1450 crianças afegãs foram levadas para os EUA sem os pais. Algumas “nunca mais se reunirão com a família”

CNN , Catherine E. Shoichet
14 jan 2022, 22:00
Afeganistão. Salwan Georges/The Washington Post/Getty Images

Uma menina de 8 anos chora todas as noites depois de a tia a ir deitar. Um jovem de 17 anos acorda agarrado à almofada e a chamar pelo irmão mais novo. E centenas de crianças que continuam sob a custódia do governo dos EUA continuam a fazer perguntas às quais ninguém sabe responder.

Estão entre as cerca de 1450 crianças afegãs que foram levadas sem os pais para os Estados Unidos, desde agosto. Meses depois de chegarem, não se sabe bem quando, como - ou mesmo se - algumas destas famílias se voltarão a reunir.

O elevado número, relatado pela primeira vez pela Reuters e atualizado recentemente com números que a CNN obteve do Gabinete de Realojamento de Refugiados, revela a realidade devastadora das evacuações e das suas consequências.  

"É chocante... A ideia de que há mais de mil crianças sem família, neste momento, que se devem sentir sozinhas e assustadas", disse Sabrina Perrino, uma pediatra afegã-americana da Califórnia que espera tornar-se mãe adotiva e ajudar.

Muitas das crianças tentaram fugir do Afeganistão com as famílias, mas acabaram separadas no meio do caos, dizem os seus defensores. Algumas perderam o contacto com os pais durante o bombardeamento no Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul. E alguns dos pais não sobreviveram ao ataque terrorista. 

“De quem é o trabalho de reunir pais e filhos, e depois, onde fazemos isso? Esse é um grande problema com o qual nos debatemos."

Jennifer Podkul, Kids in Need of Defense

As autoridades dizem que a grande maioria das 1450 crianças que foram levadas para os Estados Unidos sem os pais foram logo realojadas com padrinhos, incluindo familiares com quem fugiram ou outros que já moravam nos Estados Unidos. Algumas foram reunidas com a família através de um processo de triagem acelerado que o governo Biden criou para as crianças afegãs.  

Mas cerca de 250 crianças continuam sob custódia do governo dos EUA, de acordo com as estatísticas que o Gabinete de Realojamento de Refugiados forneceu recentemente à CNN. E a maioria dessas crianças, dizem os defensores, não tem familiares com quem se reunir nos Estados Unidos.

Famílias e defensores que falaram com a CNN disseram que as crianças, já traumatizadas pelo que passaram no Afeganistão, estão agora a viver no limbo, desesperadas por respostas sobre o futuro.

As videochamadas com os pais são uma tábua de salvação

Dois adolescentes sentam-se num sofá numa sala de estar da Virgínia do Norte, com um ar perdido. Ramin de 17 anos, e Emal de 16, não deviam ter ido para os Estados Unidos sem os pais.

Os amigos próximos, que a CNN identifica apenas pelo primeiro nome para proteger a segurança das famílias, eram vizinhos em Cabul. Juntos, tentaram fugir do país com as famílias, em agosto. Mas separaram-se durante o ataque ao aeroporto. Apenas os rapazes e um tio conseguiram sair. Os pais e os irmãos ficaram para trás.

Quando Ramin chegou aos Estados Unidos, em setembro, estava frenético, diz Wida Amir, membro da administração da Fundação Afegã-Americana, que conheceu o rapaz quando ela estava a ajudar com a tradução refugiados recém-chegados. "Ele dizia, 'Leve-me de volta, mande-me de volta'", lembra Amir.

O medo pela segurança dos pais e dos irmãos era avassalador para Ramin. Em Cabul, ele era muito chegado ao irmão de 18 meses com quem passava quase 24 horas do dia. Ele nem conseguia imaginar uma vida sem ele.

Uma noite, no abrigo da Virgínia para onde ele e Emal foram levados após chegarem, Ramin acordou agarrado à almofada, como um bebé, a chamar pelo irmão.

Emal, de 16 anos, diz desejar todos os dias uma hipótese de se reunir com os pais.

Depois de passarem mais de um mês no abrigo, os rapazes moram agora com o tio de Emal e a família dele, que foi para os Estados Unidos há quase cinco anos com um visto especial de imigrante, depois de trabalhar para a USAID no Afeganistão.

Os adolescentes começaram a frequentar o ensino secundário e dizem que estão a tentar concentrar-se em construir uma nova vida nos Estados Unidos. Estão gratos pela oportunidade de viverem em segurança. Mas a adaptação tem sido difícil, sabendo que as famílias no Afeganistão ainda correm perigo.

Eles conversam com os pais quase todos os dias. As primeiras videochamadas foram difíceis.

“Toda a gente chorava. Ficávamos só a olhar uns para os outros. Era difícil ter uma conversa”, disse Emal, através de um intérprete. Agora, diz ele, são essas videochamadas que o fazem seguir em frente.

“Se eu não falar com eles nem vir as caras deles", diz ele, "não consigo dormir".

Os adolescentes dizem que querem reunir-se com os pais e irmãos nos Estados Unidos. Mas as famílias não sabem bem a quem recorrer para que isso aconteça. “É algo que estou sempre a desejar”, diz Emal.

Há uma 'grande dúvida' que não foi respondida

Os ativistas que falaram com a CNN dizem que os procedimentos para a reunião com os pais que permanecem no Afeganistão ou noutros países continuam a ser imprecisos.

"De quem é o trabalho de reunir pais e filhos e, depois, onde fazemos isso? Esse é um grande problema com o qual nos debatemos", disse Jennifer Podkul, vice-presidente da política e defesa da Kids in Need of Defense, uma organização que ajuda crianças imigrantes desacompanhadas e refugiadas.

O Departamento de Saúde e Serviços Humanos diz que o governo está a fazer tudo o que pode para ajudar a reunir os menores afegãos desacompanhados a cuidadores, incluindo pais e familiares imediatos que continuam no Afeganistão. Mas deixar o país continua a ser um grande desafio, disse a agência, descrevendo o processo de reunificação como difícil e frisando que pode demorar um tempo considerável.

O Departamento de Segurança Interna e o Departamento de Estado não responderam às perguntas da CNN sobre o processo dessas reunificações familiares.

O Secretário de Estado Anthony Blinken reuniu-se com um grupo de crianças afegãs desacompanhadas em setembro, quando visitou a Base Aérea de Ramstein, na Alemanha. Segundo a NPR , ele disse ao grupo que os americanos estavam ansiosos para recebê-los e que os EUA tentariam ajudar as famílias e os amigos que continuam no Afeganistão. 

Uma criança retirada do Afeganistão mostra um desenho na base militar dos EUA em Ramstein, na Alemanha, a 9 de outubro de 2021.

O Departamento de Saúde e Serviços Humanos não especificou quantas das 1450 crianças levadas para os Estados Unidos como menores desacompanhados foram reunidas com os pais ou quantas têm pais que ainda estão no Afeganistão - dois números solicitados pela CNN.

As autoridades frisaram que o número de crianças afegãs que permanecem sob custódia é uma pequena fração do número total de afegãos que foram levados para os Estados Unidos.

Mas o que acontece com essas crianças ainda devia ser uma preocupação de destaque, segundo Ashley Huebner, diretora-adjunta dos serviços jurídicos do Centro Nacional de Justiça para Imigrantes.

“Tem sido muito difícil”, diz ela. “Há muita frustração... com a falta de informação, a falta de ação, a verdadeira falta de urgência que sentimos do Gabinete de Realojamento de Refugiados e outros sobre o que vai acontecer com estas crianças, e porque estão as coisas a demorar tanto.”

Algumas crianças têm dificuldades em comer sabendo que as famílias passam fome

Um porta-voz do Departamento de Saúde e Serviços Humanos disse que o Gabinete de Realojamento de Refugiados encara “muito a sério” a segurança e o bem-estar das crianças ao seu cuidado.

“A missão do Gabinete de Realojamento de Refugiados é garantir que as crianças ao seu cuidado estejam em segurança, saudáveis ​​e reunidas com os familiares ou outros cuidadores adequados, da forma mais rápida e segura possível”, disse o porta-voz.

Os defensores que falaram com as crianças que permanecem sob custódia do governo dizem que muitas delas debatem-se para lidar com o facto de estarem separadas dos pais e com o trauma que sofreram antes de fugirem do Afeganistão.

Sempre que Sima Quraishi visita um abrigo com crianças afegãs em Chicago, as crianças dizem-lhe o quanto sentem falta das famílias.

“Dizem-me: 'A senhora é parecida com a minha mãe’. Abraçam-me e falam-me sobre os pais", disse Quraishi, diretora do Centro de Recursos para Mulheres Muçulmanas.

Quando olha para as crianças, Quraishi diz que se vê a ela mesma. Nasceu no Afeganistão e veio para os Estados Unidos como órfã, há mais de 30 anos. Ela tenta encorajar as crianças e dar-lhes esperança. Mas é difícil, diz ela.

“Há muito apoio do governo e querem garantir que elas encontram as famílias. Mas quanto tempo vai demorar? Ninguém sabe", diz Quraishi. "Nem sabemos o que vai acontecer com estas crianças."

Passageiros afegãos embarcam num C-17 Globemaster III da Força Aérea dos EUA durante a evacuação do Afeganistão, no Aeroporto Internacional Hamid Karzai em Cabul, em agosto.

No Centro de Entradas de Urgência Starr Commonwealth, em Albion, no Michigan, as crianças afegãs dizem aos defensores que estão preocupadas há meses, segundo Jennifer Vanegas, do Centro dos Direitos dos Imigrantes do Michigan, cuja equipa conversou com as crianças do abrigo.

"É desolador. Muitas das famílias estão escondidas, não têm comida suficiente, não têm como sair... Algumas crianças disseram-nos que têm problemas em comer porque sabem que as famílias passam fome”, diz ela.

Os cerca de 20 menores afegãos nas instalações da Bethany Christian Services, no Michigan e na Pensilvânia, perguntam-se constantemente o que pode ser feito para ajudar as suas famílias, diz Nathan Bult, vice-presidente dos assuntos públicos e governamentais da organização.

"Algumas dessas crianças sabem que os pais já não estão vivos. Acho que um número maior não sabe nada. E nós também não sabemos. E acho que o governo dos Estados Unidos também não sabe. Essa é a coisa mais difícil de dizer a uma criança, às vezes. A verdade. Nós não sabemos.”

Outras crianças conseguiram ligar-se a amigos ou familiares pelo WhatsApp, mas isso não torna a situação mais fácil.

“Elas sabem onde estão os pais, e os pais dizem-lhes ‘não estamos em segurança', pois tentam fugir dos talibã. Entre o medo do desconhecido e o medo do que sabem e nada podem fazer, é como uma constante experiência adversa da infância”, diz Bult, usando o termo que os especialistas usam para descrever circunstâncias traumáticas que afetam as crianças. 

“A minha esperança e aquilo por que rezo é que todas estas crianças se possam reunir com as suas famílias alargadas ou mais imediatas, mas sabendo o que sabemos sobre as histórias delas, existem algumas crianças que nunca se reunirão com as famílias”, diz Bult.

“Sabendo o que sabemos sobre as histórias delas, existem algumas crianças que nunca se reunirão com as famílias.”

Nathan Bult, Bethany Christian Services

E cada momento em que as crianças permanecem sob custódia do governo pode agravar o trauma com que têm que lidar, diz Perrino, pediatra em San Diego e membro do conselho da Organização Comunitária Afegã-Americana.

Essa é uma das razões pelas quais tantos afegãos-americanos querem tornar-se pais adotivos, diz ela. Perrino é um deles.

Mas o processo para se tornar pai adotivo é complicado e demorado - e até agora, a maioria das famílias afegãs que se inscreveu ainda não se qualificou, diz Perrino.

Enquanto trabalha para reunir a papelada, Perrino tem falado aos seus dois filhos sobre a situação.

“Conversamos sobre como há crianças que não têm família e que queremos que venham à nossa casa”, diz ela. “Tento explicar-lhes que, até que essas crianças encontrarem as famílias delas, podemos ajudá-las a sentirem-se crianças, a brincar e a divertirem-se”.

Uma tia diz que o apoio que ela dá nunca será suficiente

Mesmo as crianças que vivem com membros da família estão a ter dificuldades.

Ferishta vê todos os dias o sofrimento nos rostos da sobrinha e do sobrinho. Agora, eles moram com ela na Virgínia, mas têm a cabeça a milhares de quilómetros de distância.

Mina, de 8 anos, e Ahmad Faisal, de 13, tentaram fugir do Afeganistão com os pais e o irmão mais velho. Mas o bombardeamento do aeroporto separou a família.

As crianças chegaram aos Estados Unidos em setembro, ajudadas por um vizinho que as levou para um local seguro. Mas a mãe deles morreu na explosão e o resto da família ficou para trás, diz Ferishta.

As crianças ficaram feridas no ataque que matou mais de 170 pessoas e feriu pelo menos 200 outras. Durante meses, os familiares tiveram medo de lhes contar sobre a morte da mãe. As crianças souberam isso recentemente, diz Ferishta, e ficaram ainda mais destroçadas. Mina faz muitas perguntas às quais a tia não sabe responder. 

Porque foram ela e o irmão levados de avião para a Alemanha, depois do ataque, e tratados lá? Porque não pôde a mãe ir com eles? Quando é que chegará o pai?

"Todas as noites ela chora até adormecer”, diz Ferishta, “e às vezes é muito difícil fazê-la parar".

Ferishta faz o possível para consolar a menina. Mas agora mais do que nunca, diz Ferishta, as crianças precisam do pai presente. Já passaram por tanta coisa. Receberam tratamento aos seus ferimentos no Hospital Landstuhl, na Alemanha, e no Walter Reed Army Medical Center, nos arredores de Washington. Em seguida, passaram 20 dias num abrigo na Virgínia para menores desacompanhados, enquanto Ferishta tentava freneticamente tirá-los de lá. E agora, estão de luto pela morte da mãe, enquanto se tentam adaptar à nova vida na América.

Ferishta diz que, de muitas formas, eles são os sortudos. Se o vizinho que os ajudou não tivesse entrado em contacto com os pais de Mina e Faisal, provavelmente a família ainda estaria à procura deles.

Os nomes das crianças e as suas datas de nascimento estão errados em todos os documentos oficiais emitidos durante a viagem - um problema que ela imagina ser comum para muitas das crianças afegãs que foram retiradas sem os pais. Ela teme que isso signifique que as famílias em busca de entes queridos podem nunca se encontrar.

Ferishta sabe que a história da família dela é apenas uma entre muitas. Reunir famílias afegãs separadas deve ser a primeira prioridade do governo, diz ela.

“Todas as crianças que chegaram aqui sem os pais”, diz ela, “eu sinto a dor delas todos os dias que vivo com a minha sobrinha e o meu sobrinho. Sei o quanto estão a sofrer”.

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