Hugo Machado esteve 17 anos no Sporting, mas saiu (com mágoa) sem jogar pela equipa principal
"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.
Hugo Machado, 39 anos, médio do Oriental
«Lisboeta, cresci ali na zona da Avenida Mouzinho de Albuquerque, na Penha de França. Ao pé do campo do Operário. O meu irmão mais velho, João Paulo, jogou federado, chegou a jogar no Benfica e no Portsmouth. O meu pai também jogou, embora não federado. O “bichinho” do futebol cresceu a jogar ali no bairro, com os amigos.
Morava ao pé do campo do Operário, e o meu irmão jogou lá, pelo que andava lá todas as semanas, inclusivamente como apanha-bolas. Um senhor que me conhecia desde miúdo desafiou-me uma vez para ir a dar toques do meio-campo até à baliza. Eu dei a volta ao campo a dar toques, ganhei uma sandes de courado e um sumo. Com seis anos não era normal fazer aquilo. Esse senhor quis levar-me ao Benfica, e o meu pai até era ferrenho, mas o meu irmão tinha sido dispensado, e então fui para o Sporting.
Estive lá dos 6 aos 23 anos. Apanhei grandes treinadores, como César Nascimento, Nuno Naré, Osvaldo Silva ou o Carvalho, que agora faleceu. Fiquei muito feliz quando entrei para o Sporting. Na altura não era qualquer um que conseguia. Hoje em dia os clubes têm imensas escolas e os miúdos podem dizer que jogam no Benfica ou no Sporting. Na altura não era assim. Eu até era benfiquista, mas depois de tantos anos ligado ao Sporting, mudei por completo. Até o meu pai passou a ser do Sporting. Acompanhou-me sempre, e estou muito grato por isso.
Joguei com o José Fonte, o Lourenço, Mangualde, Carlos Martins, Quaresma. Eu faço amizades com toda a gente, mas o colega com quem fiquei com maior ligação foi o Santamaria, que é meu compadre. Sou padrinho da filha dele.
Também era próximo do Beto Pimparel do Paulo Sérgio, que eram ali da minha zona. Íamos juntos para os treinos da equipa B. Um dia tivemos um acidente ali mesmo a chegar à Academia de Alcochete. Íamos a abrir e vinham os homens da relva em sentido contrário. A estrada é apertada para dois carros. Andámos com duas rodas no ar e acabámos em cima da cerca, com os bois ali ao lado. O carro deitava fumo do motor e nós saímos logo. Depois acenávamos aos carros que passavam, que eram os jogadores da equipa principal, e ninguém parava. Tivemos de ir a pé.
É curioso que joguei muitos anos fora e confundiam-me com o Quaresma. Eu fazia competições de trivelas com o Quaresma, nos treinos. Ainda hoje não uso o pé esquerdo, ainda vou parar ao hospital. Ele fez mais golos de trivela, mas eu faço muitas assistências.
Também apanhei o Cristiano Ronaldo, na equipa B do Sporting. Era um rapaz pacato. Não se adivinhava que ia ser aquilo em que se tornou, mas já se via que tinha muita qualidade. Era irreverente, chegava ali e era tudo dele. Não tinha medo. E depois, tal como se sabe, ia todas as noites para o ginásio puxar pelo cabedal.
O colega que mais me surpreendeu, pela carreira que fez, foi o Fonte. Provou que nunca é tarde para chegar lá acima. Foi abismal a evolução dele. Acreditou muito nele. Em sentido inverso posso falar do meu compadre, pois acredito que podia ter feito outra carreira. Chegou lá muito cedo. Talvez cedo de mais.
Eu não cheguei a jogar pela equipa principal do Sporting. Ainda hoje penso nisso, no porquê de nunca ter feito uma pré-época. Fiz alguns treinos, e até um torneio em França, mas nunca uma pré-época. Acho que fiz tudo para ter essa oportunidade. Foi uma mágoa. O meu sonho era ter jogado pela equipa principal do Sporting. Saí com essa mágoa, que ainda não consigo explicar. Falta de empenho não foi. Ainda hoje penso nisso, até a ver jogos do Sporting. Vejo certos jogadores que cegam facilmente lá acima, e eu penso que não era inferior. Mas é a vida. Ainda agora estive num jogo solidário realizado no campo do Real Massamá, e o Yannick Djaló dizia a toda a gente que só o Quaresma e o Ronaldo estavam acima de mim tecnicamente. Ele dizia que eu estava no top 3, e que também não entendia o motivo pelo qual nunca tinha aparecido essa oportunidade.
O Sá Pinto, capitão do Sporting, chegou ao pé de mim, um dia, e disse que, se fosse ele a mandar, era eu e mais dez. Isso é um motivo de orgulho. Fico a pensar nisso, mas também não me posso queixar. Conheço outros jogadores que tinham qualidade e nem conseguiram fazer a transição para o futebol profissional. Desapareceram. Eu fiz uma boa carreira. Podia ter sido melhor? Podia, mas não me posso queixar.
Em 2004/05 fui emprestado ao Estrela da Amadora. Apanhei umas «trutas»: Jordão, Paulo Fonseca, Rui Borges… Mas eram «trutas» com humildade, que ajudavam os mais novos. O Paulo Fonseca tinha muita qualidade, era uma pessoa fantástica.
Depois fui emprestado ao Barreirense. Foi o Rui Bento que me levou para lá, já me conhecia do Sporting.
Em 2006 fui para Chipre. As coisas não estavam fáceis, as portas estavam a fechar-se. Ninguém me pegava, e a diferença a nível monetário era grande. Acabei por arrancar, através do João Paiva, que tinha sido meu colega no Sporting. Foi uma experiência fantástica. Comecei por jogar no Apollon Limassol, depois fiz dois anos fantásticos no Olympiakos Nicosia, e a terceira época, no Alki, já não correu de feição. Isto em termos financeiros, porque ao fim de dois meses já não estávamos a receber. O clube acabou por fechar portas e perdi o dinheiro. No Olympiakos também tive salários em atraso, mas aquilo acabou na FIFA e depois recebi.
Em 2009/10 estive no Standard Sumgayit, do Azerbeijão. Foi uma aventura engraçada, com um frio de rachar e neve. Foi um bocado um choque cultural. O preço de aluguer de uma casa era 400 dólares, que era muito. Tive de juntar-me a um colega moldavo e outro ucraniano. A convivência não era fácil, e a casa só tinha dois quartos. O ucraniano, que ficou com a sala, só queria vodka. O dinheiro ia todo para aquilo. A dada altura começou a pedir-me dinheiro emprestado, e às tantas eu já tinha dado 700 euros. Nessa altura disse-lhe que não emprestava mais. Um dia chego a casa e tinha lá umas senhoras, prostitutas contratadas pelo ucraniano. Duas a cozinhar, outra na casa de banho. Peguei nas chaves e tranquei a porta. Disse ao ucraniano que só abria a porta quando estivesse tudo limpo.
Em 2020 voltei a Portugal para jogar na Naval. Tinha dois sonhos: representar o Sporting, que não consegui, e jogar na Liga. A Naval permitiu-me isso. Um amigo enviou o meu DVD para os clubes todos, e acho que foi o Augusto Inácio que respondeu, na altura. Já me conhecia do Sporting e mostrou interesse. Depois acabou por não ser ele a iniciar a época, mas cumpri esse sonho de jogar na Liga.
Seguiu-se o Irão, onde representei Zob Ahan e Sanat Naft. Não estava com ideias de ir para lá, até porque Irão e Iraque associamos logo a bombas. Mas não foi nada disso. Mais uma vez tive de treinar à experiência. Só na India é que não foi assim. Tinha acabado contrato com a Naval e surgiu essa oportunidade no Irão, através do empresário Paulo Rodrigues. Fui treinar a um estágio na Turquia e gostaram de mim.
Eles têm o vício de matar uma cabra antes de entrarmos no autocarro. Cai ali o sangue à porta do autocarro, eles metem lá o dedo e depois passam na testa. Eu disse logo que não queria ver aquilo, só entrei depois. Fez-me impressão. Mas é um povo fantástico, muito humilde. Não foi nada do que esperava.
Em 2013/14 assinei pelo Churchill Brothers, da India. Assinei por três anos, estive lá três ou quatro meses. Os resultados não estavam a ser bons e o treinador que me tinha levado acabou por sair. Fui para lá com o Amoreirinha. O avião aterrou às 20 horas e disseram-nos que estaria um táxi à nossa espera. Apareceu uma hora e tal depois, e a viagem até ao hotel… minha nossa! Íamos sempre a rezar. Só víamos pântano, a circular por uma estrada estreita, onde só cabia um carro e eles metiam dois. As rodas do lado de fora iam na relva, e eles sempre a acelerar.
O presidente era meio maluco, pelo que vi logo que aquilo não ia durar muito. O treinador usava um turbante, e quando começava a chover ia refugiar-se no banco de suplentes. Ou então levava o guarda-chuva para o campo, para não molhar o turbante. Ao fim de algum tempo saiu, devido aos resultados, e o sucessor disse que não contava comigo.
Fui então para a Grécia, onde representei Kallithea, AO Chania, OFI e Olympiakos Volos. Lá os adeptos são fanáticos, seja qual for o escalão. Têm muitos pubs abertos, e em cada canto há uma televisão a dar jogos. Por vezes ia lá para ver um Real-Barcelona, ou algo assim, mas só uma televisão é que dava esse jogo. As outras nove estavam no Olympiakos-Panathinaikos de basquetebol. São tão fanáticos que o único jogo que tem adeptos visitantes nas bancadas é a final da taça.
Em 2017 decidi voltar a Portugal. Queria estar mais perto da família, até porque o dinheiro já não estava a compensar. Estive quase sempre sozinho no estrangeiro. Surgiu a oportunidade de representar um grande clube, que é o oriental. Criei amizade com um senhor que é o José Ferreira, adepto fanático do Oriental. Eu tinha outro clube que até me pagava mais, mas esse senhor disse que me dava mais 200 euros. Acabei por assinar e ele nunca me falhou, e nem dirigente do clube era.
Depois estive no Real, Loures, Cova da Piedade e agora novamente no Oriental. O meu filho joga nos juniores. Já tive o privilégio de treinar contra ele e deu-me uma mocada. Avisou-me antes e deu-me mesmo. É uma sensação fantástica passar por isto com ele, poder ensinar-lhe algumas coisas. Digo-lhe que é preciso trabalhar muito, ter muita humildade. Costumo pegar no lema do Sporting: esforço, dedicação e devoção, para depois aparecer a glória.
Ainda não penso em acabar a carreira, mas seria um final em grande se tivesse a oportunidade de jogar com o meu filho. Até hoje concretizei quase todos os sonhos, menos aquele de jogar pelo Sporting. Se pudesse jogar com ele já este ano, seria fantástico, embora não esteja a pensar na reforma.»
[na imagem de capa do artigo aparece Hugo Machado com o filho, que também se chama Hugo]