"Temos de deixar de andar em bicos de pés à volta da palavra aborto": grupo de direitos diz que a solução para o acesso é o diálogo aberto

CNN , Alaa Elassar
4 mai 2022, 09:00
Ativistas pelo direito ao aborto seguram cartazes com as caras dos juizes do Supremo Tribunal numa manifestação em Washington em Dezembro. Foto: Jose Luis Magana/AP

Documentos obtidos pelo jornal Politico mostram que o Supremo Tribunal dos EUA está prestes a revogar a decisão histórica de 1973, conhecida como o caso 'Roe vs. Wade', que reconheceu o direito ao aborto em todo o país. Organização que defende o direito ao aborto sublinha que o tema ainda é considerado tabu e que isso acaba por criar um ambiente repleto de desinformação. Três mulheres partilham o seu testemunho

Meg Schurr tinha 22 anos quando afirma ter sido agredida sexualmente.

Estudante universitária em Nova Iorque com o sonho de trabalhar em saúde pública, a vida de Schurr foi bruscamente interrompida quando descobriu que engravidou na sequência da agressão sexual em 2014.

"A minha gravidez não podia ter sido menos planeada ou desejada - resultou de um encontro que eu não quis ter e pedi para parar", disse Schurr à CNN.

O aborto parecia a sua única opção. Mas Schurr, criada no seio de uma família católica conservadora, estava aterrorizada com o que isso significava.

"Tinha medo de confiar apenas na informação do Planeamento Familiar -- porque toda a vida me tinham dito que eram tendenciosos e que só forneciam serviços de aborto com fins lucrativos", disse Schurr, referindo-se às falsidades imputadas ao prestador de cuidados de saúde sexual e reprodutiva sem fins lucrativos que oferece serviços de aborto.

Mas percorrer sites de centros de gravidez de crise, que por vezes dependem de desinformação para dissuadir as mulheres de abortar, só a assustou mais. O médico de Schurr acabou por encaminhá-la para uma clínica de Planeamento Familiar.

"Fui livre de fazer a minha escolha sem hesitação ou barreiras só porque tinha a sorte de viver na área metropolitana de Nova Iorque", disse Schurr, que agora trabalha como assistente administrativa do grupo de reflexão sobre direitos reprodutivos do Guttmacher Institute.

A liberdade de fazer essa escolha é algo que muitos americanos não têm; e pessoas como Shurr lutam para que a tenham.

Legislaturas de maioria republicana, incluindo as de Oklahoma, Idaho e Arizona, aprovaram uma onda de novas restrições ao aborto nas últimas semanas. Vão desde limitar o acesso ao aborto até criminalizar a sua realização ou tentativa de realização do procedimento. Em muitos destes casos, a legislação não prevê exceções em casos de violação, incesto ou emergência médica.

Em dezembro, o Supremo Tribunal ouviu argumentos orais sobre um dos seus casos mais importantes em décadas – caso esse que carrega aos ombros o futuro dos direitos ao aborto nos Estados Unidos. Espera-se uma decisão final em junho.

Uma decisão que anula o atual precedente do Supremo Tribunal sobre os direitos ao aborto - e que reverte especificamente a decisão histórica do caso de 1973 Roe vs. Wade - pode levar à aplicação de novas proibições ao aborto e à aplicação de proibições existentes em Estados de todo o país.

Os defensores deste tipo de legislação invocam frequentemente a doutrina e os valores religiosos, considerando o aborto equivalente a homicídio. Mas os ativistas dos direitos do aborto dizem que a decisão de dar à luz é pessoal e está consagrada nas liberdades civis. Também dizem que o acesso ao aborto pode salvar vidas.

Meg Schurr agora trabalha como assistente administrativa do grupo de reflexão sobre direitos reprodutivos do Guttmacher Institute. Foto: DR

"O aborto é um direito humano", disse Schurr. "Os ataques políticos ao nosso direito fundamental ao aborto - o direito à autonomia corporal, o direito de traçar o nosso próprio rumo na vida, o direito de proteger a nossa saúde e bem-estar - são manifestamente inconstitucionais, imorais, vergonhosos e patéticos."

Enquanto os protestos pelos direitos ao aborto surgem frequentemente sob a forma de comícios, doações e ação política, outros empunham ainda outra arma: as suas histórias.

Ativistas dizem "Grite o seu aborto"

Em 2015, depois de os republicanos no Congresso terem tentado cortar os fundos do Planeamento Familiar, Amelia Bonow levou para o Facebook a sua própria história de aborto. Inspirada a dizer a verdade, partilhou a sua experiência sem "tristeza, vergonha ou arrependimento".

A sua publicação no Facebook foi partilhada pela companheira feminista e ativista da justiça social Lindy West, que acrescentou o hashtag #ShoutYourAbortion. Em poucos dias, o hashtag tornou-se viral, com milhares de mulheres em todo o país a acrescentarem as suas próprias histórias.

O objetivo da campanha nas redes sociais, disse Bonow à CNN, era "criar formas de as pessoas partilharem as suas histórias de aborto e normalizarem o aborto na cultura em geral".

Agora, Shout Your Abortion (SYA), uma organização sem fins lucrativos de direitos ao aborto cofinanciada por Bonow e West, partilha milhares de histórias de pessoas de todas as idades, raças e identidades de género.

"Estamos aqui. Estamos a fazer abortos e estamos a falar deles, tão alto quanto quisermos", diz o site Shout Your Abortion. "Está na hora de recuperarmos as nossas próprias histórias."

Apesar da controvérsia em torno do aborto, trata-se de uma intervenção de saúde comum nos Estados Unidos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Seis em cada 10 gravidezes inesperadas terminam em aborto, informou a OMS em 2021.

Cerca de uma em cada quatro mulheres americanas terá um aborto até aos 45 anos, de acordo com o Guttmacher Institute.

Mas como o aborto é considerado tabu, a maioria das pessoas não partilha as suas experiências, diz a SYA, o que leva a sentimentos de vergonha, culpa e isolamento. Evitar o assunto cria também um ambiente repleto de desinformação e, em última análise, de legislação prejudicial.

É por isso que a SYA acredita que partilhar histórias, bem como apoiar e financiar clínicas, é fundamental para proteger os direitos ao aborto.

"Acreditamos que fazer todas estas coisas abertamente, seja qual for a sua vontade de o fazer, é o caminho para construirmos uma base ampla e intransigente de apoio ao acesso ao aborto", disse Bonow. "Temos de começar a pensar no acesso ao aborto como uma responsabilidade comunitária."
Para alguns, a discussão pode parecer demasiado pública, demasiado aberta. Mas mulheres como Arielle Cohen discordam.

Em 2012, Cohen era estudante universitária na SUNY Purchase, uma líder do campus com o sonho de se tornar escritora.

Quando engravidou a meio do semestre, com apenas mil dólares para se sustentar até ao fim do ano, um aborto parecia a sua única escolha.

"Não seria a pessoa que sou hoje se não tivesse conseguido juntar o dinheiro para aqueles dois comprimidos", disse Cohen à CNN.

Cerca de uma em cada quatro mulheres americanas terá um aborto até aos 45 anos, de acordo com o Guttmacher Institute. Arielle Cohen acredita que hoje seria uma pessoa diferente se não tivesse conseguido juntar dinheiro para realizar um aborto. Foto: DR

Partilhar a sua experiência não foi fácil, diz Cohen, realçando que os abortos são difíceis de conseguir, difíceis de pagar e difíceis de partilhar.

"O estigma e o isolamento que enfrentei deixaram-me extremamente deprimida", disse. "Fiquei envergonhada por estar deprimida e tive vergonha por não saber falar sobre isso."

"Ainda estou profundamente perturbada com o estigma esmagador que enfrentei, que tantas mulheres no meu lugar ainda enfrentam", disse Cohen.

Juntar-se ao movimento #ShoutYourAbortion permitiu a Cohen ver em primeira mão o impacto que a sua história teve nos outros.

"Hoje, tenho muito orgulho em dizer que fiz um aborto", disse Cohen. "Orgulho-me de saber que, quando falei sobre isso publicamente pela primeira vez, criei um efeito dominó onde outras pessoas me contaram as suas histórias pela primeira vez. Sinto-me honrada em guardar essas histórias para os outros."

Um longo caminho pela frente

Heather Young lembra-se de ter 17 anos e de enfrentar a multidão à porta de uma clínica em Middletown, Ohio, onde fez um aborto cirúrgico.

"O procedimento não foi mau, a clínica era sossegada e muito limpa", disse Young, agora com 23 anos, à CNN. "Nunca esquecerei os manifestantes à porta a gritar sobre Jesus... todos os olhares fixos de que fui alvo, quando entrei."

Ela lembra-se de estar deitada na maca enquanto uma enfermeira lhe segurava a mão, a explicar a Young cada passo do procedimento, sem nunca a largar.

"Apesar de ter sido um período difícil na minha vida, nunca esquecerei as pessoas incríveis que me ajudaram a aceder aos cuidados que precisava e merecia", disse.

Young também acha que os homens e mulheres que gritavam à porta da clínica não sabiam o suficiente sobre a sua situação para a julgar.

Enquanto estudante do liceu, Young diz que já tinha problemas de saúde mental e problemas financeiros, quando engravidou.

"O tipo que me engravidou passou imediatamente de ternurento e amoroso a mau", disse ela.

"Não queria de modo nenhum trazer uma criança ao mundo com a minha idade e muito menos com a pessoa com quem me deitei", disse.

Young diz que está agradecida pela gentileza do pessoal da clínica, assim como por todas as mulheres que a inspiraram a partilhar a sua história de aborto. Só ao fazê-lo, diz, o assunto se torna mais fácil de abordar.

"Temos de deixar de andar em bicos de pés à volta da palavra aborto", disse Young. "As pessoas precisam de saber que as pessoas fazem abortos por todas as razões, não apenas situações de vida ou morte. Eu tinha 17 anos, estava assustada. Provavelmente não estaria aqui hoje se não fosse a minha mãe e os médicos que me ajudaram."

A campanha que Bonow e West começaram tem feito grandes progressos desde 2015.

Além de partilhar milhares de histórias sobre o aborto, o grupo está agora focado em sensibilizar para os comprimidos para o aborto, para ajudar a expandir o acesso ao aborto, especialmente para as mulheres que vivem em Estados onde ele foi restringido.

O grupo tem um longo caminho pela frente, com legislação recente, incluindo uma medida em Oklahoma, que imporia uma proibição quase total do aborto. Mas a SYA diz que o seu trabalho é mais importante do que nunca e que a luta pela justiça continuará, uma história de cada vez.

"Não tenho vergonha de ter demorado anos a dizê-lo", disse Cohen. "Não tenho vergonha de ter sido difícil. Não tenho vergonha de ainda pensar em todos os seus aspetos. Não tenho vergonha que tenha sido doloroso. E não me vou calar sobre isso."

E.U.A.

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