família e ao trabalho. Aqui em Inglaterra, sinceramente, prefiro trabalhar a partir de casa, no meu estúdio. Só iria para Portugal, porque é o país onde mora o meu espírito. Vocês não sabem a sorte que têm.
MF – Uma das suas filhas é portuguesa, certo?
RS – Nasceu em Setúbal, é sadina, ah ah ah. Portugal tem a maior das riquezas: as pessoas. Nunca fui tão bem tratado como aí. As pessoas sorriem, recebem bem, têm sol, boa comida, vinho fantástico. Pode dizer aos clubes portugueses: ‘o Roger Spry tem 68 anos e está em grande forma’. Se algum clube português me convidasse, estaria aí no dia a seguir.
MF – Voltemos a 1986. A sua ligação com Portugal começa aí.
RS – Sim, por culpa do Malcolm Allison, um homem genial e um treinador muito adiantado para o seu tempo. Ele aceitou o convite do Vitória e levou-me com ele para Setúbal. Algumas pessoas pensam que estive com ele em 1981 no Sporting, mas não estive.
MF – O senhor Allison gostava dos seus métodos?
RS – Música e artes marciais, como as pessoas dizem, ah ah ah. Mas era muito mais do que isso. Com o Malcolm era fácil trabalhar. Todos os dias ele vinha ter comigo e dizia ‘Roger, os próximos 30 minutos são teus, faz desses gajos o que quiseres’. E aí, sim, eu procurava variar o mais possível. Às vezes sentia que o dia era pesado e a equipa precisava de música, às vezes ensaiava passos de artes marciais para melhorar a concentração, mas noutros dias só falávamos. O segredo é esse, perceber o que dar e quando dar. E, claro, encontrei personalidades muito diferentes. No balneário do Vitória havia muitos jogadores com mais de 30 anos: o Eurico, o Rui Jordão, o Manuel Fernandes…
MF – Como se consegue extrair rendimento de um futebolista de 35 anos, como tinha o Jordão na altura?
RS – Conheci o Jordão num restaurante. O Manuel Fernandes ligou-me e disse-me que ele, o Rui, queria acabar a carreira. Não se sentia bem, andava triste… Fui lá ter com eles e o Jordão estava, é verdade, muito triste. Mas os olhos dele brilhavam, como se fosse uma criança entusiasmada. Perguntei-lhe muito diretamente: ‘Rui, queres jogar ao mais alto nível dois anos ainda e fazer golos?’. Ele começou a chorar à minha frente. Não foi preciso dizer mais nada. Disse ao Manel para levá-lo a Setúbal e prometi-lhe que em dois meses estaria no máximo. Não tenho aqui os números [59 jogos/12 golos], mas vi o Jordão a jogar e a treinar como um menino.
MF – A mente tem a mesma importância do corpo?
RS – Tem uma importância maior ainda. A maior parte das pessoas não sabe, mas trabalhei com o Mário Zagallo e o Carlos Alberto Parreira na seleção do Brasil. O Zagallo já tinha mais de 60 anos na altura e disse-me uma coisa que jamais esquecerei: ‘Tu nunca és demasiado velho para querer correr’. Todos queremos correr e ter saúde. Podemos não conseguir, mas queremos. Correr é uma sensação mágica, é a liberdade em todos os músculos. O que quero dizer com isto? Com os jogadores mais experientes, é preciso fazer com que pensem e sintam isto: ‘tenho o privilégio de poder correr’. Posso dar-lhe o exemplo de outro jogador.
MF – Com certeza.
RS – Meszaros, o guarda-redes. Fantástico na baliza, mas odiava treinar e correr. O senhor Allison andava preocupado, sentia que ele não estava feliz e falou comigo. Precisávamos de arranjar alguma forma de estabelecer um compromisso com ele.
MF – O que decidiram?
RS – O Meszaros adorava fumar, mas era completamente proibido fumar no balneário, no estádio, em todos os lados onde a equipa estivesse. Falámos com ele, percebemos que andava desanimado e dissemos-lhe: ‘a partir de agora podes fumar um cigarro ao intervalo, longe dos teus colegas, mas tens de merecê-lo’. O Meszaros fez um final de temporada espetacular.
MF – Já falaremos sobre o Sporting, mas antes gostaríamos de perceber outra coisa. A abordagem que teve com o Dani foi diferente? Ele tinha 18 anos e não adorava treinar.
RS – Miúdo fantástico, miúdo fantástico. O Dani era um génio, atenção. As pessoas não devem ter noção disso. Apanhei-o quando era ainda um adolescente e foi um desafio para mim. Tive de gerir muito bem as emoções dele. Abraçava-o, explicava-lhe que não podia sair todas as noites, que tinha de dormir para ser feliz no relvado. Estabeleci um vínculo de confiança com ele para lhe poder exigir depois o que exigia aos outros. Ele, acho que por gostar de mim, treinou sempre bem comigo. Era o que corria mais? O mais aplicado? Não, mas cumpriu sempre.
MF – O Roger sai do Setúbal em 1989 e em 1992 vai para o Sporting. A convite do Bobby Robson?
RS – Não, o Bobby não teve qualquer influência nisso. Aliás, nunca falei com ele até encontrá-lo em Alvalade.
MF – Como foi para o Sporting, então?
RS – Eu estava feliz no Aston Villa, muito feliz. No verão fui passar férias a Portugal, como faço ainda hoje em dia, e levei a minha família a jantar fora. Estávamos num restaurante, no Algarve, e a dada altura a empregada de mesa vem falar comigo: ‘desculpe, sr. Spry, está ali um senhor para falar consigo’. Eu pedi educadamente para nos deixarem jantar, queria estar relaxado e em família, mas a menina insistiu. ‘É um senhor importante e diz que é urgente’. Levantei-me, segui-a e ela levou-me até ao Sousa Cintra, o presidente do Sporting. Fez-me logo ali uma proposta financeira escrita num guardanapo de papel e disse-me que não aceitava um ‘não’. Para mim era a oportunidade perfeita de voltar a Portugal. Aceitei.
MF – Foi fácil trabalhar no Sporting?
RS – Para mim nunca é fácil porque me envolvo emocionalmente com os projetos. Conheci o Bobby, construímos uma grande equipa, mas nessa altura o Benfica e principalmente o FC Porto eram muito, muito fortes. O pior foi mesmo aquela derrota em Salzburgo.
MF – Ficou surpreendido com a demissão do Bobby Robson depois desse jogo?
RS – Claro que sim, ficámos todos. Esse jogo é… como dizer? Uma desgraça. Chegámos à Áustria e estava a nevar. A maior parte dos jogadores nunca tinha visto neve na vida. Preparámos o jogo, ninguém acreditava na nossa eliminação. E depois, enfim, o Costinha teve uma noite terrível. Gosto muito dele, trabalhava como um leão, mas as coisas correram-lhe mal. A viagem de regresso teve um ambiente miserável e à chegada a Lisboa já sabíamos que o Bobby ia ser despedido.
MF – Mas o Roger ficou no Sporting.
RS – Certíssimo. O Carlos Queiroz foi contratado, falou-me das suas ideias e perguntou-me quantos anos eu ainda tinha de contrato. Disse-lhe que tinha dois e ele prometeu-me que ia falar com o presidente, aumentar-me o salário e estender o contrato. Prometeu e cumpriu. Falei com o Bobby Robson e ele foi o primeiro a dizer para eu aceitar.
MF – Esse Sporting tinha um plantel cheio de craques: Figo, Paulo Sousa, Balakov, Capucho…
RS – Ah ah ah, o Figo ficava doido comigo. Levei-o aos limites. Certo dia acabou o treino e teve de vomitar. Gritou comigo, zangadíssimo, e eu disse-lhe assim: ‘amanhã vais estar levezinho, vais voar’. Passou de jogador talentoso a craque mundial. Adoro o Luís e sei que ele me tem em grande consideração.
MF – Era normal levar os jogadores ao limite?
RS – Não, não era porque o nosso limite está muito além do que imaginamos. Na minha cabeça e nos meus métodos o futebolista tem de levar porrada e sorrir. Levar porrada e sorrir. No domingo chega ao jogo e o adversário não pode sentir que tem ali um menino de coro ao lado. Tem de pensar que tem um super-homem ou um louco.
MF – Foi essa mentalidade que convenceu Pinto da Costa a contratá-lo?
RS – Vivi no FC Porto os melhores dois anos da minha carreira. Só saí do clube porque o meu pai estava a morrer e tive de voltar a Inglaterra para cuidar dele até ao fim. Se não fosse isso, a esta hora ainda estava no FC Porto. Adoro o clube, adoro.
MF – Trabalhou no Porto com dois treinadores muito diferentes: António Oliveira e Fernando Santos.
RS – Fui tetracampeão com um e pentacampeão com outro. O Oliveira era muito inteligente, emocional, um homem que sabia mexer com a cabeça da equipa. O Fernando é um amigo enorme, um cavalheiro. Sabe sorrir e tem um sentido de humor fino. Tive sempre liberdade para impor os meus métodos com ambos. Aliás, com o Fernando trabalhei depois vários anos na Grécia: AEK e Panathinaikos. Ah, no FC Porto apanhei o Sérgio Conceição. Grande Serginho.
MF – E que tal?
RS – Sempre adorei futebolistas com o coração grande, com a emoção à flor da pele. O Sérgio era assim e será sempre assim. Um grande trabalhador e um profissional tremendo. Lembro-me de falar com ele no final de uma derrota europeia, acho que em Atenas [1-0, 17 de setembro de 1997]. O Sérgio estava de cabeça perdida, a discutir com todos, com o mundo. Agarrei-o com força e disse-lhe: ‘Sérgio, não deixes que o teu coração mate o teu futebol’. Ele abraçou-me, chorámos os dois, uma loucura. O Sérgio é um animal de competição, um grande profissional.
MF – Que futebolistas mais o marcaram no FC Porto?
RS – Tanta gente, gente que adorava trabalhar e adorava os meus métodos. O Deco, por exemplo. Chegou lá pequeno e fraco. Transformou-se num médio capaz de jogar em qualquer lado e contra qualquer adversário. E o Jardel era especial, claro. Não podia pedir ao Jardel para andar a correr como os outros. O Jardel era um menino e tínhamos de o tratar como a um menino, com meiguice: ‘Jardel, tens de ter a cabeça fria e os pés quentes’. Naquela zona do penálti ele não tremia. Incrível, incrível.
MF – Última pergunta, Roger: quando é que o veremos por Portugal?
RS – Vou aí três vezes por ano, ando sempre entre Setúbal, Algarve, Estoril e Porto. Mas estou farto de andar de avião e quero viver aí. Escreva isto, por favor: ‘O Roger Spry está em grande forma e pode ajudar muito o clube que o contratar’. Um abraço, amigos.
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