Política do BCE está a aumentar brutalmente lucros da banca. Há alternativas, mas "o poder dos bancos é tão forte que eles têm medo. Os políticos têm medo. Até o BCE tem medo"

15 fev, 07:00

ENTREVISTA || O economista Paul de Grauwe diz que está a haver uma transferência maciça de dinheiro dos bancos centrais da zona euro para os bancos comerciais. O economista defende uma política diferente por parte do BCE e, se este não conseguir travar estas transferências, defende como alternativa que os governos lancem impostos sobre os lucros excessivos da banca. O economista diz ainda que a inflação está controlada e que chegou a hora de o BCE começar a descer taxas de juro

O Banco Central Europeu (BCE) deveria seguir uma política monetária que impedisse a transferência “maciça” de dinheiro dos bancos centrais para os bancos comerciais, o que tem permitido a estes últimos obter lucros históricos. O economista belga Paul de Grauwe considera mesmo que esta situação é incompreensível. “Pensei que o BCE se preocupava com o interesse geral, o interesse dos cidadãos e dos contribuintes. Em vez disso dá prioridade aos lucros dos bancos comerciais. É a única explicação que posso dar”, lamenta em entrevista à CNN Portugal.

Os bancos comerciais, durante a sua atividade, captam depósitos e concedem crédito, mas quando os depósitos captados excedem o crédito concedido, ficam com liquidez em excesso que depositam nos respetivos bancos centrais. Esses depósitos são remunerados à taxa de depósito do BCE e quando essa taxa sobe a remuneração dos bancos comerciais acompanha essa subida, permitindo-lhes obter ganhos avultados. Ao mesmo tempo, os bancos centrais, como pagam juros mais altos, registam resultados mais baixos ou mesmo prejuízos.

"Pensava que o BCE se preocupava com o interesse geral, o interesse dos cidadãos e dos contribuintes. Mas verifico que o BCE dá prioridade aos lucros dos bancos comerciais", afirma o economista Paul de Grauwe

Esta taxa de depósito está atualmente nos 4%, mas em julho de 2022 era negativa. Ou seja, os bancos comerciais deixaram de ter de pagar para ter a liquidez em excesso guardada nos bancos centrais e passaram a receber 4% por esses depósitos. Como resultado, os lucros que os bancos centrais tinham e que eram transferidos como dividendos para os Orçamentos de Estado de cada país, ou seja, para os contribuintes, são agora transferidos para os bancos comerciais como remuneração dos depósitos.

Para o economista belga há alternativas a esta política, designadamente, alterar a taxa de reservas mínimas. Atualmente os bancos comerciais da zona euro têm de constituir uma reserva mínima obrigatória de 1% junto do respetivo banco central, ou seja, têm de guardar junto do respetivo banco central 1% dos depósitos que captam junto dos seus clientes. Este depósito obrigatório também era remunerado à taxa de depósito do BCE, mas desde setembro do ano passado deixou de ter qualquer remuneração. E chegou mesmo a haver notícias que davam conta de que o BCE poderia aumentar a taxa de reservas mínimas, o que acabaria por não acontecer.

E é isso mesmo que o economista Paul de Grauwe defende, que se aumente a taxa de reserva mínima, uma alternativa que segundo o próprio tornaria a política de controlo da inflação mais eficaz e travaria o desvio de dinheiro que era dos contribuintes para os bancos comerciais.

Em Portugal, desde que o BCE começou a subir taxas de juro, os lucros da banca não pararam de aumentar. Em 2022, tiveram o melhor resultado dos últimos 15 anos e em 2023 a subida de lucros continua.

A subida de taxas de juro por parte do BCE tem permitido aos bancos comerciais aumentar substancialmente os seus lucros. Como vê essa situação?

O aumento das taxas de juro teve como dano colateral uma transferência maciça de dinheiro dos bancos centrais para os bancos comerciais. Nesta fase, ascende a cerca de 140 mil milhões de euros por ano. O que significa que estes bancos centrais têm agora perdas maciças e os lucros vão para os bancos. Só para dar uma ideia da importância desta realidade, a transferência de 140 mil milhões de euros para os bancos comerciais é comparada com a despesa total anual da União Europeia de pouco mais de 160 mil milhões. Estamos a transferir um montante de dinheiro para os bancos, sem condições, que é comparável ao total das despesas anuais da UE, que estão cheias de condições. Por outras palavras, a União Europeia transfere atualmente cerca de 50 mil milhões de euros por ano para os agricultores. Transfere cerca de três vezes mais para os banqueiros. Os agricultores têm de cumprir uma série de condições, todo o tipo de regras e regulamentos. Os banqueiros recebem três vezes mais sem quaisquer condições. Isto cria um problema terrível. Não podemos continuar a fazer isto.

Qual seria a alternativa?

A alternativa seria dizer aos bancos, 'desculpem, mas já não vamos transferir-vos tanto dinheiro'. Suponhamos que um banco detém 100 milhões de euros em depósitos no banco central. Suponhamos que o BCE podia dizer, ok, só vamos pagar juros sobre 50 destes 100. E os outros 50 tem de os manter como reserva mínima obrigatória. Isso permitiria ao BCE reduzir a transferência para metade. Não estou a dizer que devíamos eliminar tudo, mas podíamos reduzir para metade.

Agora, a taxa de reservas mínimas é de 1%.

Por isso teria de ser aumentada. Isso poderia ser feito. Os bancos têm lucros recorde. Nunca tiveram tantos lucros e esses lucros vêm das perdas dos bancos centrais. Por isso, temos de dizer aos bancos: "Estão a receber muito dinheiro. Vamos reduzi-lo."

E não afetaria os efeitos da política monetária no controlo da inflação?

Demonstrámos que torna a política monetária ainda mais eficaz, porque temos dois instrumentos, as reservas mínimas e a taxa de juro. Mas eles [BCE] não querem ouvir. Não sei porquê. Será que estão a defender os interesses dos bancos em vez de defenderem os interesses do público em geral? Parece que estão a defender os interesses dos bancos.

Mas porque é que isso acontece?

É um quebra-cabeças para mim. Pensava que o BCE se preocupava com o interesse geral, o interesse dos cidadãos e dos contribuintes. Mas verifico que o BCE dá prioridade aos lucros dos bancos comerciais. É a única explicação que posso dar. Há uma alternativa que poderia ser implementada facilmente. Mas o poder dos bancos é tão forte que eles têm medo de implementar a mudança que proponho. ‘Não nos toquem. Se tivermos menos lucros pode haver uma crise bancária’, dizem os banqueiros. E depois os políticos têm medo. Até o BCE tem medo.

Uma alternativa poderia ser lançar impostos sobre os lucros dos bancos?

A melhor alternativa seria o BCE aumentar as reservas mínimas não remuneradas. A segunda melhor alternativa para qualquer Governo é dizer: ‘bem, se o BCE não quer atuar, atuaremos nós’. Estes lucros não são justos, não são merecidos. Os banqueiros obtêm estes lucros não porque tenham feito um bom trabalho, nem porque tenham tido um bom desempenho. Não, eles obtêm esses lucros sem terem feito nada. Os depósitos que detêm nos bancos centrais são depósitos totalmente isentos de risco e recebem 4%. Por isso, os governos podem intervir, cobrando um imposto sobre esses lucros excessivos.

"Inflação está sob controlo"

A inflação na zona euro já está controlada?

Tem havido um declínio espetacular da inflação. Ainda há algum receio de que os aumentos salariais possam continuar a exercer algum efeito, mas penso que a inflação está sob controlo, pelo que o BCE deverá, muito em breve, poder reduzir as taxas de juro.

Quando?

Não consigo prever. Vai ser o resultado das negociações no seio do Conselho do BCE. Presumo que haja algum desacordo, que alguns dos membros gostariam de esperar até que a taxa de inflação caia abaixo de 2% por tempo suficiente antes de considerar uma descida das taxas de juro, enquanto outros estarão mais relaxados relativamente a isso. Depende do poder das diferentes posições.

Mas na sua opinião quando é que as taxas devem começar a descer?

Deve ser possível reduzir as taxas de juro agora, não drasticamente, mas dar um sinal de que podemos começar a pensar numa trajetória descendente das taxas de juro e, por isso, uma descida de um quarto de ponto percentual na próxima reunião [7 de março] seria suficiente para dar esse sinal.

A desaceleração da taxa de inflação deve-se à política do BCE?

A subida de taxas de juro pelo BCE ajudou a reduzir a taxa de inflação, mas apenas marginalmente. A maior parte da redução da inflação deveu-se ao facto de os preços da energia terem entrado em colapso, terem diminuído drasticamente. Quando se olha para o perfil das descidas de preços do gás, em particular, verifica-se que está muito bem correlacionado com a desaceleração da inflação. Essa tem sido a principal força, o aumento das taxas de juro ajudou, mas apenas de forma muito marginal.

E teve um efeito negativo na atividade económica…

É claro que teve um efeito negativo na atividade económica. E é por isso que penso que o BCE deveria agora considerar a possibilidade de reduzir a taxa de juro. Nalguns países já existe uma recessão, como na Alemanha, mas se o BCE continuar a manter estas taxas de juro elevadas é possível que haja uma recessão no conjunto da zona euro, o que seria totalmente desnecessário. Mas é certamente um risco.

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