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"Voltaram a ouvir-se as sirenes em Lviv". Diário de Guerra de Judite Sousa

12 mar 2022, 14:59

Entradas do "Diário de Guerra" de Judite Sousa, enviada especial à Ucrânia

Diário da Guerra - 12 de março

Pelo segundo dia consecutivo, voltaram a ouvir-se as sirenes em Lviv. Mas a cidade mantém-se segura. Um local ainda de paz como nos dizia um clérigo da catedral de Lviv. Ainda. Russos e Ucranianos lutam a Leste. Com consequências trágicas e devastadoras para os que já caíram em combate e para os que se viram no limite da vida.

Na guerra da contra informação, Russos e Ucranianos acusam-se mutuamente pelo fracasso dos corredores humanitários. Há cinco dias que são anunciados acordos de cessar-fogo que acabam por não ter adesão à realidade. A ajuda humanitária não está a chegar às populações que dela necessitam urgentemente. As rotas de fuga têm estado sob o fogo dos bombardeamentos. Depois de uma primeira vaga, abrandou o fluxo de refugiados. Há muitas famílias que estão em deslocação no interior do país e há também relatos de que muitos Ucranianos não querem deixar o país. Pensam em ficar mas em locais seguros. Os que atravessam as fronteiras manifestam a intenção de permanecer em países de acolhimento próximos das fronteiras com línguas e culturas similares. 

Para além do acolhimento aos deslocados, Lviv protege o seu espólio cultural. Cidade renascentista, capital cultural da Ucrânia, as estátuas históricas estão cobertas com materiais anti inflamantes. 

Fora das fronteiras, a diplomacia tenta avançar, mas sem sucesso. Desenham-se três cenários possíveis: ou cai Zelenski, ou cai Putin, ou há uma guerra longa que se vai arrastar no tempo. Os Russos esperavam uma ofensiva rápida mas foram surpreendidos pela resistência Ucraniana. Até quando?

Diário da Guerra - 11 de março

A Rússia atacou nas últimas horas três novas cidades. Uma delas, Lutsk, na zona ocidental. É a primeira incursão das forças Russas na região mais a ocidente da Ucrânia. Terá sido bombardeado um aeródromo militar. Às 5 da manhã, em Lviv, ouviram-se as sirenes, o que já não acontecia há cinco dias. 
Nestes dias, o cansaço acumula-se e instala-se um sentimento de desesperança. Como em todos os conflitos, nenhuma das partes quer perder a face. Não se arrisca a palavra capitulação. Assim avançam os dias, tristes e sombrios. 

Nas tendas montadas pela Cruz Vermelha, os voluntários fazem de tudo para dar um pouco a quem nada tem ou tudo perdeu. Uma sopa quente. Água quente aquecida de forma artesanal. No meio da multidão, foi instalado um piano. Uma jovem toca aleluia. Um momento de grande beleza no meio do infortúnio.

Diário da Guerra - 10 de março

Os corredores humanitários, que implicam um cessar fogo para que os civis sejam retirados das zonas de combate, foram instituídos no artigo quarto da Convenção de Genebra de 1949. Não estão a ser respeitados na guerra da Ucrânia. A força das armas fala mais alto. Quando vamos entrar na terceira semana do conflito, as três palavras que o definem são: morte, destruição, resistência. 

Em Lviv, cujo centro histórico é património cultural da Unesco, as catacumbas das igrejas renascentistas construídas pelos jesuítas, podem funcionar como abrigos se a cidade se constituir como um alvo militar e civil.

Diário da Guerra - 8 de março

Domingo foi o dia do perdão na liturgia cristã ortodoxa. No entanto, os ucranianos não perdoam a Rússia invasora. As guerras são sempre sinónimo de morte e destruição. Vidas perdidas. Famílias destrocadas. O sacrifício dos inocentes. Esta guerra mata, destrói um país e deixa sem sentido de vida milhões de refugiados.

No rosto de Ivan, um miúdo de 18 anos, que fugiu com a mãe de Kharkiv, encontrei um olhar triste, doente. O Ivan parecia saído, com a sua beleza natural, de um livro de Fiódor Dostoyevsky. Agarrado a um baralho de cartas, estava indiferente a tudo o que o rodeava. Uma juventude perdida? Vamos acreditar que não. Que há sempre um amanhã.

Diário da Guerra - 7 de março

O teatro Zanovetska está localizado no centro de Lviv. É um teatro de arte dramática. A decoração revela o estilo Art Déco. A companhia tem 100 actores. Agora, o trabalho é outro. O teatro está transformado num centro de recolha e distribuição de ajuda humanitária.
 
Aqui chegam medicamentos, produtos de higiene e roupas quentes. São doados pela população e por organizações não governamentais para serem distribuídos pelos refugiados ou seguirem para as zonas de combate. Igor, natural de Kiev, é o director de actores. E é ele quem organiza o trabalho que aqui se faz. Há uma outra dimensão na ajuda: o fabrico de redes de camuflagem para o fardamento dos militares e para os veículos de combate.
 
Todos participam no esforço de guerra.

Diário da Guerra - 6 de março

As informações são contraditórias. É assim em todas as guerras. Não há uma verdade. Não há a verdade.

O cessar-fogo, supostamente acordado com os russos, foi violado mais uma vez. A Rússia não parou com os bombardeamentos. Das 200 mil pessoas que deviam sair de Mariupol só 300 conseguiram sair da cidade martirizada pelo fogo aéreo. 

Em Lviv, a principal cidade perto da Polónia, vão sendo tomadas medidas de prevenção. Os edifícios públicos, nomeadamente os monumentos, estão a ser cobertos com placas que protejam estes locais de ataque inimigo. Não se veem muitos militares nas ruas, mas com o país sob lei marcial, é proibido filmar militares e instalações militares. Tentámos fazê-lo mas fomos detidos. Tive que dizer que éramos de Portugal, um país amigo. Lá nos deixaram seguir sem terem apreendido a câmara. 

Hoje, a nossa reportagem é na estação de comboios que é já denominada a estação do desespero. São dias difíceis numa guerra que ninguém julgaria possível neste alvor do novo século.
 

Diário da Guerra - 5 de março

Lviv é por enquanto uma cidade segura mas há uma natural desconfiança. Qualquer movimento nos espaços públicos que possa ser percepcionado como estranho levanta suspeitas. Foi o que nos aconteceu hoje.

O nosso propósito era efectuar reportagem na estação de comboios para avaliarmos a dimensão da fuga de ucranianos.

O táxi que nos transportou deixou-nos a uns 200 metros da estação. Segui com o repórter de imagem André Lico. O terceiro elemento da equipa iria esperar por nós no mesmo sítio onde saímos. No regresso da reportagem, nem sinal do táxi, nem do Fernando, que viajou connosco a partir de Cracóvia. Comunicações eram impossíveis. Estávamos num local sem rede.

Ao fim de uma hora lá conseguimos saber que o Fernando e o taxista tinham sido presos. Aproveitando a nossa ausência, o Fernando tinha ido gravar uns vídeos com telemóvel num mercado próximo quando foi interpelado pela polícia. Ele e o taxista seguiram para a esquadra. Desconfiaram que eles seriam infiltrados pró-russos. Com muitas dificuldades de comunicação, o Fernando lá conseguiu explicar que tinha carteira profissional do Brasil, mas o taxista ficou retido. Problema: tinha nacionalidade russa. E a conclusão é que, em tempo de guerra, todos os cuidados são poucos, mas a desconfiança é muita.

Diário da Guerra - 4 de março

Lviv - Dia 1. Já passava da meia noite quando chegámos ao hotel. Uma recepção simpática. A imprensa é sempre bem recebida pelos locais nos palcos de conflito. Somos os olhos e os ouvidos de quem sofre e entende a importância da informação na formação da opinião pública.

Avisam-nos que as sirenes podem fazer-se ouvir, embora Lviv esteja longe da linha da frente. Mas nunca se sabe. Um segundo é um segundo, tudo pode mudar num instante. Dizem-nos ainda que entre as 10 da noite e as 6 da manhã devemos ter as cortinas corridas. 

Cerca das 9 da manhã, pedem-nos para descermos à recepção. O hotel tem dois abrigos. Uma questão de prevenção e de treino para eventuais situações futuras.

Em Lviv, a vida decorre com uma aparente normalidade no dia em que os russos ocuparam a maior central nuclear do país e o cerco a Kiev está mais próximo. As tropas russas estão a 25 quilómetros da cidade. Antecipam-se dias ainda mais duros e difíceis.

Diário da Guerra - 3 de março

A viagem entre Cracóvia, na Polónia, e Prylziz, na linha de fronteira com a Ucrânia, faz-se sem sobressaltos. Pelo caminho, encontramos um pequeno grupo de militares norte-americanos. Dizem-nos que estão numa missão de segurança. Talvez pertençam a uma das bases da NATO existentes em território Polaco. 

Na estação de comboios de Prysliz encontram-se muitos refugiados que saíram da Ucrânia nas últimas horas. Fogem da guerra. Procuram um destino que os salve do horror.

A estrutura de apoio está bem organizada. Há comida quente, água e principalmente sorrisos nos rostos dos voluntários. Passamos pelos militares sem problemas. Não nos perguntam para onde vamos mas percebem pelos nossos movimentos apressados que queremos prosseguir viagem para leste.

Atravessamos a linha ferroviária, descemos por um túnel e dirigimo-nos para a linha de comboio na direção da Ucrânia. Ao nosso lado, estão muitos ucranianos que deixaram os seus trabalhos na Europa para irem combater o invasor russo.

Cai a noite e o frio aperta. Foram cinco horas de espera e outras tantas na viagem até Lviv, na Ucrânia. As luzes da carruagem apagam-se várias vezes. Reacendem-se minutos depois. Cinco militares, mulheres, fazem o controlo dos passaportes. Estão acompanhadas por um militar armado. Olham-nos. Conferem a fotografia, a nacionalidade. Em silêncio. À meia-noite, é a chegada a Lviv. Na estação de comboios uma multidão aguarda a sua vez de partir. Com esperança. 

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