Há crianças no Brasil a subir a árvores de 21 metros para que possamos comer açaí

CNN , Julia Vargas Jones e Eduardo Duwe
24 mar, 19:00
Açaí | Fotografia: Unsplash

Lucas Oliveira é o exemplo, na primeira pessoa, desta realidade. Conheça aqui a história deste rapaz que, aos 13 anos, passa os dias a subir às árvores para apanhar bagas de açaí

No porto de Igarapé da Fortaleza, no extremo norte do Brasil, os trabalhadores portuários descarregam grandes sacos cor de laranja e vermelhos dos pequenos barcos de madeira. Pequenas bagas escuras espalham-se pelo cais, manchando tudo de roxo e tornando o pavimento escorregadio. Depois de lavadas, processadas e transformadas em polpa, cada saco produzirá cerca de 19 litros de polpa de açaí, que será utilizada em ‘bowls’, ‘smoothies’ e suplementos liofilizados.

Na primavera, quando a maioria das frutas ainda não está madura, cada saco de 59 quilos é vendido aos grossistas por cerca de 80 dólares [74 euros], mais do dobro do preço a que é vendido na época em que o açaí é mais abundante. Os compradores podem não saber que o superalimento que estão a adquirir para vender a multinacionais pode ter sido colhido por crianças – ninguém verifica isto.

Oitenta dólares seriam uma fortuna para quem recolhe as bagas de açaí, mas estes ainda têm de pagar a quem realiza o transporte de ida e volta de barco de entre as aldeias próximas e a selva, bem como aos donos das terras onde fazem essa coleta. Nem sempre foi assim. A procura crescente transformou o que antes era sobretudo uma indústria local numa operação internacional, que pressiona estas comunidades que, durante décadas, dependiam da fruta para a sua sobrevivência económica e para a própria subsistência.

Em 2012, o estado do Pará, que produz mais de 90% do açaí do Brasil, exportou 39 toneladas desta fruta. Dez anos depois, foram exportadas 8.158 toneladas, originando mais de 26 milhões de dólares [quase 24 milhões de euros] em receitas, segundo dados deste setor. Como consequência, as crianças estão a ser atiradas para perigosas jornadas de recolha de fruta, subindo a árvores com uma altura de 21 metros, sem qualquer arnês, expondo-se aos perigos dos pântanos da floresta tropical, incluindo cobras venenosas, escorpiões ou jaguares.

Colher bagas para alimentar a família

Lucas Oliveira, de 13 anos, da vila de Fazendinha, fora de Macapá, é uma destas crianças. Apesar de ir à escola, também ajuda o irmão Wengleston a apanhar açaí sempre que pode, para ajudar a alimentar os outros sete irmãos. A CNN acompanhou ambos num dia típico de colheita no início de março. Acordaram às 3 da manhã e apanharam um barco a motor com outras crianças e jovens para atravessar o rio Amazonas, o maior do mundo. Já do outro lado, puseram-se numas canoas para chegar a uma propriedade privada onde crescem palmeiras de açaí.

Com apenas 13 anos, Lucas Oliveira apanha açaí (Julia Vargas Jones)

Lucas andou pela selva com uma catana tão grande como o seu braço, usando-a para cortar folhas e galhos de grande dimensão. À medida que ia limpando o caminho, olhava para cima e para a frente, examinando cada palmeira. “Aqui, esta tem algumas”, avisou Lucas, soltando o saco de lona.

Lucas enfiou a catana na cintura dos calções. E, com um único salto, enrolou as pernas magras no tronco de uma palmeira. Foi-se puxando para cima, escalando cerca de seis metros, antes de desaparecer na copa da árvore. Algum tempo depois, gritou: “Está maduro!”. O ruído aumentou. Folhas, galhos e pequenas bagas roxas, de um tom escuro e duras como pedra, começaram a cair. Wengleston ficou satisfeito. “Conseguiu duas!” Lucas desceu com dois cachos de açaí, cada um pesando cerca de 4,5 quilos. Lucas repete esta rotina dezenas de vezes num único dia.

Wengleston, agora com 20 anos, deixou a escola quando tinha a idade de Lucas para trabalhar a tempo inteiro. Nestes sete anos, desenvolveu sérias dores nas costas por carregar cerca de 90 quilos de açaí por dia. “Um dia estava a levantar um saco e senti que minhas costas se rasgaram”, contou Wengleston. “Há dias em que não posso trabalhar por causa das dores fortes, tenho de ficar em casa.” Wengleston confessou que tem medo de perder ainda mais mobilidade em breve, ou de acabar como outras pessoas que recolhem açaí, que ficaram com problemas tão graves nas costas que já não conseguem andar.

Há inúmeras histórias de quem tenha caído das árvores enquanto colhia bagas da açaí – alguns ficaram com ferimentos graves e nunca mais voltaram a andar. Nestas áreas remotas da selva, a ajuda para o resgate pode estar a várias horas de distância. No dia em que a CNN acampanhou esta rotina, um dos trabalhadores a colher açaí perdeu a consciência e caiu de uma árvore.

Quem recolhe açaí expõe-se aos perigos da floresta tropical (Julia Vargas Jones)

Policiamento em locais de difícil acesso

No país, 1,9 milhões de crianças entre os cinco e os 17 anos estavam envolvidas em alguma forma de trabalho infantil em 2022, segundo um relatório de dezembro do instituto nacional de estatística do Brasil. Destas, pelo menos 756 mil trabalhavam naquelas que a Organização Internacional do Trabalho considera serem as piores formas de trabalho infantil, incluindo condições “perigosas”.

Um dos maiores desafios na hora de resolver este problema prende-se com o facto de as áreas mais propícias ao trabalho infantil serem também as mais difíceis de policiar, justificam as autoridades. “É por isso que são chamados de locais de difícil acesso, onde só se chega com muito esforço, superando muitos obstáculos”, afirmou Allan Bruno, procurador do Ministério Público do Trabalho do Brasil.

Bruno explicou que há um foco especial no arquipélago do Marajó e no litoral do Amapá, onde o trabalho rural é caracterizado sobretudo pela criação de búfalos e pela colheita de açaí. Aí, as autoridades investigam o recrutamento de crianças para este tipo de trabalhos.

Bruno integra uma força especial conjunta de procuradores, investigadores e polícias federais que investigam situações com características de escravidão, invadindo propriedades para resgatar trabalhadores e também crianças.

Lucas Oliveira sobe às árvores dezenas de vezes por dia, para derrubar os pesados cachos de açaí (Julia Vargas Jones)

Segundo Allan Bruno, é comum que as pessoas resgatadas não saibam que os seus direitos estão a ser violados. “São pessoas que se encontram na base da sociedade, sem acesso à educação, à saúde, sem acesso a direitos básicos que lhes permitissem uma empregabilidade mínima. São estas bolsas de pobreza que constituem o foco de recrutamento por parte de quem procura mão de obra barata para explorar”, afirmou.

O procurador acrescenta que o sistema é muito lento, carecendo de pessoal e de recursos para fiscalizar uma área tão alargada do país – e que só agora se está a começar a atuar nesse sentido, depois de muitos anos em que tal não era uma prioridade para o governo federal: atualmente existiram 900 vagas para inspetores do trabalho a aguardar candidatos.

Por agora, Lucas continuará a escalar as imponentes árvores. Contudo, o foco das autoridades na sua região dá sinais de esperança para um futuro onde as crianças não sejam forçadas a arriscar as suas vidas em trabalhos perigosos para se alimentarem a si e às suas famílias.

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