opinião
Coordenador e editor de Religião e Cidadania TVI/CNN Portugal

Vêm aí as caravanas, atenção à estrada

26 fev, 14:25

Não é preciso complexificar o exercício político. Seria ainda mais incompreensível. Mas alguém que explique, em debates ou comentários, que um dos venenos da democracia e do estado de direito está em simplificar – banalizando com frágeis argumentos de pastilha elástica – o que é, pela sua natureza, necessariamente complexo.

   1. Há sempre um contexto, um percurso no rasto de uma opção, decisão ou proposta. Pedir que, em poucos segundos, se dê uma resposta que não pode nem deve excluir um contexto, é empurrar o exercício para palavras vazias de sentido.

É visível e audível o esforço dos protagonistas, mas o modelo em prática favorece a deriva populista e o truque, a demagogia, os fait divers, esvazia-se da consistência, sem adequado debate de ideias. Prevalece a preocupação com o lead – uma frase estudada que pouco diz, uma “boca” para atacar ou surpreender o adversário, uma fake encaixada a “martelo” para desviar atenções e impactar... – ou o incidente, em detrimento do conteúdo.

Diante do encurtamento do tempo disponível, abusa-se da transposição do ambiente na rede social para o discurso político, que carece de discernimento e se perde na pressa mediática, e com o propósito de ter a resposta curta para os mais complexos cenários, as palavras tendem a resvalar para a precipitação.

No tempo da banalização das verdades, da velocidade, contradição e paradoxo entram facilmente na narrativa. Como na dinâmica das notícias falsas, têm impacto no momento. E é só isso que se pretende. O que valem, ou não, revela-se tarde demais, no rasto de um eventual polígrafo.

Neste caldo, é expectável que medrem populismos simplistas e irracionais, vingando a ideia de que o incidente, a palavra que impacta, violenta ou de rutura, tantas vezes ofensiva, despropositada e desnecessária, é a que vale mais. O problema é mais sensível quando – na ânsia da eficácia – emana de quem tem evidentes responsabilidades e possibilidade de ocupar funções de governança.

   2. Os candidatos orquestram o cenário narrativo que mais se adequa à respetiva caravana, o que não impede as derrapagens na estrada. Um exemplo. No arranque da campanha eleitoral, o líder da coligação Aliança Democrática (PPD-PSD/CDS-PP/PPM), acusou o partido adversário, PS, de preparar uma coligação incoerente com os partidos à esquerda, que, alega, querem sair da NATO, contestam a UE, são pouco firmes a defender a Ucrânia e pouco veementes a condenar “a agressão russa”. Entende-se o raciocínio, embora seja contrariado, em grande medida, pela história recente. Diferentes visões sobre a Aliança Atlântica e a União Europeia não impediram esses mesmos partidos de garantir a maioria parlamentar que sustentou o governo de 2015, sintonizando um "contrato" com denominadores comuns.  

Num efeito boomerang, Montenegro expõe um telhado de vidro traduzível numa pergunta retórica: ao compor uma coligação com um partido monárquico, PPD-PSD preconiza o fim da República?!

O Partido Popular Monárquico – que valeu, há dois anos, 260 votos – defende a legitimação de castas, está empenhado em repor a… monarquia. É consultar os respetivos estatutos. O pressuposto é despropositado, no mínimo, mas a AD de Sá Carneiro mostrou que não é impeditivo da concertação de interesses comuns – embora haja uma diferença: em 1979, o partido monárquico tinha na liderança um visionário extramuros, que contribuía para um debate inclusivo, sem comportamentos bacocos.     

Nem um governo liderado por Montenegro com apoio do PPM iria propor um referendo à pertinência de uma monarquia, nem um governo de Pedro Nuno Santos novamente apoiado pelos partidos mais à esquerda abandonaria a NATO, a UE ou a Ucrânia. 

   3. No sufoco de uma campanha ultra mediatizada e condicionada pelas redes sociais, todos vão tendo deslizes da razão. Ao cidadão eleitor cabe o papel de filtrar, acionar a memória para rever contradições e não-respostas, confrontar programas, percursos e ideias, agilizar uma análise racional para relativizar o que é relativizável e relevar o que verdadeiramente tem relevo. 

Um debate televisivo não é um ringue de boxe, não se mede apenas pela agressividade, tantas vezes circense, dos candidatos, embora a assertividade seja importante no desenho da perceção.  

Um cerco de jornalistas que se atropelam com perguntas a um candidato no caos de uma arruada não é um combate de luta-livre, embora seja decisiva a prestação do jornalista no eixo das perguntas, as respostas a quente do candidato e a posterior narrativa mediada pelo género nobre da reportagem, o único que, mesmo sob risco da manipulação, é capaz de alinhar as palavras ditas, as imagens captadas no evento, com o ambiente e a imprescindível ponderação.

Uma ronda pela feira ou pelo mercado não mostra as ideias, embora o desenrascanço do candidato perante o embaraço possa criar empatia.

Noites seguidas de comícios e jantares organizados pelos aparelhos partidários não são sondagens nem revelam a vontade popular, embora encham salas e permitam aos candidatos, em segurança, mostrar capacidade de oratória para vincar a mensagem de cada dia.    

Um meme ou um post na rede social não tem filtros, é uma provável manipulação em bolha, embora possa ampliar-se de forma viral.

A prestação mediática de um político ou partido é apenas uma complexa parte na análise que se exige ao eleitor, que deve e tem de ler e interpretar no contexto. Mas será que quer ou está disponível para tal? Ninguém disse que o exercício de uma cidadania responsável e ativa não dava trabalho...

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