É uma técnica cara que ainda não caiu nas graças de todos os reguladores (sobretudo europeus), mas há quem defenda que o futuro - ou parte dele - passe por comer animais que nascem em laboratórios, sem sofrimento e morte à mistura. A carne de cultivo chegou à alta cozinha dos Estados Unidos, mas por cá o caminho ainda é longo
Comer carne sem matar ou causar sofrimento a animais. E, com sorte, sem pesar ainda mais na fatura ambiental, já ela elevada e em dívida constante. É em laboratórios com o ambiente controlado e com toda uma logística que ainda custa milhões que nascem pedaços de carne criados in vitro - a chamada carne de laboratório.
O primeiro hambúrguer-proveta nasceu em 2013, mas dez anos depois a carne de cultivo continua a dividir opiniões e é muito a conta-gotas que começa a chegar aos restaurantes.
Nos Estados Unidos, por exemplo, só em junho é que duas empresas - a Upside Foods e a Good Meat - foram autorizadas a vender carne de frango criada com células animais. E desde há mês que o restaurante com três estrelas Michelin Bar Crenn, em São Francisco, já coloca esta carne na ementa. A carne de frango feita em laboratório está incluída num menu de degustação de seis pratos. Com um custo a rondar os 150 euros por pessoa, um dos pratos é composto por cerca de 30 gramas de frango in vitro, explica o VOX.
Mas esta é já uma realidade em Singapura desde 2020. Aliás, durante a COP27, o Governo de Singapura colocou a carne cultivada no menu, de modo a trazer para o debate as vantagens deste tipo de produção face à convencional. O governo da Índia está a financiar estudos sobre carnes criadas em laboratório.
Na Europa, o tema está ainda em debate - a Comissão Europeia diz que o continente está preparado para acolher uma nova forma de produção alimentar, mas ainda está longe de datas, financiamentos e regras. Mas há quem já tenha colocado um travão ao assunto: em Itália, o governo de Giorgia Meloni deu luz verde a um projeto de lei que pretende proibir a carne produzida em laboratório e outros alimentos sintéticos. O objetivo, conta a Reuters, é preservar a herança alimentar italiana e proteger a saúde.
Vai a Europa alinhar neste avanço alimentar? “Essa é pergunta de um milhão de euros”, diz Miguel Mourato, professor auxiliar com agregação no Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa.
Na Europa é tudo muito mais complicado, até mesmo para os organismos geneticamente modificados, depende muito das lideranças europeias. Mas se for um processo aceite nos outros países do mundo, vai haver uma grande pressão, sobretudo pelas vantagens ambientais, para que seja aceite na Europa”, crê Miguel Mourato.
Como se cria carne em laboratório?
“Há vários processos, mas a técnica mais utilizada é pegar numa célula e reproduzi-la num ambiente artificial, tentar simular o que se passa no organismo vivo, onde as células se reproduzem e o crescem, dando origem uma peça muito parecida com o músculo do animal”, explica Miguel Mourato.
Trocando por miúdos, primeiro dá-se o chamado input, que é quando se retira células de um animal vivo ou de um óvulo fecundado. Depois, dá-se início à fase da proliferação, em que as células crescem em biorreactores - sendo colocadas em tanques de aço onde são alimentadas com nutrientes idênticos aos que os animais comeriam.
A terceira fase é a diferenciação das células e a maturação das mesmas, dois processos que são induzidos com a mudança das condições de cultura. A quarta fase é aquela em que nasce a 'carne' - células diferenciadas são colhidas, preparadas e embaladas, como explica o 2022 State of Industry Report - Cultivated meat and seafood.
E, sim, “em teoria”, diz o investigador, este processo pode ser aplicado em carne de mamíferos, aves ou peixes.
Já o tempo entre a célula se transformar em carne é variável, diz-nos Miguel Mourato. “Depende muito dos processos, mas implica sempre deixar as células reproduzirem-se, formarem uma massa com uma quantidade razoável para depois ser transformada num produto”, explica.
Nutricionalmente falando: a carne de cultivo é igual?
“Não há razão para não ser idêntica, no fundo o que estamos a fazer é que as células cresçam, mas em vez de ser no animal são num biorreactor”, diz o docente da Universidade de Lisboa, destacando que “as características” da carne de cultivo “podem ser as mesmas” da carne dita natural. “O desafio é conseguir a textura e o sabor idênticos à carne, mas a composição nutricional é semelhante”, continua, destacando que, no caso da produção laboratorial, há ainda a vantagem de não haver “problemas de contaminantes”. “Aqui há uma grande vantagem”, atira.
E é isso mesmo o que se lê num estudo publicado em 2022 na revista Environmental Advances diz que “a carne produzida em laboratório é mais sustentável e segura de consumir do que a carne convencional”, apontando a legislação como um dos entraves à sua produção e consumo.
Também a investigação O Mito da Carne Cultivada: uma revisão, publicado em 2020 na revista Frontiers in Nutrition defende o mesmo: “ao contrário da carne convencional, as células musculares cultivadas podem ser mais seguras, sem quaisquer órgãos digestivos adjacentes”. No entanto, o mesmo estudo aponta para um aspeto negativo: “com esse alto nível de multiplicação celular, é provável que haja alguma desregulação, como acontece nas células cancerígenas”, embora esta questão tenha de ser analisada com maior profundidade noutros estudos.
No entanto, e como as técnicas de produção variam e este é ainda um processo em análise e desenvolvimento - não esquecer que a primeira carne em laboratório nasceu apenas há dez anos -, nem sempre o resultado é o desejado, pelo menos à primeira. Um artigo do cientista Young-Hwa Hwang analisou as características nutricionais e o sabor carne de frango e vaca criada em laboratório e encontrou diferenças substanciais na composição de aminoácidos quando comparada com a carne ‘natural’, “destacando a necessidade de otimização da composição de meios e protocolos de diferenciação/maturação para carne cultivada”, lê-se no 2022 State of Industry Report - Cultivated meat and seafood.
Sobre este ponto, Miguel Mourato diz que é tudo uma questão de se ir testando e aprimorando o processo, defendendo que as carnes em laboratório “podem ser tornadas melhores, como estamos a manipular o produto, podemos construir com determinadas características”, incluindo nutricionais, tornando a proteína, por exemplo, mais completa a nível de micronutrientes (vitaminas e minerais).
Impacto ambiental: a grande dúvida do sucesso laboratorial
É a carne de cultivo mais amiga do ambiente do que a produção convencional de animais, seja gado ou aviário? Ora, esta é a derradeira questão e nem mesmo a ciência tem conseguido encontrar um consenso: há quem acredite que, sim, será menos impactante para o ambiente, mas não agora. Está no futuro a resposta? Sim.
Para Miguel Mourato, a carne de cultivo tem várias vantagens ambientais, sendo a possibilidade de reduzir a produção e desperdício de animais para consumo uma delas.
“A quantidade de animais mortos em todo o mundo para consumo alimentar é surreal”, diz, defendendo que, se a carne de cultivo conseguir reduzir estas mortes, isto poderá até chamar a atenção de novos consumidores: “há pessoas que são vegan por causa da questão do bem-estar animal” e, diz, “se conseguirmos substituir parcialmente” o consumo de carne de animais por esta carne de laboratório, podem ganhar-se novos ‘clientes’.
Mas o especialista destaca outras vantagens ambientais: “terá vantagens do ponto de vista ambiental por necessitar de menos área de solo” e por “não haver gases com efeito de estufa”. Mas nem tudo é tão verde quanto parece e o próprio docente destaca que o impacto no ambiente apenas será amigo quando forem usadas energias renováveis.
"A energia necessária para ‘alimentar’ os reatores que protegem as células à medida que crescem envolve ainda o uso de combustíveis fósseis”, podendo, no entanto, as energias renováveis ser uma realidade num futuro mais ou menos próximo.
E essa é também a visão apresentada por um estudo que projeta o cultivo de carne em laboratório em 2030. “A carne de cultivo tem o potencial de ter um impacto ambiental menor do que as ambiciosas produções convencionais de carne, para a maioria dos indicadores ambientais, mais claramente no que diz respeito ao uso da terra agrícola, poluição do ar e emissões relacionadas ao nitrogénio”, segundo o referido estudo.
Mas a própria técnica em si é um dos pontos negativos a nível ambiental apontados pelo estudo da Universidade da Califórnia, ainda a aguardar publicação por não ter sido revisto pelos pares, e que tem estado nas bocas do mundo.
A investigação defende que o impacto ambiental da carne cultivada em laboratório provavelmente será maior do que a produção convencional de carne bovina, sobretudo quando a produção não é ainda massificada.
Segundo os investigadores, o facto de ser necessário usar meios de crescimento altamente refinados ou purificados para ajudar as células animais a multiplicarem-se faz com que o processo de cultivo se assemelhe ao da produção de medicamentos, uma abordagem que segundo os autores do estudo requer “mais recursos, o que aumenta o potencial de aquecimento global”. Na prática, e depois de analisarem as emissões conhecidas de CO2 do processo de purificação em laboratório, os cientistas concluíram que o potencial de aquecimento global da carne cultivada é entre quatro e possivelmente 25 vezes maior do que o da carne bovina produzida convencionalmente.
Segundo o MIT, “as emissões de gases de efeito estufa dos animais que comemos (principalmente vacas) representam quase 15% do total global, uma fração que deve aumentar nas próximas décadas”. E há contas que ajudam a perceber o impacto: “um quilo de carne bovina pode representar emissões equivalentes a 100 quilos de dióxido de carbono.
“Tem de se ir atualizando o processo com o tempo”, defende Miguel Mourato, que se mantém otimista: “é uma técnica que vai ter futuro”.
E custos?
O primeiro hambúrguer-proveta do mundo, feito com células estaminais de vaca, custou nada mais, nada menos do que 298 mil euros - e falamos apenas de 140 gramas de ‘carne’. E agora?
“Neste momento é muito caro”, lamenta Miguel Mourato, mas apressa-se a dizer que “o custo tem estado a baixar” e a tendência é para que continue a baixar, sobretudo se os reguladores aceitarem a comercialização deste tipo de alimentos.
“Estou convencido que é uma técnica que vai ter futuro, e se for aceite pelos reguladores, o custo vai baixar, ainda está a ser feita numa escala muito pequena, mas se produzir a escala maior, pode ser mais económica e competir mesmo com a carne normal”, adianta o professor auxiliar com agregação no Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa.
“Nos Estados Unidos já fazem experiências com chefs de restaurantes com estrela Michelin e mesmo assim estão a perder dinheiro. Por enquanto, não é vantajoso, o primeiro [produto] que surge é sempre mais caro, mas é uma técnica que tem futuro, mas nunca conseguimos prever o futuro, mas creio que se vai conseguir produzir a preços mais vantajosos, até porque há questão do consumo de energia”, que tende a ser menor com a implementação das renováveis.
Segundo a CE Delft, estima-se que até 2030 os custos de produção da carne cultivada possam cair para apenas 5,73 euros por quilo, mas, segundo a organização não governamental Good Food Institute Europe, “para conseguir isso, os setores público e privado precisarão investir quantias significativas em pesquisas e desenvolvimento”.
Mas o mais certo é que estes valores tão cedo não aconteçam. O estudo Quanto custará a produção em larga escala de carne cultivada?, publicado este ano na revista Journal of Agriculture and Food Research, defende que o custo de produção da carne cultivada em células “é projetado com otimismo para ser tão baixo quanto 63 dólares por quilo”, cerca de 56 euros. E quanto é que isso poderá custar ao consumidor? Cerca de 18 dólares [16 euros] por um hambúrguer de 140 gramas, o que os próprios autores dizem que “impedirá a adoção” deste tipo de alimentos por parte do consumidor.
Mas se não fosse o preço, o certo é que as pessoas até testariam a carne de laboratório, como têm dado conta alguns estudos feitos junto da população africana, da população chinesa e até portuguesa: sim, por cá também há essa curiosidade, como diz uma pesquisa feita pela Lantern, que diz que “23% dos consumidores estão abertos à compra de carne de laboratório, aumentando para 32% no caso dos veggies”.