Mais de meio século depois, morte de Pablo Neruda volta a ser investigada. Foi o cancro ou um veneno encontrado no molar do poeta?

21 fev, 16:58
O escritor Pablo Neruda (Arquivo AP)

Tribunal do Chile acaba de ordenar a reabertura do inquérito à morte do Prémio Nobel da Literatura, em setembro de 1973, duas semanas após o golpe militar de Augusto Pinochet

Até à sua morte, em junho do ano passado, Manuel Araya manteve sempre que Pablo Neruda foi envenenado. Durante mais de uma década, o motorista e assistente pessoal do famoso escritor chileno – um dos últimos a vê-lo com vida – alegou que Neruda foi assassinado com recurso a uma injeção letal misteriosa administrada por um agente da polícia política que se infiltrou na Clínica Santa Maria, em Santiago do Chile, onde o poeta tinha sido internado. 

Isto aconteceu em setembro de 1973, duas semanas depois de Salvador Allende ter sido deposto pelo general e ditador Augusto Pinochet. Oficialmente, o regime ditou que Neruda morreu de cancro da próstata, um dia antes do anunciado autoexílio do Nobel da Literatura para o México. O seu motorista garantia, pelo contrário, que não foi a doença que o matou.

As alegações levaram à abertura de uma investigação às causas da morte de Pablo Neruda, a cargo de três equipas de especialistas forenses chilenos e internacionais. Antes disso, uma outra equipa tinha atestado a morte por cancro, como declarado na sua certidão de óbito, isto até 2017, quando um dos painéis de especialistas detetou a presença de clostridium botulinum num dente molar do poeta, a bactéria responsável pelo botulismo que é geralmente encontrada na terra e que pode afetar o sistema nervoso e, no limite, provar-se fatal.

As conclusões galvanizaram a família do poeta, com o sobrinho de Neruda a interpor um processo em tribunal para forçar uma investigação formal ao caso, alegando a existência de indícios de envenenamento com base na descoberta da equipa de investigadores do Chile, do Canadá e da Dinamarca. Em dezembro, seis meses após a morte de Araya, uma juíza rejeitou o pedido. Como na primeira instância, Rodolfo Reyes, o sobrinho, contou com o apoio do Partido Comunista Chileno (PCC), no qual Neruda militou durante a sua juventude, para avançar com um recurso à sentença – que acaba de ser aprovado em tribunal.

Numa decisão unânime publicada na segunda-feira à noite, o Tribunal de Recurso de Santiago do Chile ditou que, “atendendo aos antecedentes e por não se encontrar esgotada a investigação, existindo diligências precisas que poderão conduzir ao esclarecimento dos factos, [...] ordena-se a reabertura do processo”. 

“A verdade tarda em chegar, mas está a surgir pouco a pouco”, disse Reyes em reação ao anúncio, em entrevista à agência Efe. “Esta decisão é muito importante, porque ratifica as nossas denúncias e os nossos anteriores argumentos de que, no contexto em que ocorreu a morte, houve intervenção do aparato do terrorismo de Estado da ditadura militar”, acrescentou também à Efe Juan Andrés Lagos, responsável pelas relações políticas do PCC.

A sentença é o último de uma série de volte faces num dos maiores debates públicos do Chile pós-golpe. Sob as novas ordens do tribunal de recurso, investigadores vão analisar a caligrafia no certificado de morte do poeta, fazer uma meta análise aos resultados da investigação transnacional e obter acesso a documentos históricos relacionados com o caso. Um especialista em clostridium botulinum também vai participar no novo inquérito.

Mais conhecido pelos seus poemas de amor, Pablo Neruda foi laureado com inúmeros prémios de literatura, incluindo o Prémio Nobel, em 1971. Amigo de Allende, que perante o golpe de Pinochet decidiu suicidar-se para não se render aos militares, Neruda planeou exilar-se no México, a partir de onde pretendia liderar a resistência à ditadura, que até 1990 causou mais de 3 mil mortos ou desaparecidos, torturou milhares de presos políticos e forçou 200 mil chilenos a fugir do país. 

Um dia antes da sua planeada partida, contudo, o autor de “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada” foi transportado de ambulância para um hospital da capital chilena, onde acabaria por morrer no dia seguinte, 23 de setembro de 1973. As suspeitas de que a ditadura teve mão na sua morte perduraram ao longo de décadas. O seu corpo foi exumado em 2013 para determinar a causa do óbito, mas os primeiros testes não demonstraram a presença de quaisquer agentes tóxicos ou venenos nos restos ósseos.

A família de Neruda e os comunistas exigiram um inquérito mais aprofundado, com o governo chileno a assumir, em 2015, a “alta probabilidade de um terceiro envolvido” na morte – teoria entretanto fundamentada pelas análises de 2017. "Desde 2017 que Neruda vocifera que o seu corpo tem clostridium botulinum e que chegou por intervenção de terceiros", sublinhava ontem a advogada da família Neruda, Elizabeth Flores. Mais de meio século depois da sua morte, o caso volta a estar sob os holofotes, enquanto os restos mortais do escritor chileno repousam no jardim da sua casa, com vista para o Pacífico, onde voltaram a ser enterrados depois das primeiras investigações.

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