Basta o número de uma matrícula para se obter a morada de alguém (até do Presidente da República). "Quem tem más intenções pode aproveitar esta lacuna para fins pouco dignos"

10 jul 2023, 07:00
Trânsito em Lisboa (Foto Horacio Villalobos#Corbis_Corbis via Getty Images) 3

Numa era em que a proteção de dados está tão presente na esfera pública, ainda há entidades nas quais é possível obter a morada pessoal de um cidadão, seja ele qual for. Não é ilegal, mas há riscos

Certamente já experienciou ou teve conhecimento de uma situação de acidente e fuga na qual a pessoa lesada procurou registar rapidamente a matrícula do condutor responsável. A verdade é que descobrir os dados do detentor de um veículo através de uma matrícula é tão ou mais fácil do que ir ao supermercado ou efetuar uma compra online, uma vez que nem implica sair de casa.

Para o efeito, o que se pretende é uma certidão de registo automóvel. A identificação do requerente não é solicitada e não são necessários mais de 10 euros para a obtenção do nome completo e morada do proprietário atual, juntamente com a marca, modelo e a data em que a propriedade foi registada.

No Regulamento do Registo de Automóveis (Decreto n.º 55/75, de 12 de fevereiro, art.º 53.º) lê-se que “qualquer pessoa pode obter certidões ou cópias não certificadas dos atos de registo e dos documentos arquivados, devendo o pedido de certidão conter a identificação do requerente, a indicação da matrícula do veículo, bem como a informação acerca dos atos de registo ou dos documentos arquivados cuja certificação se quer”.

De facto, pode ser adquirida presencialmente – num balcão de atendimento do Instituto dos Registos e do Notariado – pela quantia de 5 euros ou via online – acedendo ao Portal do Cidadão –, em que valor cresce para os 10 euros. O processo leva apenas alguns minutos e exclui totalmente a apresentação de um comprovativo que sustente as motivações do pedido ou de um documento de identificação.

Há, portanto, riscos inerentes a estes atos, sobretudo quando os proprietários são figuras de Estado - ou, por exemplo, vítimas de violência doméstica. A CNN Portugal confirmou que a cedência de uma certidão de registo automóvel não é discriminada pelo estatuto do titular dos dados pessoais, nem do requerente dos mesmos. Aliás, através da matrícula utilizada a título pessoal pelo Presidente da República foi possível aceder rapidamente à sua morada, sem qualquer justificação. O mesmo se verificou recorrendo a matrículas de ministros.

Certidão de registo automóvel de Marcelo Rebelo de Sousa, obtida presencialmente (Imagem: DR)
Obtenção de uma certidão de registo automóvel, via online (Imagem: DR)

Num período em que a proteção de dados é um dos temas que mais se encontram na ordem do dia, que razões estão por trás desta permissividade no que concerne aos dados dos proprietários de um automóvel?

Ora, podemos começar pelo motivo acima mencionado: os acidentes rodoviários. Se uma das partes envolvidas escapar e a matrícula for anotada, esta deve ser entregue às autoridades para que o condutor seja identificado e se proceda posteriormente ao tratamento do caso.

Mas na compra de um carro em segunda mão, as informações disponibilizadas também podem ser úteis para descobrir se este foi roubado ou para perceber se o conta-quilómetros sofreu alguma alteração. Basta aceder ao número de proprietários que teve. Este e outros dados, como eventuais penhoras e reservas de propriedade, já implicam o pagamento de 7 euros.

“As certidões, informações ou cópias não certificadas do registo automóvel, que têm sempre como referência a matrícula, reproduzem os elementos característicos do veículo e os dados pessoais devidamente recolhidos dos formulários e dos documentos que servem de base ao registo”, explica a porta-voz do gabinete da Ministra da Justiça. “A publicidade destes dados tem por finalidade a segurança do comércio jurídico.”

Ainda assim, será estritamente necessária a cedência da morada a todo e qualquer cidadão? Há quem olhe para esta situação de outra forma.

Portugal vs. restante Europa

No Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD), disponibilizado no site da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, o artigo 5.º do capítulo ll - "Princípios" - diz que os dados pessoais têm de ser "objeto de um tratamento lícito, leal e transparente em relação ao titular", que garanta "a sua segurança, incluindo a proteção contra o seu tratamento não autorizado ou ilícito (...), adotando as medidas técnicas ou organizativas adequadas". Devem ainda ser "adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para a qual são tratados". 

No artigo 6.º - "Licitude do tratamento" - compreende-se que este só é lícito "se for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou terceiros, exceto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular". 

“Nem sequer diz na lei que é preciso dar a morada, embora seja uma prática corrente”, observa Elsa Veloso, advogada e especialista na área da Proteção de Dados. “Devia aplicar-se o RGPD e a morada seria retirada. Nos casos em que se mostrasse necessário, aí sim, a morada seria dada, mas a um elemento da polícia, a um órgão administrativo ou a uma entidade judicial.”

É, aliás, o que acontece noutros países, como Itália e França. No primeiro caso, o documento que identifica o proprietário de um automóvel contém apenas o seu nome completo, bem como os dos anteriores titulares. Os restantes dados só podem ser acedidos por entidades judiciais, polícia ou até mesmo seguradoras, quando justificado e aplicável.

Já no caso francês, o registo da titularidade dos veículos não é público. Unicamente a polícia e as seguradoras podem ter acesso à consulta dos dados em questão, em determinadas situações. Por exemplo, e como referido anteriormente, se um condutor bater num carro e fugir, a ocorrência deve ser reportada à seguradora ou à polícia, e apenas estas entidades podem consultar os dados associados à viatura - designadamente o nome do proprietário e, por conseguinte, a sua morada para início do processo de averiguação.

“Tirando essas situações, não vemos necessidade – achando que é excessiva a informação – de darmos a informação da morada. Pode até comprometer a segurança física de alguém”, alerta Elsa Velosa, usando como exemplo um processo de divórcio litigioso: “Uma das partes tem de comprar um carro novo, regista-o com a nova morada e fica imediatamente numa situação de vulnerabilidade”.

Na realidade, verificamos que, em Portugal, pedir e consultar o registo criminal de um determinado indivíduo implica um processo substancialmente mais burocratizado, contrariamente aos restantes. Ora, além de apenas ser possível solicitá-lo presencialmente, é necessária uma autorização do próprio titular dos dados, mencionando os documentos de identificação de ambas as partes. Em alternativa, pode ser apresentada uma cópia certificada, assinada pelo próprio titular, onde deve constar que autoriza a obtenção do seu certificado de registo criminal.

Um caso de violência

No que respeita a certidão de registo automóvel, a APAV não tem conhecimento de vítimas cuja morada tenha sido utilizada para fins abusivos. Por outro lado, há sim registo de um caso que envolve a Autoridade Tributária. O processo é idêntico. O problema é que esta entidade estaria a facilitar a morada de uma vítima ao seu agressor.

“Não era uma situação de conjugalidade, era uma situação entre pai e filha. Ela era vítima de violência e ele não sabia do seu paradeiro”, relata Frederico Marques, assessor técnico da direção da APAV. “Tinham um imóvel em copropriedade. Bastaria que o agressor pedisse, por exemplo, uma certidão da caderneta predial do imóvel, com a identificação dos proprietários, que aparecia ali o domicílio fiscal.”

À semelhança da certidão do registo automóvel, qualquer cidadão pode solicitar uma certidão de registo predial, por 20 euros pessoalmente ou 15 euros pela internet, acedendo ao site do Registo Predial Online.

Este caso específico requer, contudo, a indicação do distrito, concelho e freguesia do imóvel e o número de descrição do mesmo, bem como a letra ou o número da habitação ou o período durante o qual a propriedade pertence a quem o detém. Este documento tem a validade de seis meses.

Uma das precauções tomadas pela APAV para garantir a segurança da vítima foi a omissão da morada no registo, solicitada junto da Autoridade Tributária. “Numa primeira fase houve uma recusa, mas depois, através de uma ação judicial que ajudámos a intentar, acabou por se conseguir ordenar que omitissem essa informação”, conta à CNN Portugal.

De acordo com Frederico Marques, o processo foi relativamente rápido, desde o apoio do Ministério Público à decisão favorável do juiz. “Acredito que não tenha tardado muito até que a Autoridade Tributária garantisse que a informação estava anonimizada”, conclui.  

Em todo o caso, declara que o percurso tem sido sempre feito no sentido de garantir uma proteção das vítimas de violência doméstica cada vez mais reforçada. Com efeito, há já alguns anos que é possível uma vítima de crime indicar uma morada diferente daquela em que reside, se assim pretender. “Podem dar a morada do trabalho, mas também podem dar a morada dos gabinetes de apoio à vítima da APAV”, explica o representante da associação. “Ou seja, nós recebemos as notificações e assumimos o compromisso de as encaminhar para a vítima porque sabemos onde ela está. O que não interessa é que, no determinado processo, se saiba.”

Isto aplica-se somente a processos judiciais. Se a vítima possuir filhos menores à sua guarda, o tribunal tem acesso à informação real e exata do seu paradeiro para envio de notificações. Ainda assim, esses dados são mantidos num envelope fechado, apenas cedido ao magistrado que titula o caso em questão. Já em relação às vítimas acolhidas em casas-abrigo, a localização destes domicílios é invariavelmente confidencial.

Em suma, “nos processos judiciais é possível proteger a verdadeira morada da vítima”, mas no que diz respeito a outras entidades, como o IRN e a Autoridade Tributária, “há mais dificuldade em fazê-lo, por força de outras obrigações legais”, esclarece Frederico Marques. “Essas obrigações cedem perante um interesse preponderante”, neste caso o da proteção da pessoa em risco, mas “é difícil haver algum tipo de operacionalização automática que garanta, sem qualquer espécie de iniciativa da vítima, a anonimização de dados”. Por isso, “sim, efetivamente pode ser um problema”.

Cidadãos em risco

Contactada pela CNN Portugal, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) declara que o registo automóvel, assim como outros registos, dependem do IRN, tutelado pelo Ministério da Justiça. “Nos termos da lei, o presidente do IRN é o responsável pelo tratamento de dados de registo, incluindo o registo automóvel, pelo que estará em melhores condições para explicar o seu funcionamento e as razões para estes registos serem (parcialmente) públicos”, junta a consultora-coordenadora, Clara Guerra, num comunicado.

Já a porta-voz do gabinete da ministra da Justiça escreve apenas que a “a certidão do registo automóvel contém os dados fornecidos aquando do registo do veículo, constantes nos documentos que lhe tenham servido de base, e de acordo com o estipulado na lei, nos quais se incluem o nome e a residência habitual do proprietário, entre outros”. Sublinha que “a morada, à semelhança do nome, é um dado pessoal que é recolhido aquando do registo do veículo, por indicação do interessado, e faz parte da informação que é considerada pública por lei”.

Em relação a queixas motivadas por este assunto, garante que “a disponibilização destes dados não tem originado contestação (apenas foram recebidas duas reclamações neste âmbito em 2022 e outra no ano em curso) e que não se verificaram situações de omissão de morada por motivo de segurança”.

“Por um lado, temos o Estado a proteger os direitos das vítimas e os dados pessoais, por outro, temos o Estado, em nome da transição digital e da facilitação do acesso dos cidadãos aos serviços públicos, a descurar uma coisa que é tão ou mais importante. É completamente contraditório”, analisa Mestre Rute Serra, do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT).

A especialista considera “no mínimo estranho” que, numa altura em que o tema da proteção de dados está inegavelmente na ordem do dia, entidades como o IRN não tenham ponderado sobre a possibilidade de estarem a colocar cidadãos em risco, facultando estes dados de forma tão simplificada. “Poucos se apercebem disso porque não têm más intenções, mas quem as tem pode de facto aproveitar esta lacuna para fins pouco dignos”, alerta.

A especialista apela ainda às entidades públicas, entre elas a CNPD, que cumpram “a obrigação de informar o cidadão”. “Eles têm de se pronunciar sobre o assunto. Ou de modo próprio ou instigados por alguém”, defende.

A advogada Elsa Veloso acredita que esta inação se deve “à enorme resistência” das instituições face à inovação, mudança ou implementação de novos procedimentos. “Elas gostam de repetir comportamentos”, observa. “Alterá-los para melhor, para a segurança das pessoas e para o cumprimento do princípio do primado do direito europeu, é algo que as instituições em Portugal têm mostrado bastante dificuldade. Por isso é que somos um país um bocadinho atrasado, somos sempre os últimos a implementar.”

Para Rute Serra, mais importante do que o atraso na transposição da legislação, é muitas vezes a qualidade. “Às vezes há pouco pensamento, deixamos passar os prazos-limite das transposições, sob pena de sanção ao Estado português”, explica. “Estamos a aproximar-nos desses prazos-limite para transpor para a ordem jurídica nacional as diretivas europeias e depois estamos ali a legislar um bocado em cima do joelho. Isso nunca dá bom resultado porque as políticas públicas devem ser planeadas - e às vezes saltamos esse passo.”

Crime e Justiça

Mais Crime e Justiça

Patrocinados