Castigos físicos a crianças podem ser crime? Quem pode fazer queixa? E o que pode acontecer à mãe que pôs a filha de três anos debaixo do chuveiro gelado?

16 jul 2023, 19:36
Birra (Foto: Pexels)

Os advogados explicam à CNN Portugal quando é que está em causa o crime de maus-tratos. Mesmo não sabendo muito sobre o caso divulgado nas redes sociais, existe uma certeza: "Não é admissível a aplicação de castigos físicos a crianças"

Uma mãe publicou nas redes sociais um vídeo em que contava, visivelmente feliz, que tinha descoberto o método ideal para lidar com as birras da sua filha de três anos: dar-lhe um banho de água fria. Aconteceu primeiro quando a filha fez uma birra na piscina e, depois, durante uma birra às 5:00 da manhã, a mãe colocou-a, com o pijama vestido, debaixo do chuveiro gelado. A menina parou imediatamente de chorar e de gritar. "Ela já percebeu o que é que lhe acontece se fizer birras. Quem ganhou?", perguntava a mãe. "Fui eu." Mas a vitória não durou muito tempo. As críticas começaram a chover nos comentários à publicação, o vídeo teve milhares de partilhas e a mãe, que até era aqui uma desconhecida, foi arrasada por toda a gente - o que a levou a eliminar as suas contas nas redes sociais.

A história não fica por aqui. Mais do que críticas à estratégia de parentalidade, há informações de que houve uma queixa criminal. É, portanto, preciso entender se estamos ou não perante um crime de maus tratos e o que é que pode acontecer a seguir.

"Esta menina está claramente em perigo às mãos desta senhora. Há que agir celeremente para proteger a criança e averiguar se esta mãe tem ou não competências parentais", afirma à CNN Portugal o advogado Nuno Cardoso Ribeiro, especialista em direito da família e da criança. "A situação desta mãe configura, claramente, um caso de maus tratos."

A advogada Joana Zagury, também especialista em direito da família e da criança, concorda. "Nós não temos o contexto da vida pessoal daquela mulher nem o contexto socio-cultural, mas o que vemos naquele vídeo é uma pessoa a vanglorariar-se daquilo que parecem maus tratos à criança. Precisamente porque não sabemos mais, temos que pedir ao Ministério Público que investigue", explica à CNN Portugal. 

A advogada Mia Negrão afirmou na página de Instagram dedicada à maternidade "Dido and Company": "A lei é clara - as crianças merecem protecção por serem seres naturalmente indefesos. O que está em causa são maus tratos físicos e psíquicos e castigos corporais cruéis. Sim, é cruel molhar uma criança com água fria às 5h da manhã por esta estar a pedir protecção e carinho. E é igualmente cruel submergir uma criança na piscina, até ao pescoço, quando a criança está a fazer uma birra - típica da imaturidade dos 3 anos - a pedir colo. (...) As crianças merecem respeito e merecem a nossa protecção. Cabe-nos defende-las mediante adultos sem noção."

Segundo os advogados ouvidos pela CNN Portugal, de acordo com a legislação portuguesa, este tipo de comportamento pode configurar um de três crimes:

  • Atentado à integridade física - Código Penal, artigo 143 - "Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa";
  • Violência doméstica - Código Penal, artigo 152 - "Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade (...) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos"; 
  • Maus tratos - Código Penal, artigo 152-A - "Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos".

Não sendo a lei específica no que é que pode ser considerado maus tratos - uma palmada? um empurrão? colocar a criança vestida debaixo de um chuveiro de água fria às 5:00 da manhã? - Nuno Cardoso Ribeiro não tem dúvidas: "Deverá entender-se que não é admissível a aplicação de castigos físicos a crianças".

"Todos os crimes são convenções, a sociedade chegou à conclusão que uma derminada conduta não é aceitável", explica Joana Zagury. "A lei não define exatamente o que é mau trato. Quando é que o castigo corporal ultrapassa a linha vermelha? Isso é o tribunal que decie. E existe já alguma jurisprudência que nos permite perceber o que é ou não aceitável."

Como sublinha Nuno Cardoso Ribeiro: "Alguns autores e decisões dos nossos tribunais admitem a existência de um dever de correção dos pais relativamente aos filhos, decorrente do seu poder-dever de educação, que poderá passar pela aplicação de castigos físicos moderados, desde que justificados tendo em conta as circunstâncias do caso. Outros autores e decisões dos nossos tribunais consideram que em caso algum poderão ser aplicados castigos físicos a crianças. E, na verdade, parece ser esta a melhor posição em face da revogação, em 1977, do art. 1884 do Código Civil que previa expressamente a aplicação de castigos moderados pelos pais aos filhos, e também da adesão de Portugal à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, das recomendações do Conselho da Europa, etc.".

O que podem os outros cidadãos fazer perante uma situação de maus tratos?

"O poder-dever de proteger as crianças impende sobre todos nós", afirma Nuno Cardoso Ribeiro. "Qualquer cidadão que tenha conhecimento de casos de maus tratos deverá denunciá-lo: às autoridades policiais, às Comissões de Protecção de Crianças e Jovens ou ao Ministério Público."

Muitas situações são denunciadas nos hospitais, quando as crianças têm danos corporais, ou nas escolas, quando as educadoras reparam que as crianças aparecem com nódoas negras ou têm outros sintomas (por exemplo, voltam a fazer xixi nas cuecas, estão deprimidas ou têm uma quebra inexplicável no rendimento escolar). Mas, na verdade, qualquer pessoa pode denunciar uma situação.

"A violência doméstica e os maus tratos são crimes públicos", lembra a advogada Joana Zagury. Por isso qualquer pessoa que assista a um destes crimes pode e deve interferir no imediato para pôr fim ao ato violento e pode também chamar a polícia. Se tiver conhecimento de uma situação de maus tratos pode fazer uma denúncia em qualquer esquadra da polícia ou através do portal da queixa eletrónica.

"É claro que as queixas não podem ser levianas, tem que haver bom senso", sublinha a advogada. "Tem de se encontrar o equilíbrio entre o estarmos constantemente a meter-nos na vida dos outros e o deixar que os pais maltratem os filhos sem fazermos nada."

O que acontece após uma queixa?

"Tipicamente, os maus tratos serão sancionados em sede de processo criminal de que será objeto o agressor. Já a proteção da criança deverá ser assegurada no âmbito de um processo de promoção e proteção, no âmbito do qual deverão ser adotadas as medidas convenientes para proteger a criança, afastando ou removendo a situação de perigo", explica o advogado Nuno Cardoso Ribeiro.

Isto significa, explica a advogada Joana Zagury, que, perante uma queixa, duas instituições - o Ministério Público (MP) e a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) - trabalham em simultâneo. "Os técnicos da CPCJ vão analisar a gravidade da situação, visitam a família e tentam perceber o seu contexto e se a mãe ou a criança precisam de apoio psicológico, se é necessário um apoio à parentalidade, ou se é algo mais grave e deve ser tomada uma medida mais forte", explica. Nos casos mais graves, a criança pode ser retirada da família. 

"É sempre subjetivo. Tem de ser analisado o contexto caso a caso", sublinha a advogada.

Nos casos em que existe claro risco de vida, o MP pode interferir imediamente. Na maioria dos casos, o MP espera que CPCJ emita um parecer antes de tomar uma decisão. 

"São conceitos que a justiça tem vindo a definir casuisticamente. Quando é que pode ser punido do ponto de vista judicial? São estas entidades que vão decidir." A negligência, por exemplo, é um conceito muito abstrato, onde cabe muita coisa - desde o não dar as vacinas às condições de habitabilidade ou à falta de atenção que se dá à criança, diz a advogada, sublinhando que, como sabemos, o trabalho das CPCJ também não está isento de falhas e ainda tem muito a melhorar. "Existe uma estigmatização da pobreza" que prejudica sempre os mais desfavorecidos.

No caso dos maus tratos as linhas são mais claras mas, ainda assim, há um certo grau de relativismo. "O MP pode olhar para isto e achar que não há matéria para intervir. Ou pode optar por uma medida mais leve. A probabilidade ser aplicada a pena de prisão de 1 a 5 anos num caso de maus tratos é muito baixa, só mesmo nos casos graves", afirma Joana Zagury. Há vários fatores agravantes (se é reincidente, por exemplo) e atenuantes (se o progenitor sofre de burnout, por exemplo, e precisa de tratamento, mais do que de prisão). 

Neste caso estamos perante um crime de maus tratos?

"Esta situação parece-me ser especialmente grave e a merecer imediata atenção por parte das autoridades", afirma o advogado Nuno Cardoso Ribeiro. "Por um lado, trata-se de um castigo muito violento que não poderá deixar de ter forte impacto na menina. Por outro, a senhora confessa que já recorreu a ele noutras ocasiões, o que demonstra que não se está perante um episódio irrefletido e imponderado, mas sim um procedimento premeditado. E, finalmente, a senhora parece estar convicta que age corretamente ao aplicar castigos com esta violência à filha, já que divulga publicamente o caso nas redes sociais."

Sendo assim, adianta o advogado, "o Ministério Público deverá abrir um processo de promoção e proteção, pois esta menina parece estar em perigo e há que apurar se esta senhora tem capacidades parentais adequadas. Paralelamente, deverá ser desencadeado um inquérito criminal para apurar a eventual responsabilidade criminal que ao caso caiba."

A advogada Joana Zagury concorda que o caso merece investigado. "Assim visto de fora, não me parece que a criança corra risco de vida. E é preciso sublinhar que não sabemos nada sobre aquela família nem sobre aquela mulher. Ela podia estar a exagerar, a ser teatral, para ter mais efeito nas redes sociais. Ou pode estar numa situação de burnout. Por exemplo, se a criança tinha terrores noturnos - o que é uma situação comum em crianças dos 2 aos 5 anos e com a qual é muito difícil de lidar - poderá haver privação do sono, que afeta o julgamento da mãe." Seja como for, é uma pessoa que precisa de ajuda para que não continue a prejudicar a sua filha. "A CPCJ pode, por exemplo, recomendar exercícios de capacitação parental", diz.

"É muito importante falarmos sobre este tema, abrirmos a discussão", diz a advogada. Se nada tivesse sido falado, outras pessoas poderiam ver aquele vídeo e senti-lo como uma validação para as suas próprias atitudes, "o que seria gravíssimo". Assim, é possível aproveitar o caso para chamar a atenção para algumas condutas menos próprias de alguns pais, explicar o que está errado e como podem melhorar.

Como atuar numa birra?

"As crianças pequenas não têm a maturidade emocional que lhes permita regular as emoções e os instintos mais básicos ao ponto de se comportarem como os adultos em situações que lhes são desafiantes. Esta maturidade desenvolve-se com o tempo e a idade, e não porque os pais lhes batam, gritem ou as humilhem", lê-se numa publicação recente do projeto "Nem mais uma palmada" desenvolvido em colaboração com o IAC - Instituto de Apoio à Criança.

A birra é "uma desregulação emocional que revela descontentamento ou frustração". Numa situação destas, o adulto tem de procurar acalmar-se para depois ajudar a criança a acalmar. O adulto deve mostrar disponibilidade e compreensão e, só depois, quando a crise tiver passado, deverá conversar com a criança sobre o que se passou. O adulto não deve bater na criança, submetê-la a posições incómodas ou tratamentos de choque, humilhá-la ou deixá-la em quartos fechados e/ou escuros como castigo.

Leia mais: Dar palmadas em crianças pode ser aceitável? "Nunca", dizem os especialistas

 

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