Tribunal de Contas vai ser chamado a dar explicações ao parlamento se a comissão de inquérito proposta pelo PCP à privatização da ANA Aeroportos for aprovada
O Tribunal de Contas (TdC) corre o risco de passar de auditor a auditado. Em causa estão contradições internas e indícios de erros técnicos elementares no processo de auditoria à ANA Aeroportos.
Um relatório de 2016, que a TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal) revela em primeira mão, desfazia-se em elogios à concessão dos aeroportos portugueses aos franceses da VINCI, concretizada em 2013 pelo Governo Passos Coelho, por um valor superior a três mil milhões de euros.
“A opção tomada revelou-se adequada à luz do interesse dos contribuintes” e “o Balanço global da operação foi positivo, pois cumpriu o seu objectivo principal: a redução da dívida pública maximizando do valor da venda”, declarava a auditoria de 2016, que chegou a ser notificada aos envolvidos no processo para se pronunciarem.
A auditoria nunca chegou a ser votada nem publicada, por circunstâncias relacionadas com a reorganização interna dos serviços do TdC, que deverão agora ser esclarecidas em sede parlamentar. O texto do documento até reconhecia a importância estratégica da privatização da ANA para salvar Portugal da bancarrota, em temos de Troika: “Face à difícil situação económica do país e aos compromissos externos decorrentes da assinatura do Memorando de Entendimento, deve-se sublinhar que a operação foi relevante para o Estado”, descreviam aos auditores.
Este ano, a 5 de janeiro, o TdC publicou nova auditoria ao mesmo processo, de teor diametralmente oposto. No novo documento, “a privatização da ANA não salvaguardou o interesse público”, nem sequer foi “maximizado o encaixe financeiro”. Para além disso, “o Estado concedeu à Vinci os dividendos de 2012, quando a gestão ainda era pública, e suportou o custo financeiro da ANA para cumprir o compromisso assumido no contrato de concessão, tendo por isso o preço de privatização (1,127M€) sido 71,4M€ inferior ao oferecido e aceite (1.198,5M€)”.
Com base nestas conclusões, o PCP tomou a iniciativa de apresentar um pedido de inquérito parlamentar, para esclarecer eventuais “ilegalidades” do processo. Os comunistas querem explicações do ex-primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, dos então ministros das Finanças e da Economia, Vítor Gaspar e Álvaro Santos Pereira, e do ex-secretário de Estado das Infraestruturas, Sérgio Monteiro. “É bom que os responsáveis por estas decisões ruinosas para o Estado expliquem a motivação das decisões que tomaram e assumam a responsabilidade”, declarou o deputado comunista António Filipe.
À privatização da ANA concorreram oito consórcios internacionais. A adjudicação aos franceses da VINCI não mereceu qualquer contestação ou disputa judicial. «O segundo classificado ficou a seiscentos milhões de euros da proposta da Vinci. Como é que pode ter havido favorecimento? Como é que poderiam ter escolhido outro? Não havia qualquer hipótese», justifica João Caetano Dias, que participou no concurso em representação da Empark, empresa que integrou o consórcio liderado pelos argentinos da Corporación América. “Agora dizem que a VINCI está a ganhar muito dinheiro, mas na altura ninguém esteve disposto a chegar-se à frente com valores daquela ordem de grandeza, ninguém acreditava que fosse possível chegar àqueles valores”, comenta ainda este gestor.
A acusação do TdC, de ter havido um “desconto” de 71,4 milhões de euros no preço de privatização, é motivo de escândalo, por alegado erro técnico dos auditores. O TdC revelou “falta de entendimento de como funcionam estes processos”, afirma João Caetano Dias. “Não houve desconto feito pelo Estado ao comprador, nem isso tem qualquer sentido”, concorda João Caiado Guerreiro, especialista em fusões e aquisições.
Ambos os entrevistados defendem que, nos termos do caderno de encargos, os juros de um empréstimo e os dividendos distribuídos pela ANA pública ao Estado, posteriores ao momento de apresentação das propostas formais dos privados, jamais poderiam ser assumidos por estes. Quando se compra uma empresa compra-se uma empresa com os passivos e os activos”, declara João Caiado Guerreiro. “Ninguém se distraiu. Muito menos do lado do Estado português”, garante.
A auditoria de 2024, cujo relator foi o Juiz Conselheiro José Manuel Quelhas, foi apreciada pelo plenário de nove juízes conselheiros da 2.ª secção e aprovada por cinco. Quatro magistrados escreveram declarações de voto com críticas severas ao relatório final, por alegadamente conter conclusões mal fundamentadas, intromissões na esfera do poder político e propostas sem suporte legal.