E agora, como fica o SNS? "Não será capaz de dar resposta" também no próximo ano - nem em urgência, nem em cirurgia, nem em consulta

9 nov 2023, 08:00
Coronavírus

As atenções estavam todas centradas na reunião que deveria ter acontecido esta quarta-feira entre sindicatos médicos e Governo, mas a crise política agora instalada vem adensar a preocupação e os alertas e em todo o Serviço Nacional de Saúde. Dos médicos, enfermeiros e administradores hospitalares chega o aviso: 2024 trará lutas e exigências de outras classes e um SNS cada vez mais incapaz

O cenário atual no Serviço Nacional de Saúde (SNS) já não era animador, mas a demissão do primeiro-ministro vem aumentar o leque de preocupações e alertas por parte dos profissionais de saúde. A ida a eleições ou a nomeação de um novo chefe do Executivo são os dois cenários mais prováveis nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa, mas ambos colocam o setor público de saúde e as condições dos seus profissionais em standby.

Confesso que, atendendo à situação que está a ser vivida no país, estou bastante apreensiva. Esta sensação de instabilidade preocupa-nos a todos”, começa por dizer Maria João Baptista, médica e presidente do Conselho de Administração do Hospital São João, minutos depois de António Costa ter apresentado a sua demissão, mas na expectativa de que a reunião entre sindicatos médicos e Ministério da Saúde se mantivesse, o que não aconteceu, visto que foi cancelada na noite de terça-feira.

Sem acordo entre sindicatos médicos e Ministério da Saúde à vista e sem nova data anunciada para reunir, o cenário para as próximas semanas e meses não é animador. 

Podemos esperar um SNS que não responde ao que é necessário, às necessidades acrescidas nesta fase do ano. O SNS não tem capacidade de resposta, não só em termos de camas de internamento, como em serviços de urgência. Se em anos anteriores temos assistido a uma incapacidade de resposta ao afluxo de utentes, mesmo com equipas dotadas de todos os profissionais em número suficiente, imagine com insuficiência de profissionais em especialidade e em número”, afirma à CNN Portugal Susana Costa, porta-voz do movimento Médicos em Luta, numa conversa telefónica um dia antes de António Costa se ter demitido. Já depois da demissão, embora acredite que ir a eleições possa ser “mais positivo” do que manter o atual Governo, defende que “urge um entendimento”, mas diz que o protesto é para manter e que, mesmo havendo eleições, a situação dos médicos tem de ficar resolvida antes

A médica diz que o cenário já é crítico, mas que o SNS arrisca-se a não ser “capaz de dar resposta” também no próximo ano. “O que vai acontecer é que vão acrescentar-se minutas, todos os que estão na dúvida vão apresentar a recusa, os serviços vão agravar e os médicos vão tornar-se ainda mais crentes e mais confrontados com o facto de não haver vontade em manter o SNS com a qualidade que tem”, antecipa.

Para Maria João Baptista, “não havendo um entendimento” a curto prazo, seja com um Governo de continuidade ou logo após a criação de um novo através de eleições, o cenário que antevê é de “encerramento” de mais serviços de urgência, o que tará para “algumas instituições mais dificuldade para outras atividades”, como as programadas, seja cirurgia ou consulta, algo que já acontece “pontualmente” no Hospital São João.

“Temos tido a necessidade de interromper a atividade de rotina. Na ausência de soluções, vai aumentar a indisponibilidade dos médicos para a realização de mais horas extraordinárias aqui na nossa instituição. Receamos que haja um atraso nos tempos para as cirurgias programadas e implicações no acesso aos cuidados de saúde”, lamenta, dizendo que esta será uma realidade transversal a todo o país.

Quanto mais tempo se prolongar esta situação, a já frágil situação do SNS vai-se agravar. Se não houver uma resolução antevejo que possa haver impacto progressivamente maior”, frisa Maria João Baptista.

Hospitais tentam dar a volta, mas efeito bola de neve vai crescer

Assim que as primeiras recusas a mais horas extraordinárias para lá das impostas por lei foram entregues, os hospitais começaram a gerir internamente o já anunciado cenário de caos. Alguns encerraram os serviços de urgência, ficando concentrados em hospitais centrais, outros convocaram clínicos de outras especialidades para o atendimento urgente. Mas este jogo de cintura não é possível a longo prazo.

“A reorganização é um desafio diário, semanal, mensal, tem de haver programação mas temos de nos adaptar todos os dias”, explica Maria João Baptista, que diz que essa organização “é baseada na comunicação, não estamos uns contra os outros, temos de comunicar com as equipas, temos de ser claros de que temos respeito pelas reivindicações, mas também pela população, sobretudo o doente grave que está em risco de vida”.

Para Susana Costa, os conselhos de administração dos hospitais “têm esgotado as possibilidades que têm de fazer face a estas questões, desde a movimentação de profissionais de outras atividades para o serviço de urgência, mas sem profissionais em quantidade suficiente não há muito o que se possa fazer”. 

Alguns conselhos de administração têm limitado o acesso aos utentes [com o encerramento de serviços], mas não há muito mais por onde gerir”, continua a médica e porta-voz do movimento Médicos em Luta, que alerta para o facto de haver casos em que os conselhos de administração dos hospitais “têm tentado atropelar algumas questões que têm vindo a público, nomeadamente com a dimensão das equipas de urgência que entendem que podem funcionar com equipas muitíssimo subdimensionadas, mas isso não é possível”.

O Centro Hospitalar Lisboa Ocidental chamou médicos de todas as especialidades para urgência interna, justificando a medida devido aos “graves constrangimentos” na elaboração das escalas de urgência interna, escreve o Diário de Notícias, que diz que a decisão do hospital vem na sequência da recusa de vários médicos em fazerem mais horas extraordinárias. Este cenário, que Susana Costa diz ser transversal a outros hospitais, traz riscos, não só para os utentes, como para os próprios médicos.

“Assistiremos já em dezembro a uma situação de exaustão por parte dos profissionais que, neste momento, estão a tomar conta de doentes que não lhes compete tomar. Os médicos sem especialidade que assumem as urgências acabam por tomar responsabilidades que não lhes competem, estes têm visto as suas condições de trabalho e quantidade de trabalho muito agravadas”, destaca Susana Costa.

Na eventualidade de tão cedo não existir um acordo entre Governo e sindicatos médicos, Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), defende que a solução tem de passar pela existência de “um plano de contingência que poderá implicar a concentração de respostas em alguns casos, numa lógica metropolitana ou regional, assumindo que não vamos conseguir ter todos os pontos de urgência aberta, mas os abertos estarão capacitados”. Mas, ainda assim, admite que o cenário atual e o descontentamento de vários profissionais de saúde pode dificultar esta e outra qualquer solução.

O ministro da Saúde vai ter uma grande dificuldade, porque lida com vários grupos profissionais que perderam condições salariais, como os enfermeiros e até nós, os administradores hospitalares não temos uma carreira há 20 anos, temos uma carreira de gestão intermédia dos hospitais, não temos progressão salarial há mais de 20 anos, sabemos bem o que é estagnação salarial. O Ministério da Saúde criou a expectativa de rever a nossa carreira em 2025, o que é um calendário inaceitável e os melhores administradores acabam por sair”, revela, dizendo que esta poderá ser uma luta a acontecer no próximo ano.

E da mesma opinião é Ana Rita Cavaco. A bastonária da Ordem dos Enfermeiros, profissionais de saúde que estão, de momento, em greve contra as horas extraordinárias, acredita que 2024 será “ainda mais reivindicativo, as pessoas olham para o que está a acontecer à volta delas na sociedade, como o que aconteceu hoje [terça-feira, referindo-se à demissão de António Costa], e sentem-se revoltadas”.

Os enfermeiros acabam por fazer 70 horas semanais, não há enfermeiros suficientes em Portugal, é um problema de organização, no nosso caso não há um número comparável de emigração de saúde como a dos enfermeiros”, destaca a bastonária, defendendo que “os enfermeiros podem e devem bater mais o pé, há uma diferença grande tratamento” face ao dado aos médicos, diz.

A partir de janeiro, a contagem das 150 horas anuais extraordinárias a que os médicos são obrigados a cumprir começa do zero, mas isso não quer dizer que o SNS fique são e salvo. Pelo contrário, será apenas um penso rápido, uma vez que, segundo Susana Costa, os médicos “podem ser obrigados a fazer até 12 horas semanais de horas extraordinárias”, o que, “até ao fim do terceiro mês do ano, no fim de março ou princípio de abril, essas horas estarão esgotadas” e uma nova ronda de recusas pode ser iniciada, sendo que, diz a médica, os clínicos mais velhos que já faziam urgência quase pro bono podem agora ver que saem penalizados e, com isso, “certamente que vão requerer a sua indisponibilidade”.

“Haverá menos médicos a partir de janeiro a realizar menos horas extraordinárias até à data do início deste movimento. Em janeiro haverá possibilidade de se fazer equipas mais completas, mas nunca com a totalidade dos médicos que faziam até agora. As pessoas compreendem que não vale a pena o esforço, estão zangadas, há muita gente que se vai manter indisponível mesmo para as 150 horas extraordinárias”, assegura Susana Costa.

Também Xavier Barreto diz que em janeiro “teremos um novo plafond” de horas extraordinárias, mas alerta que “se os profissionais entregarem a declaração mais cedo, essas horas vão esgotar-se mais cedo, o problema não se coloca apenas no final do ano, vai ser mais cedo e não podemos estar cativos desta circunstância, temos de ter um sistema mais resiliente”.

Mas a questão da recusa a mais horas extraordinárias não é a única que enfraquece o SNS, as aposentações e consequente não contratação de clínicos é também um outro aspeto destacado pelos profissionais entrevistados pela CNN Portugal.

Só entre janeiro e setembro deste ano, aposentaram-se 661 médicos do SNS, avança o Jornal de Notícias. Mas não é apenas a aposentação dos médicos que faz soar os alertas no setor público da saúde: até setembro deste ano reformaram-se 1.778 profissionais de saúde, um valor que, segundo o Público, é já superior ao do ano passado. A contratação de novos profissionais poderia ser a solução, mas a velha questão da falta de atratividade do SNS continua a ser o maior entrave, como lamenta Xavier Barreto.

Os hospitais têm autonomia para recrutar, mas não têm médicos para recrutar, porque o que o SNS oferece é muito pouco competitivo. Além disso, as contas já foram feitas sobre quantos médicos seriam necessários para fazer frente a estas recusas a mais horas extras, são cerca de quatro mil médicos, é impossível, não vamos contratar a curto prazo”, conclui o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH).

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