E-mails falsos, uma rede de angariadores e um caderno suspeito: Bruno burlou dezenas de imigrantes com ‘cunhas’ inventadas no SEF

21 fev, 07:00
Controlo nas fronteiras terrestres (Lusa/Nuno Veiga)

Operador de armazém lucrou milhares de euros enquanto prometia a imigrantes, na sua maioria brasileiros, que conseguia acelerar os seus processos no SEF. Tudo o que lhe bastou foi criar um e-mail falso. Caso começou a ser julgado este mês

Após vários meses de interceção de telefonemas, o império criminoso de Bruno Arroteia desmoronou-se quando durante buscas em sua casa, em Santarém, uma equipa da PSP encontrou um caderno manuscrito preenchido de nomes de imigrantes - na sua maioria brasileiros. Esse pequeno caderno bastou para que as autoridades percebessem a extensão do esquema de falsas marcações de agendamento no SEF do qual o operador de armazéns de 60 anos era o cabecilha.

Para além do apelido, idade e nacionalidade dos imigrantes, dentro das linhas do caderno encontrava-se repetido o nome “Ema” dezenas de vezes. Um indício que levou as autoridades a suspeitar que Bruno não agia sozinho e tinha uma rede de angariadores que lhe renderam milhares de euros. 

Passados dois anos, este caderno, é uma das principais provas no processo de burla e tráfico de influências, a que a CNN Portugal teve acesso, e que começou a ser julgado no início de fevereiro no juízo central criminal de Lisboa. Segundo a acusação do Ministério Público, com apenas um e-mail falso, Bruno Arroteia conseguiu levar dezenas de imigrantes a pensar que ele tinha conhecimentos privilegiados no SEF e que, num piscar de olhos, facilitava reuniões para pedidos de nacionalidade portuguesa.

O modus operandi era quase sempre o mesmo. Cobrava entre 600 a 800 euros, dizia que tinha um amigo chamado “Tiago” (por vezes chamava-se “Maria Vinagre” ou “Carlos António”) que trabalhava no SEF e que, caso o dinheiro lhe chegasse às mãos, o prazo de agendamento no serviço - entretanto extinto - passava de vários meses para apenas alguns dias.

Quando pagavam a Bruno Arroteia, os clientes recebiam um e-mail na caixa de correio a confirmar um atendimento nos serviços do SEF, criando a ilusão de que tinham escapado à lista de espera. Só que quando chegavam à delegação, na data e hora marcadas, essa marcação simplesmente não existia. E Bruno, esse, escapava com o dinheiro.   

O esquema, que estava em marcha desde 2019, tinha, porém, uma limitação. Em 2022, Bruno estava a cumprir uma pena de um ano e três meses de prisão domiciliária por condução sem habilitação legal, o que, segundo o inquérito do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP sobre a investigação deste caso, “limitava a possibilidade dele estabelecer contactos pessoais e relações de confiança com os requisitantes” do seu serviço que anunciava "publicamente”.

Mas, em meados de junho de 2022, a sorte bateu à porta da casa de Bruno, em Santarém. Aquilo que, à primeira vista, pareciam ser apenas mais dois clientes, Eliandra Martins Alves e Rafael - uma mãe e um filho que procuravam ajuda para agendar uma entrevista no SEF - veio a tornar-se uma parceria de vários meses. 

Nesse encontro, a mãe, que trabalhava como barista no Bar dos Bombeiros Voluntários das Caldas da Rainha, e o filho pagaram 790 euros via MB Way a Bruno e 10 dias depois, de forma surpreendente para a família, receberam um e-mail, vindo do endereço noreply.PortalSEF@sef.pt a garantir um agendamento para setembro de 2022. 

A forma como o e-mail era criado por Bruno, como viria a descrever o Ministério Público na acusação, “gerava um efeito visual capaz de iludir os destinatários que, ignorando ou desconhecendo os procedimentos em vigor, ficavam confiantes de que estavam perante uma comunicação oficial”. “Julgando tratar-se de um procedimento legal, os interessados concretizavam tais pagamentos", conclui a acusação, de 2023.

Eliandra e Rafael viriam mais tarde a perceber que o agendamento era falso. Mas antes disso, e na altura do encontro com Bruno, quando Rafael contou o que tinha acontecido aos amigos que se encontravam na mesma situação, começaram a chover pedidos para que lhes desse o contato de Bruno Arroteia. 

Com uma lista de vários imigrantes de nacionalidade brasileira no bolso prontos para pagar centenas de euros para acelerar os seus processos no SEF, Eliandra e Rafael dirigiram-se novamente a Bruno que lhes fez, entretanto, uma proposta, sem se descair que tudo era falso. 

Como  estava em prisão domiciliária, e o volume de pedidos era muito, Eliandra, a troco de uma parte do dinheiro pago pelos imigrantes, foi escolhida para “angariar e estabelecer contactos com interessados”, tal como “explicar e ajudar em diligências e procedimentos para iniciar o processo de legalização em território nacional", segundo se lê no inquérito do Comando Metropolitano da PSP. Nem mãe nem filho perceberam ai que se tratava de um esquema fraudulento. 

“A Ema era tão gentil e simpática”, descreve Juliano que, como outros cerca de 20 imigrantes, só descobriu em tribunal que o real nome da pessoa que lhes prometeu “apressar o agendamento no SEF” era Eliandra Martins Alves - o Ema resultava das três iniciais destes nomes.

O brasileiro, de 35 anos, conta que conheceu Ema quando a contactou sobre uma vaga para trabalhar no hotel Praia D'El Rey Marriott Golf & Beach Resort. Outros empregados do mesmo hotel já tinham recorrido ao mesmo serviço e Juliano, que estava em Portugal desde junho de 2022, pagou em numerário 600 euros a um dos filhos de Eliandra. “Como tudo estava a funcionar, acreditei genuinamente nela. Pensei que essa rede de contactos tinha capacidade para circumnavegar esses processos de forma mais rápida”. 

Para além disso, Juliano foi integrado num grupo de Whatsapp denominado "SEF final do ano” que, segundo a investigação da PSP, era composto “pelas pessoas que faziam parte da lista de prioridade e  tinha o propósito dos participantes a informarem do recebimento de notificação do agendamento no SEF”, fazendo também “criar a convicção a todos estes indivíduos que os procedimentos realizados por si eram legais”.

Quando Juliano pagou os 600 euros, conta, recebeu o “mesmo e-mail dos outros todos”. Mas a alegria de ver o seu processo avançar em alguns dias foi curta e uma descoberta de um colega seu no hotel acabou por se traduzir num banho de água fria. “O Guilherme descobriu que era tudo falso e nunca mais falei com essa senhora que, aliás, depois ainda tentou insistir comigo para que lhe pagasse mais 150 euros para alterar a residência fiscal”.

Esse Guilherme tinha recebido um e-mail de um endereço que lhe parecia ser legítimo a convocá-lo para um agendamento do SEF. “Quando cheguei lá disseram-me que não havia qualquer agendamento e que provavelmente tinha caído numa burla”, contou em tribunal.

O Ministério Público viria a recolher dezenas de queixas de situações semelhantes e Bruno Arroteia acabou por ser detido, em outubro de 2022. Tinha recebido milhares de euros na sua conta ou, por vezes, na conta da sua ex-mulher. Para esconder os seus passos, concluiu também o MP, Bruno comprou vários “cartões telefónicos diferentes do que habitualmente utilizava, para assim entrar em contacto com os indivíduos de quem recebia dinheiro a troco de ajuda, pensando eles que estavam em contacto com funcionários do SEF".

Cartas de condução falsas e o homem mistério

Para além deste esquema com agendamentos falsos do SEF, Bruno era também o centro de uma outra operação de venda de cartas de condução falsas. Segundo a acusação do Ministério Público, Bruno recorria a um homem mistério que a polícia ainda não conseguiu identificar chamado ‘Klécius’ que produzia “cartões em plástico em tudo idênticos a verdadeiras cartas de condução”.

A cada vez que Bruno tinha uma encomenda de uma carta de condução, “solicitava a sua produção a um indivíduo conhecido por Klécius que, por sua vez, obtinha por sublimação de pigmentos e transferência térmica de massa, os mencionados cartões em plástico em tudo idênticos a verdadeiras cartas de condução designadamente no formato e no grafismo", aponta o Ministério Público.

Por causa deste esquema e do de falsificação de agendamentos no SEF, Bruno Arroteia, que tem mantido a sua inocência, está em julgamento por 65 crimes de falsificação de documentos, 12 de burla e 10 de tráfico de influências. O julgamento, que começou no dia 1 de fevereiro, tem 40 arguidos - entre eles Bruno, Ema e as dezenas de cidadãos brasileiros que recorreram a este tipo de serviços.

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