Apesar da lei, Autoridade Tributária corta benefícios fiscais a sobreviventes de doenças graves

8 out 2022, 21:24

O assunto parecia resolvido com lei aprovada há um ano, mas doentes foram surpreendidos com novo ofício das finanças. A Liga Portuguesa Contra o Cancro recebeu centenas de queixas só em setembro

Os sobreviventes de várias doenças graves acusam a Autoridade Tributária (AT) de contrariar uma lei aprovada em 2021 na Assembleia da República.

Em causa um novo ofício da AT, de 29 de agosto, enviado para os serviços, que volta a decidir cortar os benefícios fiscais dos doentes que em resultado dos tratamentos deixam de ter, ao fim de cinco anos, na reavaliação médica, um grau de incapacidade acima dos 60%.

O ofício, a que a TVI teve acesso, afeta não só o crescente número de sobreviventes de cancro, mas também – entre outros doentes – quem teve de fazer um transplante.

Parlamento contrariou Governo

O problema começou a colocar-se em 2019 quando o Ministério das Finanças decidiu mudar a interpretação que fazia há uma década da lei, prejudicando milhares de doentes. Depois da polémica e das explicações do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, aos deputados, em 2021 a Assembleia da República aprovou uma lei para contrariar a interpretação do Governo.

Em causa a aprovação de uma pouco comum "Norma interpretativa" que diz que "sempre que da revisão resulte um grau de incapacidade inferior ao anterior, e consequentemente a perda de direitos ou benefícios já reconhecidos, mantém-se em vigor o resultado da avaliação anterior, mais favorável ao avaliado, desde que seja relativo à mesma patologia".

Os doentes ficaram descansados e as queixas pararam, mas agora a AT fez um novo ofício a interpretar a norma interpretativa do Parlamento: afinal, o benefício fiscal mantém-se apenas durante o ano da reavaliação.

"A faca e o queijo na mão"

O ofício apanhou os doentes de surpresa. "A lei diz uma coisa, mas a interpretação da Autoridade Tributária é diferente", afirma Francisco Cavaleiro de Ferreira, presidente da Liga Portuguesa Contra o Cancro.

Muitos doentes mantêm sequelas e um grau de incapacidade elevado, mesmo sem atingir a fasquia dos 60%, e vão perder os benefícios fiscais que tinham, nomeadamente o desconto no IRS e a isenção do Imposto Único de Circulação. Apoios que ajudam enfrentar as despesas acrescidas comuns a este tipo de patologias que não encontram resposta atempada nos serviços públicos de saúde.

"Na hora de pôr a lei em prática, o funcionário da AT tem a faca e o queijo na mão", lamenta Luísa Costa, atingida, aos 28 anos, por um cancro da mama dos mais agressivos. Oito anos depois trabalha, tem dois filhos, mas boa parte do salário vai para a vigilância da doença.  

"Uma lei morta"

"Este ofício da Autoridade Tributária vai tirar benefícios a pessoas que podem estar, mesmo depois da reavaliação, num estado muito débil do ponto de vista económico, sem capacidade de voltar ao trabalho que tinham, fazendo da norma interpretativa do Parlamento uma lei morta", argumenta o jurista da associação Mama Help, Filipe Carvalho.

O presidente da Associação Portuguesa de Insuficientes Renais, José Miguel Correia, acrescenta: "Voltamos a ter o espanto de ver uma nova interpretação à lei. Se existe uma lei para clarificar o que já estava claro, porquê um novo entendimento?!".

José Miguel Correia alerta, nomeadamente, para a situação dos transplantados que automaticamente vêem o seu grau de incapacidade descer abaixo dos 60%, mesmo que não fiquem curados. Com 40% de incapacidade, depois de um rim doado pela esposa, é esse o seu caso – com este novo ofício das finanças vai perder os benefícios fiscais que mantém.

Governo fala em benefícios fiscais a quem não precisa

Na resposta às críticas, a Autoridade Tributária justifica o ofício dizendo à TVI, por escrito, que "por força do princípio da igualdade e da capacidade contributiva, aos cidadãos cuja situação clínica tenha melhorado, deixando de padecer do grau de incapacidade necessário, não são concedidos novos benefícios com base num grau de incapacidade que já não têm".

O fisco mantém, na prática, a ideia avançada há um ano pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais em resposta aos deputados. Na altura, António Mendonça Mendes punha em causa a interpretação da lei feita ao longo de uma década pelas finanças, admitindo que pode ter dado benefícios fiscais a quem não precisava.

Para as associações de doentes a lei é muito clara, não oferece margem para interpretações e não pode ser contrariada por um simples ofício da AT ou por um Secretário de Estado.

Autoridade Tributária perde em tribunal

No último mês, depois do novo ofício, a Liga Portuguesa Contra o Cancro recebeu centenas de queixas e a sua jurista, Carla Barbosa, explica que o conselho inicial é pagar para evitar problemas com a Autoridade Tributária, depois reclamar e no limite avançar para tribunal, algo raro tendo em conta o tempo e o dinheiro que se perdem em custas judiciais e advogados.

Até hoje, a Liga só conhece um caso de uma doente que chegou à fase de ter uma decisão da justiça, ainda relativa à interpretação do fisco conhecida em 2019.

Já este ano, em abril, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria condenou o fisco por ter aplicado mal a legislação dos benefícios fiscais em relação a uma doente com cancro da mama cujo grau de incapacidade desceu de 60% para 46%. Neste caso, o fisco teve de anular a cobrança de 274 euros por dois anos de Imposto Único de Circulação e pagar as custas judiciais.

Para o juiz que avaliou a atuação da AT baseada no despacho de 2019 do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, "resulta com clareza da legislação que o grau de incapacidade (...) vigente à data da avaliação é mantido sempre que se mostre mais favorável ao avaliado". Ou seja: "A Autoridade Tributária incorreu em erro sobre os pressupostos de direito, que se traduziu em violação da lei".

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