Rita Lee soltou a voz pelo Brasil... e pela «Democracia Corinthiana»

12 mai 2023, 09:15
Rita Lee (Rui M. Leal/Getty Images)

Viagem aos dias em que a rainha do rock se juntou a Sócrates, Casagrande e Wladimir na defesa de princípios nobres como a igualdade e a justiça social. Ela que antes disso já tinha criado uma música de celebração do clube e que escreveu o «Lança Perfume» em memória da felicidade do pai a cada vitória do Timão.

«Meu amor branco e preto às vezes me deixou na mão».

Foi assim que Rita Lee compôs e cantou nos anos 70 a paixão que tinha pelo Sport Club Corinthians Paulista. O clube do coração dececionou-a, de facto, muitas vezes. O contrário, entretanto, nunca aconteceu. Nem passou perto disso, aliás: nenhum corintiano se sentiu defraudado por ela.

Falecida na última segunda-feira, aos 75 anos, em decorrência de um cancro no pulmão diagnosticado em 2011, a «Rainha do Rock Brasileiro» foi um marco cultural, social e político no Brasil. Teve também um papel preponderante na história recente do Timão.

Dez anos depois de lançar a canção «Amor Branco E Preto», no disco «Hoje É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida» (1972), Rita acabou por ser um dos rostos mais marcantes de um movimento único dentro do futebol brasileiro no começo da década de 80.

Em 1982, ainda durante a Ditadura Militar em território brasileiro, os principais jogadores do Corinthians uniram-se e criaram aquele que é até hoje um exemplo de luta pela igualdade, seja dentro ou fora das quatro linhas: a «Democracia Corinthiana».

Liderados por Sócrates e Casagrande, o grupo alvinegro resolvia internamente questões básicas do dia a dia do clube, como contratações, fazer estágios ou não, alterações na equipa, entre outros. Quase tudo era decidido na base do voto. Todos os funcionários opinavam.

Com um plano de marketing por trás nunca antes visto no desporto no país, o que teve peso na divulgação das ações, a «Democracia Corinthiana» tornou-se rapidamente numa verdadeira afronta aos militares da época, que, obviamente, começaram a perseguir os atletas.

Familiarizada com a essência da causa e, não menos importante, adepta do Corinthians, Rita Lee assumiu o papel de voz ativa do movimento. Propagava o conceito instituído pelos atletas em espetáculos e outros eventos artísticos. Ganhou a amizade e a confiança do plantel.

Em 1982, durante uma apresentação inesquecível no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a cantora atuou com a camisola do Corinthians. Um presente entregue ali mesmo pelos jogadores e amigos Sócrates, Casagrande e Wladimir. Os quatro cantaram e dançaram juntos, inclusivamente.

 

Com Rita Lee ao lado, a «Democracia Corinthiana» juntou-se de vez - ora direta, ora indiretamente - ao povo brasileiro em 1984, nas manifestações históricas das «Diretas Já», que essencialmente exigia que as eleições presidenciais fossem realizadas por voto direto, o que não acontecia desde 1960.

«O Corinthians é a maior banda de rock'n'roll de todos os tempos. Pense naquela equipa com o Casão [Casagrande], o Magrão [Sócrates]... eram revolucionários, estilo rock n' roll, certo? Mudaram o estereótipo do jogador de futebol: acomodado e alienado. Tinham atitude e, para mim, o rock é isso», destacou a cantora, em 2002, num programa de bate-papo ao lado de Casagrande.

Depois de quebrar diversos paradigmas, o movimento corintiano teve um ponto final naquele mesmo ano. Aos poucos, os principais nomes da equipa foram saindo do clube. Sócrates rumou para a Itália, onde assinou pela Fiorentina, enquanto Casagrande foi reforçar o rival São Paulo.

Rita, por sua vez, não arredou o pé. Ficou no Brasil, onde, recorde-se, havia sido presa em 1976, aos 28 anos, então grávida do primeiro dos três filhos. Seguiu encantando multidões com suas músicas e, acima de tudo, desafiando qualquer um que fosse com as suas opiniões. Uma mulher de ideias fixas e à frente do seu tempo. Uma corintiana... por causa do pai, um norte-americano chamado Charles Fenley, que adorava lança perfume.

«O meu pai distribuía lança perfume [droga recreativa] em casa para as mulheres, porque só havia mulheres, quando o Corinthians ganhava. Então as mulheres [Rita Lee, a mãe e as duas irmãs] ficavam opa opa, de lança perfume. Soltava a mulherada com lança perfume, o que você queria? Ficou uma cena muito forte: o meu pai a festejar, as mulheres todas a dançar», revelou certa vez a artista, em entrevista ao Canal GNT, quando explicou a origem do sucesso «Lança Perfume», lançado em 1980.

Cerca de 50 músicas de sucesso indiscutível. Mais de 300 canções produzidas. Quase 60 milhões de discos vendidos. Incontáveis corações atingidos, boa parte deles de adeptos do seu Corinthians.

«Uma das maiores cantoras e compositoras da música brasileira. Adepta apaixonada que participou ativamente da Democracia Corinthiana. Eternamente em nossos corações», assim o Corinthians, por meio das redes sociais, despediu-se da sua estrela guia.

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