"Quando olho para um lado e para o outro e vejo polícias de metralhadora…": o dia em que o Estado Novo deteve 151 "intrépidos adolescentes"

22 abr, 07:00
Detenção de 151 jovens do MAEESL pela polícia, 16 de dezembro de 1973 (DR)

Desconhecida por grande parte dos portugueses, esta ação da polícia de choque foi um dos últimos grandes atos repressivos do Estado Novo. Cinco meses depois, deu-se o 25 de Abril

Luís Lopes lembra-se bem dos seus tempos de estudante no liceu, nos anos imediatamente antes do 25 de Abril. Entre todas as memórias, há uma que sobressai: era praticamente tudo proibido.

"No Liceu Camões, não podíamos ir de ténis, não podíamos correr nos pátios, não podíamos assobiar nos pátios, quando não tínhamos aulas não podíamos sair", lembra à CNN Portugal.

Luís recorda-se particularmente de um episódio, no qual alguns colegas seus foram apanhados a beber água de um bebedouro em frente ao liceu, na Praça José Fontana, em Lisboa, e foram suspensos. "Segundo o reitor, as pessoas iriam pensar que os meninos não tinham água no liceu e isso punha a imagem do liceu de rastos."

Em cima de todo este clima repressivo, Luís era também particularmente visado pelos professores, dadas as suas origens mais modestas do que as dos restantes colegas.

"O meu pai era gerente comercial e, na turma onde eu andava, apenas eu e outro colega, cujo pai era motorista da Carris, éramos socialmente um pouco abaixo da média do liceu. Portanto, sempre que havia algum problema na turma o reitor imediatamente dizia que éramos nós. Era o filho do carroceiro, porque para ele ser motorista da Carris era a mesma coisa que ser um carroceiro, e no meu caso, o filho do pasteleiro. Obviamente, isto gera revolta", conta.

Quem também andava pelo ensino liceal nessa altura era Rui Gomes, que acrescenta outros motivos para o desagrado dos jovens. "Os estudantes tinham reivindicações relacionadas com problemas pedagógicos, com o autoritarismo dos professores e com um problema que vinha de antes de 1970, que tinha a ver com a laicização do ensino, com a luta contra a disciplina obrigatória da Religião e Moral", diz à CNN Portugal.

Não é, por isso, de estranhar o surgimento de movimentos contestários, sendo que há um em particular que ganha uma importância superior. Criado em 1967, o Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa, ou MAEESL, não teve grande expressão no seu início, estando limitado a uma mão cheia de escolas. Mas apresentava uma grande inovação: não se limitava apenas aos liceus, conotados com as elites e com a formação de quadros para a administração pública; o movimento abrangia também as escolas técnicas, dirigidas à pequena burguesia e às classes sociais mais baixas. Um dos seus objetivos fundamentais era a unificação do ensino secundário, isto é, acabar com a diferença entre liceus e escolas técnicas.

O reitor do Liceu Pedro Nunes, Jaime da Mota, arranca cartaz afixado pela delegação do MAEESL.
O cartaz denunciava um processo disciplinar instaurado a um aluno (Arquivo pessoal de João Faria, fotografia de Carlos Ripado)
No pátio da escola, os estudantes reuniram-se em protesto pela remoção do cartaz (Arquivo pessoal de João Faria, fotografia de Carlos Ripado)
Fotografia do cartaz afixado pela delegação do MAEESL no Liceu Pedro Nunes (Arquivo pessoal de João Faria, fotografia de Carlos Ripado)

Esta abrangência foi crucial para o seu crescimento, no início dos anos 70. O movimento tornou-se tão expressivo que captou a atenção de um deputado, Cazal-Ribeiro, que, numa célebre intervenção na Assembleia Nacional, apelidou os jovens do MAEESL de "intrépidos adolescentes", acusou os comunistas de controlarem o movimento e disse ser necessário "esmagá-lo" à nascença.

"O movimento é, de facto, muito vigiado e reprimido desde sempre, mas particularmente a partir de 1972. Há procedimentos de vigilância sistemática nos liceus, feitos numa articulação entre a PSP e a PIDE", conta Rui Gomes, que chegou a dirigente do MAEESL.

Tal não impediu a sua expansão. Cada escola passou a ter o seu jornal – Rui Gomes contou 33 títulos diferentes, criados entre 1970 e 1974. Em abril de 1973 o movimento realizou as suas primeiras eleições abertas a todos os estudantes. Votaram quase 600 adolescentes dos 13 aos 18 anos, entre membros, colaboradores e simpatizantes.

O modus operandi também se tornou mais arrojado. Passaram de distribuir os jornais e panfletos às escondidas para o fazer cara a cara com os restantes estudantes. O medo existia, mas a vontade de mudança suplantava-o.

"Ó Rui, estão aqui três miseráveis polícias"

No dia 16 de dezembro de 1973, ao início da tarde, o MAEESL iria realizar uma assembleia geral, a terceira daquele ano. O local escolhido era o de reuniões anteriores, o Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (conhecido entre os estudantes como ‘Económicas’), atual ISEG. Era um domingo, pelo que não haveria grandes alternativas: ou era em Económicas ou na Faculdade de Medicina.

Helena Figueiredo foi uma das que marcou presença. A sua mãe levou-a até ao local da reunião. "Levou a vida inteira a martirizar-se por isso", afirma à CNN Portugal. À chegada, uma surpresa: Económicas estava fechada. Alguns, incluindo Helena, ainda treparam o muro exterior e entraram, mas era altura de acionar o plano B. Foram todos de autocarro para Medicina.

Um grupo de três ou quatro estudantes ficam para trás para avisar os que iam chegando da mudança de local. Luís Lopes era um deles.

Em Medicina estava tudo montado. Os estudantes já estavam todos na sala onde se iriam reunir, excetuando os piquetes de emergência, que ficaram do lado de fora para avisar os presentes caso chegassem as autoridades. "Esse aviso existiu, mas foi muito tardio", lembra Rui Gomes, um dos primeiros a saber que algo de errado se passava.

"Fui chamado por um dos elementos do piquete de vigilância, um colaborador com dupla nacionalidade, brasileiro e português, que disse ‘ó Rui, estão aqui três miseráveis polícias, três miseráveis chuis’", conta. Eram cinco da tarde, já estava muito escuro. Rui espreita para o corredor.

"Quando olho para um lado e para o outro vejo polícias de capacete e de metralhadora… percebi imediatamente." Não eram três polícias, mas sim uma dúzia, seis de cada lado, fortemente armados. Muitos mais estavam do lado de fora.

Momento em que as autoridades entram na sala da Faculdade de Medicina onde decorria a reunião do MAEESL. À direita, de farda, o capitão Pereira, líder da operação da polícia (Arquivo da PIDE/DGS, ANTT)
Ao todo, 151 jovens estudantes, entre os 13 e 18 anos, foram detidos pelas autoridades (Arquivo da PIDE/DGS, ANTT)

Os estudantes, entrelaçando os braços e formando um cordão humano, ainda tentaram romper o cerco policial. Nada feito. "Os polícias puxaram as culatras atrás. Ameaçaram disparar", lembra Rui. Recuaram todos.

Os três ex-estudantes com quem falámos recordaram Ribeiro Santos, estudante de Direito assassinado pela Direção-Geral de Segurança no ano anterior numa situação semelhante, como um dos motivos para o recuo. Todos queriam evitar mais uma tragédia.

De seguida entra na sala o líder de toda a operação. Era o capitão Pereira, da polícia de choque. "Disse-nos logo, ouvi perfeitamente, ‘eu não sou o Maltez nem sou da PIDE’", conta Helena. A referência do comandante da operação era a outro capitão, Américo Maltez Soares, célebre pelas suas cargas policiais a estudantes. Foi ele quem, por exemplo, liderou a violenta repressão contra os presentes no funeral de Ribeiro Santos.

"Não tínhamos acesso a água nem a comida"

Entretanto, Luís e os restantes que ficaram em Económicas chegam a Medicina. Do autocarro veem o aparato policial em torno do Santa Maria. "Já não descemos do autocarro, deitámo-nos entre os bancos para nos escondermos do pica-bilhetes, que foi só espreitar se já não havia ninguém para o autocarro partir outra vez. Quando o autocarro arrancou, duas ou três paragens depois, saímos", lembra.

A partir daí, Luís e os restantes tinham uma missão: ir a casa dos companheiros do MAEESL destruir todos os documentos que os pudessem incriminar. Agendas, listas telefónicas, atas de reuniões.

Dentro da sala da Faculdade de Medicina fazia-se o mesmo da forma possível. Como se pode ver nas fotografias tiradas pela polícia, muitos papéis foram destruídos e rasgados em pequenos pedaços e atirados ao chão. Os mais incriminatórios não tiveram o mesmo desfecho: foram enrolados em bolinhas e comidos pelos estudantes.

No total, 151 adolescentes, entre os 13 e 18 anos, foram detidos naquele dia. Para os retirar a todos de Medicina, foram necessárias cinco ramonas.

Os estudantes foram levados para o Governo Civil e separados por três celas: duas para os cerca de 100 rapazes e uma para as cerca de 50 raparigas.

Num dos calabouços dos rapazes estava Rui, que não esquece as precárias condições em que ficou. "Não tínhamos acesso a água nem a comida. O espaço era muito exíguo, nem nos conseguíamos sentar", lembra. "Nem tínhamos acesso a casa de banho. Havia uma sanita turca, um buraco no chão, que entupiu ao fim de muito pouco tempo. Ficou um cheiro nauseabundo durante toda a noite."

"Merda, já me f..."

Mas o tratamento precário e humilhação não ficaram por aqui. Os rapazes foram sendo chamados em grupos de três ou quatro para identificação. A todos, sem exceção, foi-lhes rapado o cabelo, o que causou grande transtorno a alguns. "Havia um rapaz na nossa cela, loiro e com o cabelo bastante comprido, que tinha muito orgulho na sua cabeleira. Ficou a chorar, sentiu-se muito humilhado com aquilo. Mas depois lá conseguimos ultrapassar a situação com humor."

A boa disposição era chave para não se deixarem ir abaixo. "Essa ideia de brincar com aquilo serviu bastante para combater essa lógica de humilhação, porque a humilhação era um processo típico utilizado pela PIDE. Mesmo quando, como foi o nosso caso, não fomos sujeitos a tortura física. Era tortura psicológica, havia a intenção de criar medo a médio e longo prazo", lembra Rui. "Queriam que nós pensássemos ‘ok, eles fizeram isto agora; a seguir, vou para Caxias. Posso ser sujeito a tortura’. Isto era uma técnica conhecida da polícia."

A destruição e ingestão de papéis continuou, inadvertidamente, no Governo Civil. Rui Gomes foi relembrado desta história décadas mais tarde. "Às tantas, um dos rapazes disse ‘merda, já me ...’. Eu virei-me para ele e disse ‘epá, o que é que aconteceu?’ ‘Epá, então não é que tenho aqui uma agenda, epá, com os contactos, no forro do casaco?’", recorda.

"Eu disse ‘ó Miguel não te preocupes, dá cá isso que eu resolvo’. Peguei na agenda e nos contactos. Não eram muitas folhas. Rasguei aquilo e disse ‘malta, temos aqui uma tarefa, temos de engolir isto, temos de mastigar e engolir isto.’ E foi assim. Distribuí aquilo pelas pessoas. Havia uma que era conhecida por essa capacidade de mastigar e engolir papel. E lá resolvemos o problema."

No chão da sala onde os estudantes do MAEESL se reuniram, era possível ver vários papéis rasgados ou amarrotados (Arquivo da PIDE/DGS, ANTT)

Na cela das raparigas, onde também se comeram alguns papéis, estava Helena. Ao contrário dos rapazes, as jovens fizeram a vida negra às guardas.

"Lembro-me das mais velhas dizerem que queriam a pílula porque senão iriam ficar grávidas. Eu não sei se alguém ali já estaria a tomar a pílula. Se calhar já estava, mas garanto que seria muito pouca gente. Andávamos a chateá-las de morte com tudo o que podíamos, e a dizer que ficariam responsabilizadas por gravidezes que ocorressem."

Questionada sobre o porquê desta diferença de atitudes entre rapazes e raparigas, Helena foi perentória. "Os rapazes tinham a agravante de ir para a tropa. Consegue-se imaginar, mas são coisas que só vivendo. Porque era ir para a Guerra Colonial ou desertar. Sabíamos que se chateássemos ou fôssemos apanhadas a fazer algo, podíamos ser expulsas, mas não iríamos para a tropa. Não iríamos para a guerra."

"Houve um ou dois casos de pais que esbofetearam os filhos"

Entretanto, o não regresso dos jovens a casa começou a preocupar os pais. Já à noite, a mãe de Helena desdobra-se em contactos para saber do paradeiro da filha. Ao contrário do que é habitual em democracia, as autoridades não contactaram os familiares dos menores detidos, mesmo daqueles que tinham 13 anos.

Telefonemas para cá, telefonemas para lá, a mãe de Helena consegue finalmente saber, através dos irmãos D’Espiney, conhecidos opositores do regime, onde se encontram os jovens, e dirige-se para o Governo Civil. Os outros pais também acorrem ao local.

Num ato de alguma boa-fé, os guardas levam aos jovens comida trazida pelos pais. "Lembro-me tão bem de ver chegar travessas com sandes. Porque não nos deram comida nenhuma. Não nos deram nada", afirma Helena.

Já de manhã, a maior parte dos jovens são libertados. Alguns seguem para Caxias, onde nada de muito grave acontece. Vendo as cabeças rapadas, uma mãe decide começar a coser gorros para os rapazes, não só para os proteger do frio, como também para os ajudar a esconder a careca e não serem mais facilmente identificados, o que acabou por ter o efeito oposto: quem tinha gorro era automaticamente identificado como um dos detidos.

A maioria dos pais estava solidário com os filhos, mas havia exceções. "Houve um ou dois casos de pais que esbofetearam os filhos. Eram militares ou pessoas com um vínculo ideológico ao Estado Novo. Mas na maior parte dos casos foi um processo de solidariedade", diz Rui.

"Força, força, força"

Este episódio repressivo, um dos últimos de uma longa ditadura de 48 anos, teve repercussões no estrangeiro. A BBC noticiou o caso no seu serviço mundial, afirmando que a polícia em Portugal tinha detido crianças. A imagem do regime lá fora, já moribunda, levou outro golpe.

Em Portugal, lembra Luís Lopes, apenas o Expresso escreveu uma pequena nota sobre o incidente alguns dias depois. Porém, a informação propagou-se por toda a sociedade através do meio mais comum da época, o boca a boca.

Nos dias e semanas seguintes, a população informada demonstrou apoio a estes jovens. Luís Lopes, que não foi detido nesse dia, mas acabou mais tarde por ser submetido ao mesmo tratamento, inclusive a ‘carecada’, recorda-se de uma dessas demonstrações.

"Uma vez no metro, quando ia para o liceu, com o cabelo ainda muito curtinho, há uma senhora, já de uma certa idade, que quando eu vou para sair agarra-me no braço e diz ‘força, força, força’. Obviamente esta força tinha que ver com ela ter percebido que eu tinha sido um dos presos."

Passados 50 anos, há questões que ainda não estão fechadas para alguns. Luís, que acabou expulso do Liceu Camões em 1973 por distribuir panfletos, tendo continuado o seu ativismo no Liceu D. Pedro V, considera que toda esta operação foi uma "cilada" montada aos membros do MAEESL dado que, com o encerramento de Económicas, os jovens só tinham a opção de ir para Medicina. Rui, que estudou o arquivo da PIDE a fundo, não encontrou qualquer indício de uma operação preparada com antecedência.

Luís também demonstra alguma tristeza por este episódio não ter ganhado grande destaque. "Só se está a falar agora porque foram os 50 anos", comenta, apontando um motivo para isso.

"Se olharmos para quem fazia parte do MAEESL, vemos que não há assim ninguém que tenha ganhado grande protagonismo a nível político. Encontramos na vida política nacional gente do movimento estudantil das faculdades de 62, 68, 69, que chegaram, alguns deles, a grandes cargos, como o Jorge Sampaio e o Alberto Martins. Mas desta geração não encontra grandes protagonistas políticos posteriores. Talvez porque foi uma geração um bocadinho desprezada na altura, em alguns casos, mas também foi uma geração que não fez isto para obter benefícios pessoais. Inclusive muitos de nós, desta época, seguimos percursos ideológicos completamente distintos, desde a direita à extrema-esquerda."

Não obstante, alguns membros do MAEESL vieram a ser conhecidos do público. O ator Joaquim de Almeida, o matemático e ex-ministro da Educação Nuno Crato, o politólogo António Costa Pinto e os jornalistas José Manuel Fernandes e João Gobern fizeram, a certa altura da sua juventude, parte do movimento.

"Nós fomos uma espécie de canário na mina"

A prisão ocorreu cinco meses antes do 25 de Abril, do qual os jovens não tiveram grandes indícios. Porém, era algo que sentiam que iria acontecer.

"A geração dos meus pais já não imaginava sequer a possibilidade de em vida derrubar a ditadura. Já tinham perdido essa esperança. Continuavam a lutar, mas não tinham esperança. Ora, nós não. Nós éramos tão jovens que imaginávamos mesmo que aquilo não iria continuar. Esta sensação de que nós não íamos viver as nossas vidas em ditadura era muito forte. Poderia ser até por alguma inconsciência", descreve Rui Gomes.

"Aquela prisão foi uma espécie de canto do cisne do Estado Novo. Representava já um certo desespero do regime, que resolve reprimir adolescentes entre os 13 e os 18 anos daquela forma. É uma coisa já bastante fora até dos padrões habituais de repressão do Estado Novo", prossegue.

"Eu costumo tratar as nossas prisões de 73 como o canário na mina. Os mineiros, por causa do metano, recorriam a um canário porque os canários morriam antes dos homens. E, quando o canário morria, era a altura de sair da mina e ir embora porque a concentração do metano estava a ser muito elevada. Nós fomos uma espécie de canário na mina."

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