Uma boleia portuguesa para a história mais bonita da época

30 abr 2022, 09:13
Union St. Gilloise

Histórico Union Saint-Gilloise voltou à primeira divisão belga quase 50 anos depois e lidera o campeonato a cinco jornadas do fim. Ganha fãs a cada dia e um dos grupos de adeptos é liderado por uma portuguesa, que nos guia por este fenómeno que junta tradição e modernidade

O Union St-Gilloise chama casa a um estádio centenário que é património protegido, no meio de um parque. Nas bancadas do Stade Joseph Marien há sempre um mar amarelo e azul, embalado por uma onda de entusiasmo. No fim, os jogadores cruzam-se com os adeptos e às vezes trocam um dedo de conversa. Não são imagens doutros tempos, é o presente do Saint-Gilles, o clube de Bruxelas que já foi um dos grandes da Bélgica, passou meio século nas divisões inferiores e na época do regresso à Liga lidera o campeonato a cinco jornadas do fim. Esta é uma viagem por uma combinação feliz de tradição e modernidade, à boleia de quem a vive de perto. Em português.

O Union é um fenómeno de popularidade e ganha adeptos a cada dia. Muitos estrangeiros, também, numa cidade internacional como poucas. A portuguesa Ana Ascenção e Silva é presidente de um grupo oficial de adeptos que junta precisamente muita gente que veio de fora. Acompanha o Saint-Gilles há vários anos, desde que a equipa subiu da terceira para a segunda divisão.

Portuense, e também portista, Ana vive há mais de dez anos em Bruxelas e começou por estranhar quando foi pela primeira vez ao estádio, convencida por um amigo. «Fui ver um jogo dos play-offs com o Standard Liége. Não me lembro se perdeu ou se empatou, mas foi uma festa enorme, os jogadores também a fazerem uma grande festa. Eu achei aquilo muito estranho, porque eles tinham jogado mal – aliás, eles jogavam sempre muito mal, nessa altura», sorri esta portuguesa que trabalha na Comissão Europeia, onde é responsável pela equipa de comunicação e emergências no departamento de Proteção Civil e Ajuda Humanitária.

Em Portugal, Ana habituou-se desde pequena a ir ao estádio ver o FC Porto, e continua aliás a tentar fazer coincidir as visitas a casa com os jogos do clube. Para ela, esta era uma realidade totalmente diferente. «Perguntei, mas o que é isto, não jogaram nada, não passaram e estão a fazer grande festa? Ah, é mesmo assim, o que interessa é o futebol, é a equipa. Eu pensei, isto realmente é um mundo novo, porque no Porto quando não se ganha ninguém está contente.»

Do passado de glória à ligação inglesa

Nessa época, 2016/17, a presença no play-off de acesso à Europa com várias equipas da Liga era um enorme passo em frente para o Union, que passara várias décadas muito longe da glória doutros tempos. Fundado em 1897, o Union tem a «matrícula 10» da Federação belga, o que quer dizer que é o 10º clube registado, e um percurso cheio de conquistas no início do século XX. Foi onze vezes campeão da Bélgica e é ainda hoje o terceiro clube com mais títulos, só superado pelo Anderlecht e, muito mais tarde, pelo Club Brugge. Entre 1932 e 1935, ano em que foi campeão pela última vez, somou 60 jogos seguidos sem derrotas, o que é ainda hoje recorde do futebol belga – e uma das marcas a que o FC Porto não chegou esta época quando bateu o recorde da Liga portuguesa. A partir daí foi perdendo terreno para os rivais. Caiu na segunda divisão pela primeira vez em 1963, jogou pela última vez no primeiro escalão em 1973 e nos anos 80 andou pela quarta divisão.

A recuperação ganhou novo fôlego em 2018, quando o inglês Tony Bloom, que já era dono do Brighton, viu naquele clube histórico de Bruxelas a oportunidade perfeita de investimento. «Há dois anos que procurava um clube na Europa», disse então o empresário britânico, prometendo respeitar a identidade do Union: «Conheço bem a tradição do clube com os seus 11 títulos de campeão, o seu estádio mítico. Tudo isso é muito importante para mim.»

Ana acompanhou essa transição a partir das bancadas. «Comecei a ir a mais jogos, fiz o meu cartão de sócio, o lugar anual. Depois, quando o clube foi comprado, começou a haver mais dinheiro, mais jogadores, e começámos a acreditar que se calhar dava para subir. E foi o que aconteceu na época passada.»

O sucesso em campo e a subida sem adeptos

Essa festa fez-se à distância. O Union garantiu o regresso à primeira divisão em março de 2021, mas com as bancadas vazias, por causa das restrições impostas pela pandemia. «Festejámos em casa», conta Ana. «Foi um bocado triste. Fez-se um pequeno ajuntamento no dia seguinte à porta da Commune, a Junta de Freguesia. Mas coisa muito pouca, até porque não era propriamente legal.»

Depois da subida, Ana Ascenção e Silva decidiu avançar com uma ideia que, entre amigos, já vinha de trás. «O nosso grupo começou a aumentar. Há algum tempo, pré-covid, tínhamos falado que era giro fazermos um grupo mais dedicado às pessoas como nós, que querem vir e não vêm porque não conhecem ninguém. Mas, como dava trabalho, fomos empurrando um bocado com a barriga. Quando subimos à I Divisão achámos que era altura de fazer isso, porque seria também mais fácil para arranjarmos bilhetes para os jogos fora», conta. Nasceu então o bEUnion, assim mesmo, a juntar as iniciais da União Europeia e o nome do Saint-Gilles. «O clube apoiou imenso desde o início, acharam super interessante esta faceta mais virada para os expats, que é muita gente aqui em Bruxelas. Desde junho já temos 100 membros, pelo menos.»

São na maioria estrangeiros, a trabalhar nas instituições europeias ou nas organizações de lobbies que operam em Bruxelas. Foi já como grupo organizado que ocuparam o seu lugar nas bancadas ao longo de toda a nova temporada, quando o Union embalou para uma campanha incrível, que terminou com o primeiro lugar da época regular, ao fim de 34 jornadas e com apenas cinco derrotas.

O sucesso em campo é um caso de estudo. A nova gestão do clube não apostou em investimento massivo, mas numa política de prospeção que procurou detetar talento fora do radar e reforçar-se à custa de empréstimos, ou jogadores em fim de contrato. Deniz Undav, melhor marcador do campeonato e já anunciado como reforço do Brighton para a próxima época, jogava até 2020 na terceira divisão alemã. O também avançado Dante Vanzeir passou por sucessivos empréstimos no Genk, até se afirmar em Saint-Gilles e chegar à seleção belga. No banco, o treinador Felice Mazzu começou por liderar a equipa no regresso à Liga, aproveitando a oportunidade de se afirmar depois de ter passado por uma experiência falhada no então campeão Genk.

O bairro «hipster» no estádio centenário

Hoje, os 9.500 lugares do estádio Joseph Marien estão sempre ocupados e há muito quem não consiga bilhete. Um entusiasmo que cresce a cada dia, ao ritmo do sucesso da equipa em campo. Nas bancadas, os adeptos mais antigos misturam-se com gente nova, reflexo também daquilo que é hoje Saint-Gilles, a «commune» de Bruxelas onde está sedeado o clube. «É uma freguesia bastante antiga e hoje em dia um bocadinho hipster, que num sítio tem coisas quase a cair e depois tem outras mais modernas. Tem de tudo, os bares das cervejas, também tem muitos cafés portugueses, porque é uma zona muito histórica dos emigrantes portugueses», conta Ana. Depois, há a atração do estádio.

 

Inaugurado em 1919, o Parque Joseph Marien mantém a aura dos primeiros tempos. Teve algumas obras de renovação em 2018, mas sem alterar o essencial. Não era possível, porque o estádio e a sua envolvente estão classificados como património histórico. A fachada de tijolo com inscrições em baixo relevo dá acesso a um recinto onde boa parte das bancadas são de pé, rodeado por um cenário bucólico. «É um estádio histórico, muito pequenino, muito atravancado. Está numa área protegida, não se pode mudar mais o estádio. É muito giro, muito art deco. Há muita gente que vem só para ver a fachada», conta Ana: «E é dentro da cidade, é fácil chegar. As pessoas conseguem ir de bicicleta, a pé, de transportes.»

Lá dentro, «o ambiente é sempre muito positivo», conta Ana. Às vezes até demasiado, para uma portuguesa. «Eu e alguns amigos até achamos que é um bocadinho friendly de mais», sorri: «Eles estão sempre a cantar e a bater palmas ao adversário, em Portugal isso é impensável. Há muito convívio, e bebem todos uns copos antes e uns copos a seguir.»

«Jogadores saem do balneário e vão cumprimentar as pessoas»

«Pelo que eu sei, sempre foi assim», continua Ana: «Tem muitas crianças também. Nunca vi nenhum problema de violência nem nada do género. É sempre uma grande festa, quer se ganhe quer se perca.» Com o sucesso do Union, tem aparecido muita gente nova no estádio. «Alguns nota-se que não sabem bem o que estão ali a fazer, estão ali para a festa porque está na moda», brinca.

Mas a verdade é que é uma ótima experiência, acrescenta: «Quando está bom tempo é um programa muito bom, porque ao contrário de Portugal pode-se beber álcool dentro do estádio. As pessoas chegam e ficam a beber cá fora, depois saem e fica-se ali horas fora do estádio. Depois os jogadores passam a pé, porque alguns ainda não têm carro. Saem do balneário para a rua, atravessam a estrada e vão cumprimentar as pessoas que estão no estádio. Há imensa familiaridade e proximidade com a equipa.»

Esse espírito fica bem expresso nas imagens dos jogadores a cantar com os adeptos o hino do Union.

Bruxelles,

Ma ville

Je t’aime

Je porte ton emblème

Tes couleurs dans mon cœur

Et quand vient le week-end

Au parc Duden

Je chante pour mon club

Allez l’Union

E contagia toda a gente, até o treinador Felice Mazzu, cujos passos de dança em várias ocasiões desta época se tornaram famosos

Na Bélgica, o Union é visto como uma lufada de ar fresco, num campeonato que tem sido marcado nos últimos anos por vários episódios de violência nas bancadas e por uma investigação judicial a suspeitas de corrupção. Esses problemas resultaram em fortes restrições nas viagens de adeptos para os jogos fora de casa. Ana explica como funciona: «Agora que estamos na Liga não é possível as pessoas irem pela sua própria conta aos jogos fora. Tem de se ir de autocarro, em grupo. Depois chegamos à cidade de destino, encontramo-nos com a polícia e entramos assim.» Perde-se parte da piada, diz: «Na segunda Liga não tínhamos de fazer isso, era só em jogos de alto risco. Era mais giro, porque íamos de comboio, passávamos o dia naquela cidade, almoçávamos, conhecíamos.» Ainda assim, o bEUnion não falha um jogo fora: «Vamos sempre. Temos boas relações com os outros clubes de adeptos, principalmente o Union Bhoys, que é o maior e mais antigo, e eles deixavam-nos ir nos autocarros deles. Agora já conseguimos ter o nosso próprio autocarro.»

Os problemas não desapareceram. O último jogo do Union na fase regular, em casa com o Beerschot, não chegou ao fim, depois de os adeptos visitantes terem invadido o relvado. Terminou com a vitória atribuída pela justiça desportiva ao Union.

Os «betos» e os outros

O Saint-Gilloise também tem as suas rivalidades históricas, nomeadamente com os clubes de Bruxelas, como o Anderlecht e o Molenbeek. E as provocações estão sempre presentes. Como no último fim de semana, quando o Union começou o play-off do título a vencer pela terceira vez esta época o Anderlecht, agora treinado por Vincent Kompany. «Os adeptos do Anderlecht levaram uma tarja a chamar-nos «Betos», um bocado a gozar com a ideia de que as pessoas de Saint-Gilles são os que vão às lojas bio…», conta Ana: «É aquela rivalidade dos bairros, porque Anderlecht e Molenbeek são bairros um bocadinho mais pobres, mais problemáticos, com outro tipo de emigração. Há também alguma rivalidade nesse aspeto.»

Agora, o Union entrou na fase decisiva da luta pelo título. Mas já tem garantida a presença nas competições europeias, pelo menos no acesso à Conference League. Será um regresso para o clube que esteve na Europa pela última vez em 1964, quando recebeu a Juventus para a Taça das Feiras, antecessora da Taça UEFA.

«Está bem encaminhado. A equipa está muito forte. No início, quando o Saint-Gilles jogava jogos da Taça com equipas da primeira liga às vezes notava-se uma diferença grande de qualidade. Agora é ao contrário. E quanto mais se ganha mais motivação se tem para voltar a ganhar», acredita Ana. «Mas», continua, «as pessoas já estão bastante contentes, porque aconteça o que acontecer já está garantido pelo menos um ou dois jogos das competições europeias. Tudo o que venha agora mais já é lucro.»

Ana até se divide um bocado em relação a isso: «Entre nós até temos falado que até era preferível não sermos campeões para não ir à Liga dos Campeões, para não fazer má figura, e ficar só pela Liga Europa… Até porque dava mais jeito ser à quinta-feira. Por causa do trabalho, só se tira uma tarde e um dia.»

Na verdade, o Parque Marien nem tem condições para receber jogos da UEFA. Se chegar à Liga dos Campeões, o clube terá de jogar no Estádio Rei Balduíno, o antigo Heysel. A direção tem de resto um projeto para construir um novo estádio, mais moderno, mantendo o recinto atual para os jogos de outras equipas do clube. Portanto, muita coisa pode mudar se o Union for mesmo campeão. Até lá, Saint-Gilles aproveita o momento.

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