Quase metade dos portugueses concordam com o regresso do serviço militar obrigatório, mas os especialistas insistem que esse modelo não deve servir como alternativa a umas forças militares mal pagas
O mais violento conflito armado em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial expôs as pretensões imperialistas de Vladimir Putin e, um pouco por todo o continente, intensifica-se o esforço do recrutamento. O regresso do serviço militar obrigatório está a ganhar cada vez mais força na Europa, onde o número de voluntários não chega para os colmatar as necessidades, mas os especialistas defendem que o modelo tem de ser diferente do que existiu no passado e alertam que o país corre vários riscos se não o fizer.
“Portugal tem de contribuir para o esforço europeu de dissuadir a Rússia das suas ambições imperialistas. Se não o fizermos, podemos vir a ser chamados para uma situação que não gostaríamos, sem estarmos preparados para isso”, alerta João Annes, especialista do Observatório de Segurança e Defesa da SEDES.
Nos últimos anos, a situação das Forças Armadas portuguesas tornou-se particularmente crítica. O número de militares atingiu em dezembro um mínimo histórico, com os ramos do Exército, Força Aérea e Marinha a terem menos efetivos do que a Guarda Nacional Republicana. São apenas 21.080 militares, muito abaixo dos 30 a 32 mil previstos na Reforma Defesa 2020.
Um estudo divulgado pela Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), em fevereiro, revela que 47% dos portugueses concordam com o regresso do Serviço Militar Obrigatório (SMO), de forma a assegurar que o exército tem efetivos suficientes. O número de respostas favoráveis é um aumento significativo face aos 40% registados em 2021, um ano antes da invasão russa. Além disso, a sondagem da SEDES aponta que 47% dos portugueses vê com bons olhos um aumento do investimento em Defesa, mesmo que isso implique cortes noutras áreas. No entanto, os especialistas defendem que deve existir um amplo debate sobre que tipo de serviço deve ser implementado.
“A questão do serviço militar obrigatório não deve ser colocada como uma questão de sim ou não. Temos de perceber de que tipo de serviço militar obrigatório estamos a falar. Aquele disparate do início dos anos 2000, em que se institui o serviço de quatro a seis meses? Temos de perceber o que queremos fazer e temos de envolver os cidadãos nesta discussão”, afirma António Lima Coelho, presidente da Associação Nacional de Sargentos.
Mas pela Europa a ideia ganha cada vez mais força. Entre 1990 e 2013, 23 países europeus deixaram este modelo e focaram-se em profissionalizar as suas forças. Depois da invasão russa da Crimeia, em 2014, tanto a Ucrânia como a Lituânia decidiram reintroduzir o serviço militar obrigatório. Kiev optou por chamar homens com idades entre os 18 e os 26 e a Lituânia chama para servir homens entre os 17 e os 25 anos. Em 2024, apenas a Suíça, Áustria, Grécia, Dinamarca, Finlândia, Ucrânia, Suécia, Noruega, Estónia, Letónia e Lituânia, têm SMO.
Para o major-general Isidro de Morais Pereira já não faz sentido pensar no SMO nos mesmo moldes em que existiu no passado, tendo em conta as diferenças da natureza da guerra. Por isso, o modelo que o considera mais apropriado para Portugal é semelhante ao aplicado na Suécia. Em 2010, o país nórdico chegou mesmo a abolir o serviço militar obrigatório, na expectativa de encontrar no sistema voluntário profissionalizado os números necessários. Mas isso não aconteceu e, devido à falta de homens, o sistema voltou a ser introduzido em 2018, obrigando todos os jovens de 18 anos a apresentarem-se para serviço. Destes jovens são selecionados apenas os necessários para colmatar as necessidades do exército.
“É extraordinariamente vantajoso regressar a um sistema misto, onde os portugueses sejam alertados para a necessidade de servirem o seu país. Não quer dizer que vão combater, mas ficam com as ferramentas necessárias para se o país precisar, sejam capazes de dar o passo em frente”, defende o major-general Isidro de Morais Pereira.
Neste sistema, apenas um grupo de homens e mulheres seriam chamados todos os anos para receber a formação militar adequada às necessidades modernas do campo de batalha.
António Lima Coelho, presidente da Associação Nacional de Sargentos, vê com bons olhos que o SMO seja utilizado para “trazer aos jovens a noção de servir o país” e sublinha que a Constituição portuguesa é clara ao definir “a defesa da Pátria” como “um direito e um dever fundamental” de todos os portugueses. “Isto não é apenas uma coisa bonita para estar escrita”, frisa.
Em Portugal há, porém, receio de que o SMO seja utilizado pela classe política para resolver o problema de falta de militares, sem garantir melhores salários e mais condições para os profissionais da área. Para as associações militares, parte do problema da atratividade da carreira deve-se às más condições salariais que oferece e, por isso, o SMO não pode servir apenas para “tapar buracos” causados pela falta de condições sociais dadas aos militares.
“O SMO não pode ser uma alternativa a umas forças militares mal pagas. Não podemos pensar dessa maneira”, alerta o comandante João Fonseca Ribeiro, responsável pelo estudo da SEDES.
Alemanha estuda 65 propostas
A maior economia europeia, a Alemanha, também está a pensar no regresso do SMO. A braços com um grave problema de falta de soldados, o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius alerta que a situação do país é complicada e diz estar a estudar “mais de 65 propostas concretas” de reintroduzir o serviço militar obrigatório. Faltam 22 mil soldados para atingir a meta de 203 mil prevista até 2025. “Existiam razões para suspender o serviço militar obrigatório. Em retrospetiva, no entanto, isso foi um erro”, admite Boris Pistorious, referindo que está a olhar para um modelo semelhante ao sueco para colmatar estes problemas.
Uma alternativa proposta pela própria SEDES passa por algo a que chamaram serviço nacional de cidadania obrigatório, onde os jovens podem servir uma instituição de Defesa/Segurança ou de interesse nacional, durante um determinado período. O objetivo, diz o comandante João Fonseca Ribeiro, é “criar uma cidadania ativa, que depois se pode exprimir em múltiplas ações do voluntariado à prestação de serviços em diversas entidades, mas também em plataformas de sociedade civil”.
A falta de pessoal é de tal forma grave que, a médio prazo pode vir até a afetar os serviços de segurança como a Polícia de Segurança Pública ou a GNR. “A geração das capacidades militares, não passa só por adquirir equipamento. É preciso adquirir pessoal. Essa uma das debilidades do exército português e, a prazo, vai acontecer o mesmo nas forças de segurança”, garante João Fonseca Ribeiro.
Mas no resto da Europa a tendência é mesmo o regresso do SMO. Em 2016, a Noruega passou a chamar todos os homens e mulheres de 18 anos para se apresentarem ao serviço militar. Dos cerca de 60 mil que se apresentam todos os anos, nove mil são chamados a cumprir 19 meses de serviço militar, após um rigoroso processo de seleção. Devido aos critérios apertados, que privilegiam a qualidade ao invés da quantidade, o serviço militar goza de um enorme prestígio social no país e é visto como um motivo de orgulho.
Com a invasão russa de 2022, a ideia ganhou um caráter de urgência para vários países. A Letónia, que faz fronteira com a Rússia, reintroduziu o serviço militar obrigatório em 2023. A partir deste ano, todos os homens com idades entre os 18 e os 27 são obrigados a cumprir 11 meses de treino militar. O objetivo é treinar 7.500 cidadãos por ano, a partir de 2028.
No ano passado, o Partido Socialista admitiu “refletir” sobre a possibilidade de recrutar cidadãos estrangeiros para as Forças Armadas, de forma a compensar a falta de efetivos. À data, o partido do atual ministro da Defesa foi rápido a reagir, opondo-se a essa possibilidade. “Uma coisa é imigração, outra é cidadania e outra a nacionalidade. As Forças Armadas devem estar reservadas a cidadãos nacionais, porque são a primeira representação do Estado e a última fronteira da Nação”, defendeu Nuno Melo.
A CNN Portugal contactou o ministro da Defesa, Nuno Melo, mas não obteve qualquer resposta.
Para o coordenador do estudo da SEDES, é fundamental que o Ministério da Defesa enfrente o mais rápido possível a “condição social das forças armadas” e não perca tempo em “processos de estudo” que se arrastam no tempo. É necessário dar resposta a problemas práticos criados por décadas de pacifismo, criando uma rede de recrutamento que se estende por todo o país.
“Estou apreensivo com o distanciamento da classe política do sentir da sociedade. Esta sondagem revelou, de certo modo, a vontade da sociedade. Isto é um desafio para a classe política em geral. O estado de necessidade do país pode vir justificar o serviço militar obrigatório, porque para termos desenvolvimento temos de ter segurança”, afirma o comandante João Fonseca Ribeiro.